19º dia – Potosí – Putre

Saímos no horário combinado, 8 horas, imaginando que chegaríamos ao nosso destino a tempo de comer um peixe à beira do Pacífico. Os primeiros 340 km já conhecíamos, pois era a mesma estrada pela qual viemos de La Paz. Sabendo do problema com a venda de gasolina para estrangeiros, mais um problema causado pelo populismo do Evo, assim que percorremos 100 km já fomos procurar completar os tanques. Paramos em um, dois, três, quatro postos e a mesma respostas: “Nosotros no viendemos gasolinea a los estranrreros…”.

Continuamos nossa peregrinação até Oruro, onde fomos informados em um posto que provavelmente nos venderiam gasolina no centro daquela cidade, que continuava feia, fedorenta e com ruas enlameadas como a conhecemos uns dias antes. Entramos na cidade com as luzes de reserva acesas. Eu ainda tinha 5 litros reserva e o Marcelo nada, contando apenas com a maior autonomia do Road King. Sem encontrar um posto que nos atendesse, paramos em frente a uma oficina de motos bem simples para pedir informação e esperando alguma ajuda.

Haviam lá dois rapazes e o dono da oficina, que acabamos esquecendo seus nomes. Explicamos nosso problema e o dono, depois de xingar o Evo, falou de pronto: “Jo compro la gasolinea para usted.” Era o que precisávamos. Perguntei todo feliz como faríamos e ele respondeu que iria com nossas motos até o posto e abasteceria para nós. Não me agradou muito deixar um desconhecido pilotar minha moto, mas não via outra opção. Lhe falei que o controle dos postos era através da placa e que não teria como comprar com motos estrangeiras, mesmo ele sendo boliviano. E ele respondeu: “no ái problema”. Quando ele falou isto eu lembrei do “La garantia soy jo”. Deu uma ordem para um dos rapazes que foi pegar uma chave e imediatamente começou a retirar a placa de uma motoquinha chineza que estava na oficina. Vendo qual era a solução que o amigo boliviano ia usar para nos ajudar, fiquei ainda mais preocupado. E a policia? “no ái problema. Los conozco a todos…”. Na Bolívia este és comun…” Era uma solução complicada para nós brasileiros, mas para eles não parecia ter problema. Bom, sem gasolina não vamos sair do país… Vamos em frente… Dei a ele 100 Bolivianos, o dobro do necessário para encher o tanque pelo valor subsidiado da gasolina no país.

Minha moto foi primeiro. Expliquei como ligar, tampa do tanque, etc. Arrancou cantando pneu, sem casco (capacete) e todo feliz por dar uma volta pela cidade numa Harley-Davidson…

Vinte minutos depois retorna ele acelerando, pára a moto em frente à oficina, abre o tanque e mostra orgulhoso a gasolina acima da marca limite. Bom demais… Me dá 40 Bolivianos do troco e eu lhe devolvo como agradecimento. Se fosse pagar o preço cobrado de estrangeiros, seria mais de 120.

Agora foi a vez da moto do Marcelo. Placa da motoquinha sobre a placa brasileira, saiu ele do mesmo jeito, todo importante. Desta vez ele disse que iria  em outro posto para não dar muito na cara. Demorou mais de meia hora e já estávamos preocupados, mas ele voltou e o Marcelo deu a ele o troco também. Em poucos segundos a placa boliviana foi retirada e nossas motos voltaram a ser brasileiras. E assim foi nossa participação em mais uma novela boliviana para encher os tanques das nossas motos.

Resolvido o problema da gasolina, nos despedimos dos nossos amigos e seguimos viagem.

Fomos até Patacamaya e pegamos a estrada que não conhecíamos. Começou excelente, depois alguns trechos com irregularidades, alguns poucos buracos, serpenteando pelas montanhas e nos levando cada vez mais alto.

Mesmo com muitas montanhas ao nosso redor era possível ver ao longe a formação de grandes nuvens negras que começavam a cobrir o horizonte, até que a chuva nos pegou, inicialmente fina e fria, depois começamos a sentir o impacto de pequenas pedras de gelo sobre os capacetes e as roupas de cordura, que com a velocidade que desenvolvíamos chegava a queimar nossa pele. Vimos também pequenos flocos de neve que caiam suavemente e se agarravam em nossas roupas.

Cessado o bombardeio, paramos na beira da estrada para apreciar e fotografar as montanhas próximas cobertas de neve.

Continuamos sob fina e fria chuva até a divisa com o Chile, onde também paramos para fotografar e comemorar a chegada no quarto país de nossa viagem e a expectativa de entrar numa fase mais fácil. 

