Watson Lake

em

Cedo, pela manhã, abri as cortinas e vi que o tempo estava bom. Tinha parado a chuva. Olhei a V-Strom no estacionamento em frente à recepção. Estava ali tranquilinha, me esperando. É, vamos lá V-Strom, vamos para mais uma jornada.

Até Watson Lake, no Yukon, seriam mais 900km. Minha mente estava serena nessa manhã. Tinha dormido bem, depois de mandar notícias e também recebê-las do Brasil, e, como já estava mergulhado num ponto bem avançado da viagem, com tudo bem até agora, não tinha mais aquela ansiedade.

O hotel oferecia café da manhã, montado em um dos quartos embaixo. Só daí já dava pra ver que não era grande coisa, mas havia um suco de laranja artificial bem gelado que quebrava um galho, fora o café e outras coisas para astronautas. Com o tempo seco pude examinar a moto. O protetor da corrente estava sem um dos parafusos, o de trás, que havia caído no ano anterior. Precisava sempre checar isso, pois agora estava preso com cintas plásticas, mas elas se rompiam pela vibração e o atrito com os metais. Troquei isso. Tava cheio de areia por lá, grudada. Estiquei a corrente e engraxei. Enchi os pneus com o enchedor de pneus “Tabajara” que levava, ligado na tomada 12V; completei um pouco o óleo. Pronto V-Strom, agora você está perfeita para seguirmos. Quer dizer, falta a gasolina. Tinha também que juntar toda a tralha outra vez. Sentia calor na velha roupa de cordura, já lavada de chuva e cheia de insetos pregados.

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Com o pé na estrada, a primeira coisa a fazer era abastecer. Tinha um posto ali perto, na rodovia mesmo. Era do tipo pré-pago. No Canadá e nos EUA nunca sabemos qual o sistema exato do posto de gasolina. 99% das vezes é self-service. Às vezes se abastece livremente na bomba, sem ter que pedir nada a ninguém, e depois é só entrar na lojinha de conveniência e pagar com cartão de crédito. Se não pagar, está tudo filmado e eles mandam a polícia atrás de você. Esses são os melhores, porque se pode encher o tanque à vontade, ter a certeza de que estará cheio. Já os pré-pagos, como este, você tem que dar um chute quanto ao valor que irá colocar, e torcer para que encha o tanque, sem faltar nem sobrar. Se faltar tem que ir comprar mais, ou fazer uma próxima parada antes da hora, se sobrar, eles estornam no cartão. Nunca falhou, mas sempre fica a desconfiança: cadê meu dinheiro? Tive uma pequena discussão com a senhora atendente. Não que eu já não soubesse de tudo isso, mas acho que estava me sobrando energia para discutir. Quando não consegui ligar a bomba, fui lá dentro e pedi para ligá-la, que eu ia encher o tanque. Ela quis saber o quanto, e eu disse que era “cheio”. Quanto “cheio”? Cheio é cheio, minha senhora, eu não sei. Ela disse: tem que saber, a moto é sua não é? Ah, que mulher mais inflexível! OK, quero 12 dólares, eu disse fazendo cara de quem não gostou. Isso, assim está bem, falou. Melhor não esquentar que tem muito chão pela frente. Vambora.

Faltavam então “só” 895km. Alaska Highway na veia. Seria ela o dia todo, e também no dia seguinte, e no outro também. Esqueci de mencionar que ontem tinha encontrado um moose na estrada, na Rota 40 para Grande Prairie. Logo no começo da viagem, ainda em Ontário, tinha visto um outro à margem da estrada. Era grande e parecia bonito, mas não pude observá-lo direito, porque ele correu para as árvores. Desta vez não, o animal estava pastando calmo no acostamento. Ele olhou pra mim, e eu fiquei bem atento a ele, pra ver se não ia correr na minha direção. Os guanacos no norte do Chile são assim. Eles se assustam com a moto e querem cruzar para o outro lado da rodovia. Têm um comportamento repentino e inesperado, podendo saltar bem na sua frente e cair no seu colo. Os mooses eu não sabia ainda como eram. Mas não, não pareciam tão ágeis quanto os guanacos. O comportamento parece mais previsível um pouco. Esse que eu encontrei não parecia muito feliz. Na verdade era “essa” (uma musa!), porque sem chifres devia ser uma fêmea. Tava meio feinha, coitada, acho que era a troca de pelos, e não tinha um porte elegante como os mooses de cartão postal que eu vi, ou os do museu em Winnipeg. Lembrei de novo do conselho sobre mooses na Cycle World e fui com velocidade reduzida por um tempo. Depois relaxei de novo; não dá pra segurar.

