Harley-Davidson Brasil Challenger – CBM Prova Hiperação

Eram 19h30 de sexta-feira, quando estacionei a Electra no posto BR, próximo ao condomínio Mandala, na avenida das Américas, a fim de esperar os amigos Newton Valle e Aloísio Bindemann, enquanto me preparava para iniciar a prova. A previsão era de chuva durante todo o roteiro, que tinha Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto e Belo Horizonte como referências, fechando o circuito com o retorno ao Rio. Nesse roteiro, um percurso de no mínimo 1.609 km deveria ser feito em 24 horas para possibilitar aos quase 50 Harleyros das cidades citadas a certificação da Confederação Brasileira de Motociclismo no CBM Hiperação 1.500 Km, assim como no Iron But 1.000 Miles americano.

Mesmo tendo alguma experiência em longas viagens, pilotar uma Harley-Davidson durante 24 horas ininterruptas era um desafio que eu não tinha certeza absoluta de que em condições normais poderia ser superado. Mas, estava contente em ter aceitado participar do entretenimento, onde eu estaria no palco da estrada com os meus amigos, quando na grande maioria das outras opções de diversão de massa pagamos caro para sermos apenas platéia e claque, batendo palmas para maluco dançar. Pois, apenas em raras oportunidades, como durante as viagens de moto, nos enriquecemos mais como indivíduos, conhecendo lugares incríveis e fazendo amizades com pessoas memoráveis, além da oportunidade de ficarmos mais íntimos de alguém que pouco notamos, mas que na intensa solidão da alma, normalmente, descobrimos que somos bem menores e mais frágeis do que imaginávamos.

Deu 19h50 e, como não apareceu ninguém, fui convocar o gerente do posto como testemunha da minha partida, encher o tanque e fotografar o odômetro total com o recibo do cartão de crédito que usei para pagar o combustível, além de preparar o espírito para seguir sozinho. Como a umidade avisava que iria começar a chover, vesti o equipamento de chuva, sem qualquer aparato contra o frio. A 5 minutos da partida, o Newton Valle me telefona; estava me esperando no posto Ipiranga da Vila Olímpica, na avenida Ayrton Senna.

Na Linha Amarela, Avenida Brasil e início da Rodovia Presidente Dutra, seguimos superando o trânsito intenso, até Seropédica. Mais à frente, começou o agitado Rock’n’Roll: marchas para cima, devorando vorazmente a estrada. Um pouco além do posto BR Belvedere, iria começar a Serra das Araras e a Dyna do Newton me ultrapassou para aproveitar o primeiro parque de diversões, esvanecendo-se na escuridão. Acelerei mais para não perder a luz vermelha da lanterna do companheiro e, numa curva fechada, que tinha a tomada em ascendente e a saída em descendente, quase decolei com a pesada Electra para fora da curva e, para mantê-la na estrada, baixei duas marchas e inclinei a bruta de volta ao solo pátrio, até a pedaleira esquerda arrancar fagulhas do chão. Então, humildemente e com o coração na boca, retornei a tranquilidade do Blues. Mais à frente, a despojada Dyna valsava serena, na pista da direita, esperando a parruda Electra chegar.

Como além da noite, avançaríamos pela madrugada, a razão recomendava ritmo e moderação. Mas, a boa estrada vazia serpenteava como um esguio e excitado corpo de estonteante mulher, pedindo mais e mais aceleração. Depois do abastecimento em Queluz, nas proximidades de Taubaté, a Dyna ultrapassou novamente a Electra para iniciar logo a próxima hora de recreio, na Carvalho Pinto. Segui sozinho no meu lento ritmo de 140 km/h e mais tarde, parei para abastecer no último posto BR da Ayrton Senna, conforme planejado. Pelo telefone, falei com o Newton, que me esperava 60 km atrás, no Franco Assado. Como ainda estava no início da prova e eu já tinha percebido que o piloto da Dyna era cobra criada e de melhor estirpe do que eu, conclui a ligação: – Irmão, a gente se encontra pelo caminho.