Os procedimentos na imigração e aduanas bolivianas e chilenas não foram rápidos, pelo contrário. Haviam vários ônibus fazendo os trâmites que eram lentos e se arrastaram por mais de duas horas até o cair da noite.

Ainda tínhamos quase 200 km para percorrer. Mesmo confiantes na qualidade das estradas chilenas, consideradas as melhores da América do Sul, perguntamos para o frentista do posto na divisa onde abastecemos sem dificuldade, mas pagando mais que o dobro do preço sobre as condições do trecho que vinha pela frente. Ele nos disse que tinha 32 km em obras.

Na aduana voltamos a questionar os funcionários e confirmaram que haviam 32 km em obras. Seguimos pela estrada acompanhados pelo escuro da noite e pelo frio intenso, sem estrelas no céu e muitos buracos no asfalto. Estávamos achando que o trecho em obras era o que estávamos passando, mesmo sem ver uma única máquina ou aviso a respeito. De repente vimos uma fila de caminhões parados na pista. Lentamente fomos avançando pela pista contrária, parando de vez em quando para deixar passar os caminhões que vinham em sentido contrário. Até que chegamos no início da fila. O trecho de 32 km, em obras, começava ali. Num processo burocrático, os responsáveis juntavam um grande grupo e o escoltava até o fim do trecho em obras, retornando com outro grupo. Tivemos que esperar cerca de 50 minutos para começar a percorrer a estrada, se é que podemos chamar aquilo de estrada. Uma mistura de cascalho e barro esburacado com poças d’água por todos os lados. Foram 32 km de curvas sem fim, à noite, com um nevoeiro intenso que nos impedia de enxergar mais que 50 metros à frente. Foi uma tensão incrível. Quando finalmente chegamos no fim do trecho em obras e o carro de escolta nos deixou seguir em frente, achamos que pegaríamos um bom asfalto que nos permitiria chegar ao nosso destino com segurança. Mas fomos surpreendidos por uma estrada muito pior que a anterior. Se antes tinha cascalho misturado no barro, agora era só barro. As motos foram escorregando pela montanha, a 20 km/h, e a névoa fria e úmida se espalhava por todos os lados. Foram mais de 20 km de terror até chegar o asfalto. Mas não melhorou muito. Em cada curva encontrávamos mais e mais pedras espalhadas sobre a pista caídas das encostas das montanhas. Curvas de 180 graus, névoa e escuridão total. Às 11 horas da noite, três horas depois de passarmos pela fronteira, havíamos percorrido apenas 60 km. Esgotados, vimos uma placa indicando uma cidade nas redondezas chamada Putre. A primeira entrada era de cascalho e não animamos percorrê-la. Chega de terra por hoje. Seguimos até outra entrada, desta vez de asfalto e a indicação de 4 km até a cidade. Foram os quatro quilômetros mais longos de nossas vidas. A névoa não nos deixava enxergar mais que 10 metros à frente. Curva após curva, percorremos a estrada deserta quase parando por causa das pedras caídas no asfalto, fora o medo de uma outra pedra resolver cair sobre nossas cabeças. Até que chegamos na pequena cidade, onde na entrada vimos uma placa de hospedagem. Fomos procurar o local e não achamos. Finalmente encontramos uma pessoa andando na rua e perguntamos sobre um lugar para pernoite, nos indicando uma casa próxima. Batemos à porta e uma senhora nos atendeu. Tinha um quarto disponível e sem ver não tivemos dúvida em pegá-lo. A senhora arrumou no quintal do vizinho um lugar para nós deixarmos as motos. Não tivemos força ou disposição para retirar a bagagem que ficou sobre elas. Fomos deitar retirando apenas a roupa de cordura. Um pequeno quarto com uma cama e um beliche, sem banheiro ou aquecimento. Sem almoço, sem jantar, sem lanche, apenas alguns biscoitos com água desde o simples desayuno no hotel, antes de pegar estrada. E lá fora um frio abaixo de zero.

Você deve estar se perguntando sobre as fotos. A máquina que levava no bolso deve ter ficado em algum lugar entre a Bolívia e o Chile, junto com as poucas fotos que havia conseguido tirar durante o dia marcado pela chuva, frio e escuridão. Até as que mostravam o processo de emplacamento das motos na Bolívia se foram. Sobraram somente estas que tirei com a HX1.

Números do dia:

Distância percorrida: 723,7 km
Distância total: 6.800,7
Gasolina: R$ 55,19
Valor por litro: R$ 1,93
Hospedagem: R$ 35,00

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