8º dia – Marcapata – Cuzco

Choveu a noite inteira e o frio foi de rachar em Marcapata, uma pequena cidade no meio dos Andes Peruanos, que tem quase que só uma praça e algumas poucas ruas. Estava frio e muito úmido. Deve ter ficado abaixo de zero. Eu estava com segunda pele e uma roupa por cima, duas meias grossas, luvas e debaixo de três cobertores e não suei, tanto que tive que ir ao banheiro três vezes. Um banheiro fedido e sem luz. Senti dor de cabeça por causa da altitude (pode ter sido por causa do cheiro dos cobertores também). A cama era brincadeira, um colchão molenga estirado sobre um estrada com grandes espaços entre as tábuas.

Acordamos cedo, deixamos a bagagem pronta, fomos a uma venda onde compramos biscoitos e água para o desayuno e umas folhas de coca para o soroche, que experimentamos na garagem da comissaria, onde fomos conversar com o policial e ele nos disse que poderíamos ir buscar a moto e pegar os documentos na volta que eles ainda estavam terminando de fazer o relatório do acidente.

Pegamos minha moto e sob uma chuva fina e fria fomos para a estrada. Não andamos nem um quilômetro e havia uma barreira caída sobre a pista, com muita lama que ainda descia da encosta. Um trator trabalhava para remover, mas parecia que quanto mais lama ele tirava, mais caia. Ficamos aguardando um tempo e como parecia que ia demorar retornamos para Marcapata, onde ficamos aguardando até ver o movimento de caminhões que haviam sido liberados. Retornamos para a estrada e fomos ver como era a passagem. Não dava para passar com uma Harley. Os veículos com tração passavam com muita dificuldade.

Ficamos aguardando eu fui ver o trator que havia voltado a tirar mais lama e depois de um tempo liberou para a passagem dos caminhões. Continuei achando que não dava para nós. Dali a pouco o Marcelo passa na boleia de um caminhão acenando para mim.

Retornei para Marcapata e fiquei esperando. Como demorou muito, voltei para o local do deslizamento e fiquei lá vendo o trabalho do trator. De repente escutei ao longe o ronco característico de uma Harley. Corri para o barrando e vi de longe o Marcelo contornando as muitas curvas e subindo a montanha. Logo depois ele aparece na frente da fila, do outro lado do deslizamento. 

Mais uma vez liberaram para os caminhões e eles passaram com muita dificuldade. Alguns veículos 4X4 passavam tambem, mas com dificuldade. Os automóveis sem tração que tentavam acabavam retornando de um determinado ponto. E a chuva continuava caindo, fraca mas persistente.

De repente vejo o Marcelo ligar a moto e ir em direção à lama. Pensei, “ele não vai tentar…” E lá foi ele… Liguei a câmera e comecei a filmar a aventura do meu amigo, correndo para mais perto (a 3.600 m de altitude). Ele foi, foi, foi e, parou no meio da lama. Comecei a rir da situação, mas ele começou a gritar “Ajuda por favor”… Ninguém se aventurava na lama para ajudar. Neste momento caiu mais um monte de lama na estrada e vi que a coisa era séria. Desliguei a cãmera e corri até ele, afundando minha perna na lama até a metade da canela. A moto estava meio tombada, com a roda traseira girando na lama e o Marcelo fazendo força para mante-la em pé, mas seus pés escorregavam e ele não tinha força suficiente para manter os quase 400 kg da moto na posição. Comecei a puxar, mas nós dois sozinhos não tinhamos força nem o piso dava sustentação para aprumá-la. Até que um motorista de caminhão também veio em nosso socorro e os três conseguimos endireitar a moto. O Marcelo religou o moto, saindo muita fumaça do escapamento em contato com a lama. Ele gritou apóia de lado que eu vou prosseguir. Ele começou a avançar lentamente, a roda lenvantando lama, o motorista nos deixou sozinhos e fomos os dois pelo resto do atoleiro. Vencemos!!! Quatro horas para atravessar 100 metros de estrada. 

Veja no vídeo abaixo uma parte inicial desta cena.

Uma parada para recuperar o fôlego, uma foto para mostrar as pernas cobertas de lama e retomamos a estrada em direção a Marcapata. Pegamos nossa bagagem, colocamos nas motos, devolvemos as chaves dos “apartamentos” e fomos para a comissaria buscar os documentos do Marcelo. Chegando lá os policiais, muito amáveis, pediram para o Marcelo sentar em uma cadeira para eles pegarem o depoimento dele para o relatório. Somente procedimentos administrativos, diziam eles, para se resguardarem de qualquer questionamento futuro da embaixada brasileira (?) e para arquivamento posterior. Foram quase duas para o relatório descrevendo o tombo, o atendimento, uma declaração de que foi tratado com dignidade pelos oficiais, além de acabar a tinta da impressora e vermos um processo de enchimento do cartucho de tinta com uma seringa pelo comissário de polícia.

Neste meio tempo chegou a notícia de que o deslizamento havia aumentado e a estrada fechada em definitivo até a chegada de mais máquinas.