Fort Nelson era a próxima cidade importante, a 380km. A certa altura do caminho, a estrada estava em manutenção e a polícia aproveitou o desvio para uma blitz. Lá não tem muitos carros. Eles estavam parando todos. Fui parado também. Uma policial me mandou encostar, mas depois fui abordado por um guarda. Pelos EUA e Canadá é mais difícil de ser parado, enquanto que na América Central e do Sul isso é muito comum. Eu já estava desacostumado. Fiquei um pouco nervoso. Polícia no caminho nunca significou para mim segurança. Ao contrário, sempre vislumbro problemas. E não é culpa minha, estou sempre com tudo em dia. Eventualmente posso cometer alguma infração, mas não há como não cometê-las em 50 mil km. Diria mesmo que muitas regras são impossíveis de serem cumpridas. Em certas situações poderia até morrer se fosse cumpri-las à risca, cegamente. Ta aí um bom desafio: ir até o Alaska respeitando 100% de todas as regras, de todas as placas no caminho, inclusive as de limite de velocidade. Talvez assim pudéssemos comprovar o absoluto anacronismo de tantas regulamentações, e constatar o quanto somos incapazes de formular leis e, sobretudo, de aplicá-las. Nas estradas, como na vida, tudo é muito circunstancial e não temos como escapar a essas circunstâncias. Tantas regras, que muitas vezes parecem nem se dirigir a seres humanos, talvez a máquinas ou simplesmente “aos outros”, não dão conta de tudo isso; formam apenas um amontoado de proposições imperativas e sanções, pretensamente sistematizado, e cuja aplicação é de uma incerteza absoluta. De qualquer modo, eu ia bem tranqüilo nessa hora. Como disse, estava com os ânimos serenos. Acordei assim. O policial examinou meus documentos, depois me perguntou de onde eu era, de onde vinha e para onde ia. A tendência é eu ter um branco nessas horas, ainda mais em inglês, mas quando engasgava um pouco a policial me ajudava nas respostas. Simpatizaram com a minha viagem. Eles próprios não conheciam o Alaska. Foram muito muito educados. O policial quis saber também o que eu levava nas malas. Ah, eu estava pronto para essa pergunta; já tinha tudo decorado. Clothes and others personal objects on the top, a tent and a sleep bag on this side. On the other side tools and spare parts for the motorcycle. Oh, it’s too much stuff, disse o policial, ou seja, é muita coisa o que você carrega. Yeah, sure. Passei bastante confiança para eles e não precisou abrir nada. Have a nice day and drive safely, concluíram. Fiquei bem impressionado com a retidão da conduta dos policiais. Não deveria, né? Ah, se fosse sempre assim … Percebi que não fizeram uma perguntinha bem comum na América Latina: O que você faz no Brasil? Quando chega nesse ponto entendo bem o que está acontecendo. Conforme sua resposta é que avaliam o tamanho da propina. Depois de um tempo, mais escaldado, eu digo não sei, não me lembro, ou não entendi, ou digo: pra quê você quer saber? Ou então invento que sou professor! São mal remunerados em toda América Latina, aí nem pensam em me cobrar nada. É verdade que uma resposta irônica poderia configurar um desacato, mas como a má intenção parte deles, fingem que está tudo bem. É a prova do crime. Mas ninguém se importa.

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Ei, não se preocupe, você está no Canadá agora, não? O tempo estava firme e agradável. Pouco tráfego. Margeando a estrada havia capim, às vezes florzinhas, e mais um pouco distante árvores coníferas, pinheiros, sempre pinheiros. É a chamada floresta boreal. Era tudo muito propício ao aparecimento de ursos. Eu sabia disso, já estava demorando para ver um. Nesse dia decidi que haveria um almoço, e então já era perto da hora do almoço, e perto de chegar a Fort Nelson. A estrada ia bem reta e plana, sob sol forte, e foi então que avistei o bichão, um ponto negro lerdo e soberano saindo de entre as árvores para se expor no capinzal. Era um urso, por supuesto amiiiigo! Uau! Desta vez eu estava mais preparado; sabia que antes de qualquer coisa tinha que ir com calma e fazer tudo devagar. Se o perdesse não tinha problema, mas não ia deixar isso acontecer. Olhei ao redor pra ver se havia outros. Não, não tinha. O ambiente era bem amplo, e me dava bastante segurança. Parei a moto calmamente no acostamento e desliguei o motor. Tirei as luvas, puxei a máquina fotográfica do bolso, e o enquadrei direitinho. Tiradas as fotos, fiquei ali olhando, só contemplando aquele espetáculo. Fico arrepiado nessas horas, e um impulso nervoso percorre todo o meu corpo, dos pés à cabeça. É uma sensação incrível, não sei explicar. Toda a viagem já teria valido a pena só por isso. Recordemos que eu saí do interior de São Paulo com a minha moto, tirada da minha garagem, e estava agora num lugar em que podia ver ursos vivendo livremente na natureza. Não, isso não tem preço. Estava completamente realizado. E poderia nem estar tanto se soubesse que teria muito mais disso nos dias por vir. Foi tudo muito espetacular. Era impossível ser mais feliz.