Antes de partir, como o vento estava congelando a capa de chuva, coloquei um colete de lã para o corpo parar de tremer. Então, acelerei para o coração de São Paulo, atravessei a Marginal Tiete e entrei na Anhanguera com o Blues a rolar, serenamente, beirando 140 km/h. Pois abaixo disso, seria canção de ninar. Durante um bom tempo, avancei pela estrada perfeita, de curvas suaves e com o balizamento pipocando nas minhas retinas como fogos de artifício. Quando parei para abastecer no Graal Castelo, em Limeira, já era alta madrugada e até então, nada de sono, pois a adrenalina mantendo o meu coração em festa, apartava Morpheu para longe. Mais uma ligação e a Dyna, sem me ultrapassar na estrada, já estava com uns 10 quilômetros de Anhanguera, a minha frente. Acelerei ao encontro do amigo. Porém, me confundi com as informações e ultrapassei o ponto onde ele estava. Mas, nem cheguei a pensar em voltar, porque em instantes o farol da Dyna já estava na minha ala. Mais a frente, uma carreta atropela uma caminhonete e nos bloqueia a estrada por meia hora.

Curtindo a estrada excelente, de repente, estávamos às portas de Ribeirão Preto, no rumo do centro da cidade. Na primeira oportunidade, decidi seguir para o leste, balizado pelos sutis clarões da aurora, anunciando a chegada do rei Sol, no horizonte nublado. Depois de um tempo de dúvidas, avançando na razoável estrada, surgem placas com os nomes das cidades de referência que ratificavam a proa do meu GPS. Então, paramos para abastecer em Santa Cruz da Esperança, próximo à fronteira com as terras eriçadas de Minas Gerais. Depois de São Sebastião do Paraíso, a Dyna passou a liderar o voo de ala das Harleys e fez a Electra envergar para se prender aos traçados das sequências intermináveis de curvas planas e volumétricas, fazendo o Twin Cam urrar, nas reduzidas e acelerações sequenciais.

Depois de abastecermos em Capitólio, enquanto admirávamos as calmas águas da represa de Furnas, o Rock’n’Roll continuou na MG-050, fazendo uma pausa em Mateus Leme, para o show encerrar somente nas imediações de Betim. O meu aprendizado se restringiu à expertise do Newton Valle na Dyna, me mostrando que eu não era tão bom piloto de Electra conforme eu me imaginava. Mas, não fiquei decepcionado, porque me veio à mente o famoso texto Desiderata, ao me lembrar que na vida haverá sempre alguém melhor ou pior do que nós, demonstrando ser um fardo inútil, tanto a inveja como a vaidade.

Guiados pelo instinto e pelas placas, segui pelo Anel Rodoviário a fim de não entrar em Belo Horizonte. Às 12 horas, em ponto, estacionamos as Harleys em frente ao restaurante Faz de Conta, na BR-040, um pouco além da saída de BH, acumulando uns 1.350 km, a 8 horas do término da prova. Para quem gosta de doces bem feitos e da saborosa e sortida cozinha mineira, não existe outro lugar.

Com a gula de estrada e boa comida satisfeita, seguimos passeando para digerir as iguarias mineiras. Mas, não pudemos relaxar porque até Conselheiro Lafaiete, era total a precariedade da péssima estrada, um lapso de vergonha para a querida Minas Gerais. Após o abastecimento em Carandaí, a Dyna sonolenta sumiu no retrovisor. Como o Newton tinha aventado parar a cada 100 km, reduzi a velocidade, parei, andei devagar… e logo meti o pau. Conclui a prova abastecendo em Petrópolis, às 17h03. Logo, a Dyna chegou. Partimos juntos e cheguei em casa às 18h50 com o corpo moído e o coração repleto de felicidade.

Rio de Janeiro, 06 de outubro de 2013.
Por Artur Albuquerque


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *