Um pouco antes

em

Os meses que antecederam essa nova estada em Toronto, entre agosto de 2012 e junho de 2013, foram em boa parte de júbilo pela meta alcançada na etapa anterior. De Sorocaba a Toronto, sozinho de moto, por doze países e mais de 18.000 km,
ah, isso tinha de fato sido grande coisa pra mim, e continua sendo. Uma vitória pessoal, e também da família, que soube se organizar bem e tocar tudo em frente enquanto estive fora.

Passei um tempo satisfeito com o que fizera, organizando fotos, repensando a viagem, e até uma matéria muito bacana saiu no jornal da cidade sobre isso. É claro que, em paralelo, voltava a rotina, famigerada rotina, da qual a moto ainda é uma das vias de escape, a mais eficiente na minha opinião. Talvez por isso, enquanto aguardava a próxima partida, ainda segui viajando nos fins de semana, ora de carro, ora de moto. Ilha Bela/SP, Cidades Históricas de Minas Gerais, Petar – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – em Iporanga, sul do Estado de São Paulo, Paraty/RJ, Pedra Bela, em Socorro/SP. Lugares incríveis, aqui pertinho. E também viajei no livro do Vantuir Boppré, “Transamazônica, uma estrada para ser vista da Lua”, já fantasiando uma possível futura empreitada no coração do Brasil.

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Todas essas histórias sobre aventura, a propósito, sempre me fascinaram. Desde as Seleções do Reader’s Digest que meu avô me emprestava quando eu era ainda bem criança, e eu adorava, passando por Júlio Verne, é claro, com “Viagem ao Centro da Terra”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, “Da Terra à Lua”, “Cinco Semanas em Um Balão” e outras, até o que considero ser a obra-prima da literatura de aventura, ou seja, “Sul”, de Sir Ernest Shackleton, tudo isso acho que teve grande impacto sobre mim.

Após a conquista do Pólo Sul pelo norueguês Amundsen, em 1911, Schackleton, frustrado por não ter sido ele a realizar tal proeza, se lança em um projeto audacioso de cruzar o continente Antártico atravessando o Pólo. Era o ano de 1914. Só que seu navio Endurance, com 28 homens entre marinheiros e cientistas, e muitos cachorros para puxar os trenós, fica preso no gelo do Mar de Weddell e acaba literalmente esmagado por ele, forçando toda a tripulação a desembarcar sobre o gelo e nele viver por anos se alimentando de pingüins e focas e do que mais haviam resgatado do navio, que afundou após ter sido destroçado. Durante muitos meses ainda fizeram isso na plena escuridão do inverno Antárctico. Quando se viram minimamente livres do gelo em sua deriva ao norte, pegaram um dos barcos salva-vidas e se dirigiram à inóspita e gelada Ilha Elefante, desabitada, e de lá Schackleton partiu com outros quatro homens numa aventura quase impossível, que era chegar à Ilha Geórgia do Sul para buscar ajuda. Navegaram com uma vela improvisada por 1.300 km, cansados, molhados, gelados, com fome, mas chegaram, só que do lado oposto ao lado habitado da ilha. E então, sem mais condições de dar a volta com o pequeno James Caird, cruzaram as montanhas geladas da Geórgia do Sul a pé, sem equipamento de alpinismo, já quase no inverno, até chegar a Stromness, uma estação baleeira da época. Conseguiram então ajuda e retornaram depois de meses, quando as condições de tempo permitiram, à Ilha Elefante para resgatar seus colegas. Incrivelmente todos estavam vivos. A expedição terminou em 1917, surpreendentemente sem a perda de um homem sequer, e muitos dos tripulantes, inclusive Shackleton, ainda se engajaram na luta da Primeira Guerra Mundial. Enfim, a história do fracasso mais épico e heróico que já se viu. Se um dia voltar a Ushuaia de moto, acho que vou tentar ir à Geórgia do Sul, onde Shackleton está enterrado.

Outro livro impactante para mim foi o de Aron Ralston, “127 Horas”, que virou filme. O alpinista experiente de 27 anos de idade estava fazendo o que para as condições técnicas dele era um passeio divertido pelo Canyon Blue John, no Parque Nacional de Canyonlands, em Utah, Estados Unidos, quando, ao descer por uma pedra num caminho fundo e estreito, esta se moveu prendendo seu braço direito contra a parede do canyon. Ele tinha apenas 1 litro de água e uns chocolates, um resto de muffin, o que dava umas 500 calorias, fora alguns poucos pertences, como um canivete multifuncional e cordas numa mochila. Passou seis dias preso, tomando a própria urina, sofrendo o horror das dores, das noites geladas e solitárias, vendo seu braço apodrecer, até que adotou a medida extrema de quebrar o próprio braço e depois, com o canivete, cortar músculos, artérias e nervos, até finalmente se ver livre da rocha. Tão grosso era o seu sangue, pela desidratação, que pouco perdeu dele. Em seu caminho em busca de resgate, com um braço recém-amputado, ainda teve que fazer um rapel de 50 metros de altura, até alcançar uma poça de água podre, estagnada, onde jazia o corpo de um urubu, e da qual tomou vários litros com enorme prazer. Ainda faltavam 13 km de trilha para sair do canyon. Mas depois de andar 9,5 km encontrou finalmente 3 caminhantes holandeses, iniciando a partir daí as medidas para seu resgate. É do seu livro uma citação que guardo comigo até hoje e que considero muito importante:

“Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar em fazer, comece agora. A coragem contém em si mesma o poder, o gênio e a magia” (Goethe).

Mas uma das frases do livro que não me saía da cabeça durante a viagem, especialmente nas Cordilheiras da Colômbia ou do Peru, era: “O tempo geológico inclui o agora”. É que uma rocha pode ficar parada por milhões de anos, até um dia se desprender e esmagar alguém embaixo, e esse dia pode ser exatamente aquele em que você está passando por ela, assim como aconteceu com o Aron. E assim são também as zonas de derrumbes nas carreteras, e são muitas.

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Também a leitura de “Mergulho na Escuridão”, de Robert Kurson, me inspirou bastante. Os caras resolveram descobrir qual era a identidade real do submarino alemão da Segunda Guerra Mundial que encontraram afundado a 79 m da superfície a 100 km da costa de Nova Jersey, mais uma vez nos Estados Unidos. Entre escuridão, escombros e ferro retorcido, passagens apertadas, areia fina em suspensão e os efeitos deletérios do ar comprimido em grande profundidade, cabia ao mergulhador manter a calma e simplesmente respirar. Costumavam dizer: se está respirando, está tudo bem. Claro, pois o pânico ajudava a reduzir o limitado estoque de ar nos reservatórios, impedia decisões razoáveis, levando o mergulhador à morte. Então, até hoje procuro pensar: se estou respirando, está tudo bem. Mas é muito fácil esquecer tudo isso quando se está em algum perrengue pelas estradas.

Em “Além do Fim do Mundo”, Laurence Bergreen conta a história da circunavegação de Fernão de Magalhães entre 1519 e 1522. Como se sabe, foi a primeira viagem de circunavegação de toda a história, quando se descobriu a passagem entre o Atlântico e o Pacífico pelo estreito que recebeu o nome de Estreito de Magalhães, lá na Terra do Fogo, entre Chile e Argentina, e por onde eu e muitos motociclistas já tivemos o prazer de atravessar de balsa a caminho de Ushuaia. A esquadra partiu com cinco navios, de Sevilha, na Espanha, com aproximadamente 260 homens. Retornou três anos depois com apenas um navio e 18 homens. Os demais morreram no caminho, inclusive o próprio Fernão de Magalhães, em luta com nativos nas Filipinas. Interessante que o cravo-da-índia vindo da Ilha das Especiarias, hoje Ilhas Molucas, que restou em apenas uma das embarcações, compensou financeiramente toda a viagem. Imagina que loucura é isso, ainda mais para mim, que não gosto nem um pouco dessa porcaria na minha comida. De tudo isso ficamos sabendo graças ao relato de Antonio Pigafetta, escritor italiano que pagou de seu próprio bolso para acompanhar a expedição, e estava entre os 18 sobreviventes. Assim é o destino, e, como se diz, ninguém morre de véspera.

E há vários outros livros muito interessantes, como “Latitudes Azuis”, de Tony Horwitz, que narra as incursões audaciosas do Capitão Cook por mares de todo o mundo, de 1768 a 1780, ou “Sozinho ao Redor do Mundo”, de Joshua Slocum. Este canadense naturalizado americano fez a primeira viagem de circunavegação sozinho num pequeno veleiro, o Spray, isto de 1895 a 1898, partindo de Boston. O detalhe é que o barco era muito velho, já de mais de 100 anos, um casco ostreiro, e estava encalhado numa pastagem à beira de um rio. Slocum o ganhou de presente e o reformou com suas próprias mãos. E tudo deu certo. Contudo, em novembro de 1909, numa outra viagem, desapareceu misteriosamente no mar.