Depois de uma curva tem um rio e aí já era Fort Nelson, ainda na British Columbia. Cheguei à cidade exultante de alegria. Uma pena não ter ninguém para comentar o fato, trocar uma idéia. No restaurante, pensei em mostrar a foto do urso para a garçonete, mas ela provavelmente diria, segurando uma caneta e um bloquinho para anotar o pedido: Oh, seu grande tolinho, isso é o que mais tem por aqui, eu mesma até já fui casada com um …. e então, o que vai ser pra hoje? Está bem, essa alegria é só minha, guardo-a para mim.

A pequena Fort Nelson tem menos de 4.000 habitantes, e serviu de base aérea para as forças americanas e canadenses na Segunda Guerra Mundial, e, como vimos, importante centro de apoio na construção da Alaska Highway. Vive de suas florestas, do turismo, e da prospecção de gás natural. Quando cheguei, estavam reformando a pista central. Fazia bastante calor. Abasteci e fui comer no Boston Pizza. As garçonetes eram sempre muito atenciosas, se não pela graça da minha pessoa, seguramente porque esperam uma gorjeta de 20%. Se pagar 15% elas agradecem com certo ar de melancolia.

Segui viagem. Na saída de Fort Nelson tem um museuzinho simpático, com uns veículos antigos na frente. Deu vontade de parar, mas ainda tinha mais de 500km para fazer. É incrível como estava à vontade naquela estrada. Naquele momento, não parecia mais que eu estava num lugar distante. Acredito que poderia viver ali tranquilamente. Nunca tinha estado lá, mas era o tipo do lugar em que me sentia bem. Parecia natural para mim. E foi assim durante vários dias enquanto estive na Alaska Highway.

Lá pelas tantas, depois de Fort Nelson, tinha uma “construction”, o que me reteve bem por quase uma hora sem uma sombra para me abrigar. Era uma reta bonita, margeada de ambos os lados pela floresta após um intervalo de distância de uns 10 metros do asfalto. Enquanto aguardava perguntei à “operadora de pare e siga” se tinha visto ursos. Ela disse que naquele dia ainda não, mas que havia muitos. Liberado o tráfego, mais tarde começou uma sessão de curvas; eu estava de volta às Rochosas, subindo novamente. Avistei ursos pretos outra vez. Era uma mamãe e seus filhotes. Lindos, lindos, lindos. Estava já ficando banal essa coisa dos ursos. Ora, ursos! Quem nunca os viu?! Não tive coragem de parar, porque estava já alertado sobre o risco de uma aproximação com filhotes, quando a mãe pode ficar bem agressiva. Mais adiante um pouco, urso outra vez. Um urso preto bem grande, vagando pelo capinzal, rente à floresta. Parei e fotografei. Houve outros depois, mas aí já não queria mais parar para fotografar, pois ia atrasar muito a viagem, mas comemorava sempre que avistava um, e procurava absorver aquilo, que nem parecia real.

Feitos mais 190 km, parei um pouco para descansar no Toad River Lodge, bem perto do rio do mesmo nome. Era aconchegante o lugar e dava vontade de explorar um pouco. Se não estivesse ainda tão longe do pouso programado, poderia ter ficado lá. O cardápio do restaurante tinha umas coisas apetitosas, e também eles vendiam uns livros muito bacanas sobre o Alaska, a vida selvagem, sobre a construção da estrada, histórias de ursos, principalmente os livros do Robert Service. Pena não poder carregar a moto com mais peso. Uns 60km mais a frente estava o belíssimo Muncho Lake. Fiquei ali um pouco curtindo a paisagem, e mais uma vez o que me deixou um pouco apreensivo foi o óleo vazando, sempre vazando. Completei com mais 100ml, a dose diária, e segui para o último terço do caminho.

Esse parecia ser o meu dia de sorte. Perto de ingressar no Yukon, avistei ao lado da estrada um enorme animal, que em princípio não identifiquei bem o que era, até perceber que era um bisão igual aos que eu tinha visto no Manitoba Museum em Winnipeg. Pastava no capim alto e verde. Caraca, pensei que o bicho estivesse extinto. Será que eu deveria reportar a descoberta à National Geographic?! Mais a frente havia uma manada inteira. Tive que parar na estrada para passarem bem diante de mim. Chegaram outros carros e pararam também, formando fila. Era impressionante a energia que emanava daquela cena. Como estupidamente achava que estivessem extintos, sentia-me um pouco como se dentro da história do Jurassic Park. De novo tive aquele arrepio, a emoção do contato direto com a natureza, sensação de vida plena; eu e V-Strom conectados àquela paisagem. Depois fiquei sabendo que os bisões ou búfalos americanos foram caçados no século 19 QUASE até a extinção. Seus algozes eram sobretudo os métis, um povo seminômade no Canadá, mestiço de nativos e franceses, cuja caça a esses animais era o traço essencial de sua cultura.

Não demorou muito e lá estava a placa dando as boas vindas ao Yukon. O nome soa aventureiro. É que o Norte do Canadá, compreendendo o Yukon, os chamados Territórios do Noroeste e Nunavut, é realmente uma região selvagem, inóspita, com muita natureza e pouca gente. Para se ter uma idéia, a densidade demográfica é de apenas 0,06 habitantes por quilômetro quadrado. As primeiras nações chegaram há 25 mil anos. Mais “recentemente”, foram os inuits, por volta de 3000 a.C. Os inuits vivem no território Nunavut, e tiveram sua independência reconhecida no ano de 1999, o que não quer dizer que não façam parte do Estado canadense. É o que eu li no meu Guia Visual Folha de São Paulo, quando cheguei ao hotel. Bem, mas no que me dizia respeito, interessava apenas o Yukon, em cuja fronteira oeste estava o Alaska.

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Um importante fato relacionado ao Yukon foi a grande convergência de aventureiros de toda sorte atrás do ouro de Klondike, um rio afluente do Rio Yukon. Do encontro desses rios dois originou-se a cidade de Dawson, que em 1897 era só um acampamento, e no ano seguinte, por causa do ouro, tinha em torno de 40 mil pessoas. Tornou-se da noite para o dia uma das maiores cidades do Canadá. Deve ter sido grande façanha essas milhares de pessoas se deslocando naquela época para a remota e quase inacessível região. Muito do acesso era pelo rio Yukon mesmo, através de 500km do seu curso. Logo eu passaria por esse rio. Ele nasce na Columbia Britânica e serpenteia por 3.000km até o Alaska. Robert Service, referindo-se à Corrida do Ouro de Klondike, escreveu estes versos sobre o Yukon:

Há uma terra onde as montanhas são sem nome,
E os rios todos correm Deus sabe onde;
Há vidas que são errantes e sem rumo,
E mortes aguardando apenas por um fio de cabelo;
Há dificuldades que ninguém calcula;
Há vales despovoadas e ainda;
Há uma terra – oh, ela acena e acena,
E eu quero voltar – e eu vou. (O Feitiço do Yukon)

Assim é o Yukon … e eu devia aproveitar o seu curto verão.

