Às 7h30 saíram com a moto a fim de procurar uma oficina para, novamente, soldar o bagageiro e o quadro elástico. Acharam uma e o Fernando teve autorização para aplicar as soldas: elétrica no quadro elástico e oxi-acetileno no bagageiro, que havia quebrado por suportar peso acima do inicialmente previsto.
Tudo consertado, partiram com destino a Feira de Santana.
O dia já começara estranho, pois assim que saíram o pneu furou, mas como havia borracheiro nas proximidades, foram até ele a fim de não se desgastarem logo cedo com esse trabalho.
Após pneu consertado e acreditando não haver mais empecilhos, às 8h30 foram à luta com os ânimos renovados.
Não demorou e viram numa pracinha um pequeno “rinque de patinação”, coisa difícil de ver, ainda mais em cidade do interior.
Que pena, pensaram eles. Caso tivessem descoberto antes teriam se preparado para uma pequena exibição, ainda mais que era domingo e o pessoal certamente iria para a pracinha ver a novidade.
Nota: Guardados nas malas laterais, os dois pares de patins e as ferramentas; na traseira a bagagem; o peso do piloto e do garupa; mais o próprio peso da moto, tudo isso somado contribuía com muita carga para ela carregar nos milhares de quilômetros que percorreram por estradas de terra esburacada; enfrentando pedras e costelas; subindo e descendo montanhas; sofrendo quedas; e atolando em profundos lamaçais jamais vistos.
Estava sendo realmente uma façanha fantástica, espantosa!
Contando ninguém acreditaria…, nem mesmo o piloto, segundo ele mesmo afirmou!
Acreditava que diriam ser isso “conversa de motociclista”.
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Bom, voltando então a Rio-Bahia, a narrativa havia parado quando eles estavam saindo de Jequié, onde continuaram a comer poeira e fazendo o possível e o impossível para poderem chegar a Feira de Santana pelo menos no início da tarde.
A paisagem neste trecho não é digna de grandes admirações por ser semelhante às muitas pelas quais passaram: muito sol, caatinga, urubus sobrevoando em círculos lá no alto, gaviões em voos rasantes emitindo trinados, todos possivelmente à procura de algum alimento. Uma cobra colorida aqui, uma aranha caranguejeira ali, camaleões, sem falar nos preguiçosos jabutis, que atravessando as estradas (em alta velocidade) têm por hábito derrubar motociclistas (fato que acontecera com eles).
Iam eles muito bem, quando de repente “plak” um forte estalo na parte da frente e em seguida a moto dá uma guinada para o lado, obrigando o piloto forçar imediatamente o guidão para o lado oposto a fim de equilibrá-la e evitar que caíssem.
No momento não tinham ideia do que poderia ter acontecido, pois nunca antes acontecera e a força feita no guidão para mantê-la equilibrada era enorme.
Refeitos do susto, pararam para ver o que havia acontecido e descobriram que a união inferior, uma das responsáveis pela junção dos dois telescópicos com a mesa onde fica o guidão, partira, ficando agora suportada apenas pela união da parte superior. Na extremidade (inferior) os telescópicos ficam presos no eixo da roda dianteira.
Por não haver como ajeitá-la ali, continuaram a jornada assim mesmo, tendo em vista que o local onde estavam não tinha nada nem ninguém. Até os animais descritos só estavam de passagem, porque eles não eram bestas de ficar num lugar tão inóspito. Mediante tal situação, foram então devagar, com o piloto fazendo muita força no guidão a fim de mantê-la direcionada e rezando para que não quebrasse a parte superior da mesa porque, caso isso acontecesse teriam de levá-la nas costas (força de expressão).
Um fato a considerar é a resistência da mesa superior, que mesmo com excessiva força no guidão para controlar a moto, ela ia aguentando.
Então, após cerca de uns 10 quilômetros enfrentando costelas, pedras e buracos, finalmente surgiu um pequeno povoado.
Nota: Nessas ocasiões, um povoado, por menor que seja, é como se fosse uma ilha para o sobrevivente de um naufrágio.
Entrando no povoado, procuraram por uma oficina qualquer (oficina de moto seria luxo no local) e acabaram encontrando próximo da estrada uma bem modesta. Estava vazia, como que abandonada, mas por sorte apareceu alguém. Já sabedores que naquele povoado não havia energia elétrica, solda elétrica nem pensar. O Fernando, que entende de soldagem explicou a situação e disse que poderia ser uma solda com maçarico mesmo, de forma que a junção suportasse até chegarem a Feira de Santana ou outro local onde houvesse eletricidade, quando lá então seria aplicada solda elétrica.