Teve também os livros da Família Schürmann, outros vários do Amyr Klink, entre outros. Mas o livro que de forma mais imediata me motivou a sair de moto para bem longe foi o “Alaska, Além do Círculo Polar Ártico”, de Clodoaldo Turbay Braga. Esse médico paranaense narrou a viagem dele com seu amigo Marcos em duas Suzuki DR-800, de Curitiba a Prudhoe Bay, no Alaska, ocorrida no ano de 1997, em pouco mais de dois meses. Na época não tinha a bem pavimentada Interoceânica (2010), de Assis Brasil, no Acre, a Lima, no Peru; de modo que, talvez muito por isso, utilizaram uma saída nada fácil do Brasil, que é a de Cáceres/MT a San Ignácio, na Bolívia, passando por San Matias, bem na fronteira Brasil/Bolívia, o que incluía trechos difíceis off-road. Atravessaram de veleiro com as motos de Cartagena na Colômbia a Colón, no Panamá, pelo perigoso Golfo de Urabá, com piratas e tubarões. Deve ser sensacional. (Eu fiz essa travessia de avião, muito mais rápido, prático e seguro, penso eu, e que se faz de Bogotá a Panamá City, ao lado oposto de Colón, já no lado do Oceano Pacífico.) Também incluíram um trecho de barco, entre o Porto de Bellingham, em Washington, noroeste dos Estados Unidos, e Skagway, já no Alaska. É a famosa Passagem Interior, que te poupa das estradas no Canadá e já te deixa lá no Alaska mesmo, mas numa região sem estradas para o interior do Alaska. Como se sabe, a Juneau, capital daquele estado americano – relativamente próxima de Skagway, pois ficam ambas bem ao sul do Alaska –, só se chega de barco, ou avião, é claro. E de Skagway para Whitehorse, no Yukon no Canadá, existe uma estrada, a 98 Hwy, e acredito que o Clodoaldo tenha ido por aí, para depois entrar definitivamente no Alaska rumo a Fairbanks e, depois, pela Dalton Highway até Prudhoe Bay, a última fronteira, assim como foi para mim. Ele voltou de Miami, por avião. Seu livro contém várias citações interessantes, dentre as quais algumas de Robert Service, poeta e escritor britânico-canadense (1874-1958), como esta aqui:

Deixe-nos conhecer os lugares silenciosos,
Deixe-nos procurar o que a sorte nos reserva;
Deixe-nos viajar para uma terra solitária que eu conheço. Há um sussurro no vento da noite, há uma estrela pra nos guiar. E o desconhecido está chamando, chamando … deixe-nos ir. (Robert Service)

Esse Autor é muito famoso no Canadá, ao menos na Alaska Highway, onde vi livros seus à venda em lojinhas quentes e aconchegantes pelo caminho.

Então, se me perguntarem por que ir ao Alaska de moto, ainda não tenho pronta essa resposta, mas é fato que meu encantamento com esses livros foram uma parte da motivação.

***

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Quando cheguei de Toronto, vindo da etapa anterior, uma coisa tive que sacrificar, que foi a moto de trilha. Temporariamente órfão da V-Strom, que ficara na casa do meu irmão no Canadá, restou somente a Honda CRF-230 na garagem em Sorocaba. Uma jóia de moto, e estava novinha. Acontece que ela não é uma moto para o trânsito normal, nem pode ser licenciada ou receber placa. Fica restrita às trilhas. Assim, fui obrigado a escolher entre fazer trilha nos fins de semana ou ter uma moto para rodar livre pelas estradas. Prevaleceu esta última opção e acabei vendendo a CRF para comprar a Yamaha Lander 250. Outra jóia. Veio linda, zerinho, azul. Realmente não agüentaria ficar dez meses sem moto pra sair por aí. Dessa forma pude me adaptar ao tempo longe da V-Strom, sem deixar de fazer o que mais adoro, mas com prejuízo para as trilhas aos domingos na excelente companhia de ótimos amigos que o meu amigo Alysson tinha me apresentado. A trilha também é uma aventura, só que muito concentrada em algumas poucas horas; uma experiência bem intensa, digamos. Assim como as grandes viagens, a trilha imita a vida ou, antes, segue os mesmos princípios. São caminhos. Ora mais largos, ora mais estreitos, ora mais regulares, ora cheios de erosão e pedras, ou lama, ou areião, poeira, subidas e descidas íngremes que exigem muita coragem e determinação. Uma vez no caminho, encontramos forças para nele seguir. E mesmo caindo tem-se que levantar, levantar a moto, e continuar. Há solidariedade, como nas carreteras por aí afora, e se tem que ter também muita paciência, calma, e acima de tudo persistência. Acreditar que se vai achar um jeito, cedo ou tarde, um modo de passar. E (quase) sempre passa mesmo. Foi um grande aprendizado os meses em que participei dessas aventuras. Na verdade, a primeira lição que tive nas trilhas é que deveria deixar um pouco de lado a bebida e começar a me exercitar, se quisesse acompanhar ao menos de longe aquela turma. De qualquer maneira, já foi uma honra ter estado em meio a esses caras que admiro pelo caráter, habilidade, coragem e senso de humor. Procurei aplicar, isso na longa jornada ao Alaska, e ainda tento seguir essas lições na minha vida mesmo, no dia-a-dia.


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