Pelo que já havíamos lido em relatos de outros viajantes, esperávamos ter que fazer alguma contribuição para os policiais, entretanto eles se foram o tempo todo gentis, dando-nos muita atenção e nos liberando no final sem qualquer mordida. Estavam sendo zelosos e cumprindo suas obrigações, que neste caso nos pareceram muito burocráticas.

Enfim, retornamos para a estrada. Continuava chovendo e as curvas se sucediam, cada vez mais difíceis, com grandes montanhas de um lado e precipícios do outro. A região tem um visual maravilhoso, mas não pudemos aproveitar muito porque chovia e ainda estávamos tensos com o acontecimento do dia anterior. Avançávamos lentamente, fazendo curvas a 20, 30 km / h. Passamos por dezenas de curvas que faziam literalmente 180 graus. Seriam apenas 200 km a percorrer, mas que pareciam uma eternidade. Sobe, sobre, desce, sobe, sobe… curva, curva, curva, curva… Grandes e pequenas pedras caídas sobre o asfalto, exigindo atenção e nos fazendo rezar para nenhuma cair em nossa cabeça.

De repente mais um deslizamento interrompendo a estrada, que desta vez parecia ter pegado um caminhão bi-trem enquanto passava. Esperamos um tempo e como não aparecia um trator para ajudar, os motoristas se reuniram, pegaram pás, paus, terra e pedras e começaram a ajudar o caminhão a sair do local. As suas rodas continuavam patinando no asfalto escorregadio, impedindo-o de prosseguir, mas a força coletiva fez com que conseguissem endireitá-lo o suficiente para os outros veículos passarem em uma pequena faixa coberta de lama. Os caminhões foram passando aos poucos, com muita dificuldade, depois os automóveis e eu e o Marcelo combinamos que iríamos atravessar também, um pilotanto e o outro apoiando do lado. Ele foi primeiro, eu correndo do lado, turbinado por umas folhas de coca (Não é que o treco funciona???). No meio do percurso ele sentiu confiança e aumentou a velocidade, passando ileso pela lama. Eu retornei, montei na moto e dançando de um lado para o outro também consegui passar. Mais um obstáculo transposto.

Continuamos atravessando a Cordilheira dos Andes e sentindo muito frio apesar de bem preparados com uma roupa que nos fazia parecer astronautas: segunda pele, roupa, forro térmico, roupa de cordura, duas luvas e botas. Era um frio úmido que penetrava a roupa e nos deixava em dúvida se a roupa estáva molhada ou gelada.

Até este momento a paisagem mesclava grandes montanhas de rocha cobertas com vegetação densa mas baixa. Aí chegamos ao ponto culminante do dia, 4.725 metros de altitude. Paramos para fotografia. Tirar a luva grossa foi um tormento, mesmo mantendo a luva de segunda pele a mão começava a ficar dormente de frio. A sensação térmica era de uns 10 graus negativos. 

Agora começamos a descer, descer, descer, mas as curvas continuavam aparecendo sucessivamente, cada vez mais perigosas e molhadas, várias com 180 graus. A paisagem mudou de mata para grandes vales cobertos com relva baixa. Vimos as primeiras lhamas, que corriam para longe quando parávamos para fotografar.

Foi anoitecendo e ainda faltavam 50 km para Cuzco. Até que depois da cidade de Urcos a chuva parou e começaram a aparecer grandes retas, que nos permitiu desenvolver bem melhor nossa viagem. Os 150 km iniciais foram feitos em 4:30 horas e os 50 finais em menos de 30 minutos.

Chegamos em Cuzco já de noite. Entramos por uma grande avenida onde muitos microônibus, vans e taxis disputavam os passageiros nos pontos e a pista com os outros veículos, nós entre eles. Uma confusão danada, uma buzinação sem motivo, tinha motorista que parecia que buzinava de acordo com o ritmo da sua respiração. E para piorar, os motoristas mudam de faixa e arrancam sem olhar no retrovisor. Procuramos o hotel que havíamos reservado para o dia anterior, a única vez que havíamos feito a reserva antecipada e não usamos porque conseguimos cumprir o cronograma. Foi uma tarefa difícil, pois sem GPS, que não deu mais sinal de vida, não conseguimos encontra-lo.

Fomos para outro hotel, chamado El Puma, onde contratamos para o dia seguinte uma empresa de turismo para nos levar para Machu Picchu. Era um hotel que vimos em um prospecto e que falava que tinha estacionamento e internet. A internet tem, apesar de lenta, mas o estacionamento fica do outro lado da cidade (disseram que ficavam bem próximo). O mensageiro do hotel foi na minha garupa, sem capacete, nos guiando até lá.

Havíamos comido até então apenas biscoistos e água e estávamos esgotados. Fomos para o restaurante do hotel onde o Marcelo comeu um espaguete e eu uma carne deliciosa com molho a base de vinho. Uma delícia aumentada pela fome.

Números do dia:

Distância: 198 km
Total percorrido: 4.828 km
Consumo: 13,431 l
Média de 14,742 km / l
Preço médio: R$ 2,151 / l
Gasto combustível: R$ 28,88
Hospedagem: R$ 68,64
Lanches: R$ 5,00
Jantar: R$ 19,23

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