O mecânico que a tudo escutou respondeu não ser possível soldar com maçarico porque o oxigênio havia acabado e em seguida mostrou o tubo de gás. Fernando, mais que depressa, pegou o maçarico, olhou o manômetro e mexeu nos reguladores. Cheirando o “bico” do maçarico, em seguida, após ter deitado o tubo no chão falou para o mecânico:
“Eu posso tentar fazer a solda com o que possa conseguir aqui?”
Aparentando incredulidade, o mecânico respondeu:
“Sim! Pode usar à vontade”.
Foi um mistério o que o Fenando inventou, mas o bom é que acendeu o maçarico e rapidamente conseguiu fazer a solda depois de aquecer (enrubescer) bastante o local a ser soldado. Tudo pronto, agradeceram pela oportunidade e deram um dinheiro ao mecânico que ficou coçando a cabeça e olhando para o tubo deitado no chão.
Mais adiante, perguntando que milagre fora aquele que havia feito, com toda calma Fernando respondeu:
“O manômetro (marcador) é que está enguiçado. Ao abrir os “dosadores” e cheirar o “bico” do maçarico percebi que havia material. Talvez o mecânico, por não saber dosar bem a mistura na regulagem do “bico” quando só restou pouco material achou que tivesse acabado, mas o defeito estava no manômetro por não marcar direito”.
Então, novamente piloto lhe perguntou:
E por que razão você deitou o tubo no chão?”
Novamente, respondeu:
“Se eu acendesse direto o maçarico ficaria claro que o mecânico não sabia lidar com o aparelho ou que até estivesse mentindo. Então deitei o tubo para mostrar estar aplicando recurso e assim não o desmoralizaria.”
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Esse incidente atrasou muito a viagem e maior atraso ainda houve devido à baixa velocidade que tiveram de manter a fim de evitar ao máximo dar trancos em buracos devido à solda oxi-carbureto e não elétrica, que seria a ideal.
Pelas anotações feitas no Diário, isso ocorreu entre o povoado de Milagres e Feira de Santana.
Conforme o ditado que diz “desgraça pouca é bobagem”, como se não bastasse, o motor começou a falhar quando já havia anoitecido.
Prestando atenção no problema, o piloto percebeu ser falta de gasolina. Como o tanque possuía dispositivo de reserva para essas ocasiões (ficava embaixo do tanque) ele foi aberto e tudo voltou ao normal. Mas eis que logo um pouco adiante foi a vez do carburador começar a apresentar novamente problema ao provocar engasgos no motor, obrigando-os a uma parada para limpá-lo. E por já estar escuro e não tendo a moto farol e eles qualquer objeto a fim de iluminar o trabalho de desmontar, limpar e depois montar o carburador, essa “operação” demorou um pouco.
Enquanto faziam a limpeza à luz do luar, viam bichos pequenos passarem próximos a eles e escutavam com grande nitidez ruídos que vinham de dentro do mato. Isso lhes lembrou de que quando trafegavam à noite era normal verem vultos de bichos atravessarem correndo a estrada, certamente por ficarem assustados com o barulho da descarga do motor num local ermo e silencioso, onde se escutava até o voo das borboletas. Mas agora, parados, os animais passavam calmamente perto deles porque tudo estava calmo e tranquilo.
Uma cobra, de tamanho considerável, furtivamente foi se aproximando do Fernando e, no momento de dar o bote em cima dele, ao ver a sua cara, parou, arregalou os olhos abriu a boca jogou a língua pra fora deu um baita salto pra trás devido ao susto que tomou e tratou logo de tomar outro rumo, voltando em disparada para o mato. Procurando não melindrar o companheiro, nada lhe foi contado porque poderia ficar chateado.
Foi tudo brincadeira porque nada disso da cobra aconteceu.
Terminada a limpeza do carburador, partiram e, após andarem muito vagarosamente durante bastante tempo, às 21h chegaram finalmente a Feira de Santana e imediatamente procuraram um lugar para pernoitar, pois estavam muito cansados e com o corpo bastante dolorido.
Indagando ao pessoal do lugar sobre onde poderiam repousar, foi-lhes indicado um hotelzinho simpático e agradável. Dirigindo-se para lá, caíram direto na cama, de boné, roupa, sapatos e só acordaram no dia seguinte pela manhã, já revigorados. Só aí então é que foram tomar banho e logo depois cearam um lauto café, pois a fome era enorme.