Cheguei a Watson Lake num fim de tarde, com o sol baixo no horizonte. Ainda havia bastante luz, pois nessa época do ano, naquela localidade, o sol se põe lá pelas onze e meia da noite. A estrada corta a cidade, e é a sua avenida principal. Prédios baixos, galpões, tudo bem espaçado. Dava a pinta do lugar remoto que era mesmo. Quando estava planejando a viagem, pouco ou nada pesquisei de Watson Lake, senão que podia ser um ponto de apoio no caminho, mas não pretendia dormir. Depois, já viajando, calhou de ser um bom ponto final para a jornada desse dia, então lá estava eu. Curioso o lugar. Não tem quase nada. E são apenas 800 habitantes. Chegando à cidade tem um posto de serviços para quem quer acampar, ou para quem está de motor-home. Mas ali ainda não é a cidade. Parei a moto para abastecer. Uma pessoa gritou: “Koast” ou algo assim. What?, perguntei. Quero encher o tanque! De novo ouvi: “koast!”. Caramba, que raio é isso? Até que um senhor se aproximou e disse mais pausadamente: “clooosed”. Fechado. Ahhhhhh, então é isso! Ok, thanks sir!! Rumei então para a cidade propriamente, mais adiante, e ia e voltava na rodovia tentando identificar um lugar bom pra ficar. Já estava bem cansado. O primeiro hotel estava cheio. No segundo, mais simples, tinha vaga. Fiz o check-in e fui advertido para não usar as toalhas de banho para limpar a moto! Sim senhora! E eu lá tenho cara de quem faz isso? Fazia calor ainda, e o quarto no segundo andar não era muito bonito, mas tinha um bom ar condicionado. Abasteci a moto antes de me instalar de vez, assim economizaria o tempo de amanhã. Na cidade toda, nem telefones, nem computadores. Ao menos não os encontrei. Portanto, essa noite passaria sem enviar ou receber notícias. Organizei as coisas no quarto. O cansaço me cobrava as 10 horas de repouso a que tinha direito. O SIGN POST FOREST, a floresta de placas, que é a principal atração da cidade, eu teria que deixar para o dia seguinte. Cerveja, cerveja, cerveja, e fui a pé até um restaurantezinho na beira da estrada. Era de uma família de chineses. Fiquei lá bebericando; comi meu jantar enquanto observava.

Pensamentos vão aflorando. A viagem estava madura. Nunca pensei que poderia mesmo ir tão longe. Mais um pouco chegaria à última fronteira, um ponto geográfico para onde convergiam, mesmo sem querer, várias idéias que eu tinha, umas mais e outras menos românticas, adquiridas, embaralhadas, (re)elaboradas na experiência de quarenta anos, a respeito da vida, valores, sonhos de liberdade e de aventura, uma espécie de síntese. Inconscientemente empurrei tudo pra lá, sempre colocando isso pra mais longe, até onde não fosse mais possível. Talvez encontrasse o que procurava, talvez não. Nem mesmo sabia exatamente o que era isso. Viajava quase por instinto, por intuição. O oposto disso era a rotina na cidade, a vida urbanóide, metropolitana, onde o trabalho acaba tendo um papel maior do que eu gostaria, tanto que tem dias que esqueço que pra mim é meio, não fim. Tantas tarefas, compromissos, tantas coisas que julgamos ter que comprar, a mídia nos bombardeando com notícias alarmantes e anúncios de propaganda, uma constante falta de tempo, um frenesi rodando sem parar que não sabemos por que, ou para quê, ou até onde. Nem nos perguntamos muito. Mas de vez em quando, cansado, desanimo e não encontro mais as respostas e corro o risco de cair num vazio. Acho que essa situação toda também tinha um pouco a ver com o Alaska. Uma tentativa de libertação e uma busca de significados. Não que não acredite em Deus, ao contrário. Mas não debito isso na conta Dele, não espero nenhuma recompensa além-túmulo, e tampouco acredito em dogmas religiosos. Não é o tipo de coisa que quero terceirizar. Seria cômodo demais. Prefiro procurar eu mesmo o que quer que estivesse querendo encontrar, exercer minha liberdade e arcar com o preço, ou seja, com a responsabilidade. Uma viagem a um extremo, assim, me era uma coisa emblemática. A viagem de todas as viagens. Eu estava ficando bom nisso. Lembro-me a primeira vez que saí de moto numa estrada. Sorocaba a Itu. Nossa, eu tremia de nervoso! Quem podia agüentar todo aquele vento? À frente ia um caminhão com lenha. Uma das toras se soltou e veio quicando na minha direção. Que azar acontecer isso logo na primeira vez. Minha insegurança deve ter atraído o incidente, mas me saí bem desviando. Treze anos depois já tinha rodado mais de 160 mil km de moto. Aprendi a viajar. Agora queria sentir o gosto de chegar a esse ponto extremo. Se conseguisse não pensar, melhor. ERA MINHA COTA DE DIGNIDADE DIANTE DA VIDA, OU DA MORTE. Já quando estivesse em casa, se assim me fosse concedido, iria contemplar pela manhã, bem cedo, minha filha pequena ainda dormindo o sono dos inocentes, cheirar seus cabelos, beijar sua testa, e nesse momento sei que também sentiria minha vida plena. Enquanto isso, ainda bem que tenho você aqui, V-Strom, para me levar aos confins do mundo. Ufa, que longo dia … Boa-noite Watson Lake, durma bem.

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