Enquanto comiam, comentaram que o cansaço tinha seu fundo de razão ao lembrarem-se das fogosas “quengas” de Ilhéus.
Esse trajeto com cerca de 250 quilômetros foi percorrido em estrada de terra e vegetação de cor marrom, que assim fica devido ao acúmulo da poeira do barro da estrada sobre a folhagem da esquelética vegetação local. Embora tenham passado por vários povoados, o piloto confessou não ter feito qualquer anotação nessa oportunidade. Possivelmente até alguma história houve, mas pelo tempo já decorrido não lhe foi possível lembrar sem o suporte de uma anotação no Diário da Viagem.
Há, todavia uma passagem que não foi anotada, mas dela o piloto se lembrou do acontecido, pelo fato de ter ficado bem marcante:
Na estrada, a caminho de Feira de Santana, ao passarem por um armazém de beira de estrada, resolveram parar a fim de beberem alguma coisa. Estavam ainda na soleira de uma das portas, quando uma senhora negra, que vinha passando com um menino também negro, de uns 10 anos de idade, para poderem pegar um pouco de sombra, pararam junto a uma das portas do armazém, ficando então próximos ao piloto.
Ela suava bastante, o menino também, mas ele notou na criança, pruridos e feridas pelo corpo. Perguntando o que havia acontecido com o garoto, ela não soube explicar. Disse que ali na localidade onde moravam nem farmácia havia e para saber o que ele tinha teria de levá-lo a algum Hospital. Ela, pobre, sozinha e sem dinheiro até para condução, não sabia como fazer para tratar o menino. E o garoto, coitado, que por sua vez escutava inquieto e angustiado a nossa conversa, demonstrava na sua fisionomia o sofrimento que sentia devido às coceiras, possivelmente causadas pelos pruridos.
Sensibilizado, o piloto lembrou que estava levando com ele um pouco de Anaseptil em pó (antibiótico da época) para qualquer eventualidade no caminho. Foi até a moto, apanhando na maleta de roupas o tubinho com o produto. Na tampa do tubinho havia vários furinhos para através deles sair a quantidade de pó desejada.
Mostrando à senhora como era o pó e dizendo-lhe das suas propriedades, ele perguntou se ela queria que aplicasse no menino. Respondeu sim porque, não tendo alternativa, ela já estava com muita pena pelo sofrimento do garoto, que muito se coçava, abrindo feridas e reclamando da angústia que sentia com isso.
Feitas as aplicações nas feridas, o menino, que passivamente a tudo assistia e aceitava sem nada falar, parecia estar contente e agradecido com aquilo. Tanto é que durante o tempo no qual ficaram saciando a sede, repararam não ter o menino se coçado nenhuma vez sequer. Até sua expressão, antes contraída, estava agora mais solta e tranquila.
Para que a mãe do menino pudesse fazer outras aplicações, deram-lhe o Anaseptil (compraram outro tubo quando chegaram a Feira de Santana), também algum dinheiro para que pudesse tomar alguma providência no restabelecimento do menino e foram embora.
Se o garoto ficou curado ou não, não souberam. Mas acreditam que tenha ficado em razão do imediato alívio que a criança sentira logo após aplicação do remédio.
No retorno para o Rio, no mês seguinte, ao passarem pelo mesmo local nem lhes passou pela cabeça procurar saber qual o resultado obtido pelo garoto. E isso será aceitável tendo em vista os trágicos acontecimentos ocorridos na volta, os quais serão contados mais adiante.
Motociclistas Invencíveis
Semanalmente vamos publicar, aqui no Viagem de Moto, capítulos do livro Motociclistas Invencíveis, romance extraído de uma viagem com moto ocorrida em 1960.
Conduzindo na garupa da moto um amigo, piloto sai do Rio de Janeiro por estradas de terra a fim de encontrar sua linda namorada, que saindo de Itabuna (BA) para morar no Rio de Janeiro, de repente, da noite para o dia, desaparece sem deixar rastros. Chegando a Itabuna, piloto descobre que ela fugia de assassinos (contratados para matá-la), pelo fato dela ser testemunha do assassinato de seu pai, ex-cacaueiro na região.
Por acontecerem muitas aventuras e novos amores pelo caminho, foram até a Paraíba.
Enfrentaram sol, poeira, chuva e lama. Ajudaram, foram ajudados, acontecendo inclusive que, por levarem uma garota (estava num leito de morte) entre eles dois até ao hospital, salvaram sua vida. Em si, a história mostra como eram os motociclistas Nos Deliciosos Anos Dourados.
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