Moose Jaw

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O motociclismo é uma atividade que tem nas viagens de longa distância um de seus pontos de maior significado. Existem outros: técnica de pilotagem, consciência dos limites, espírito de liberdade, índole gregária, rebeldia contra valores antigos e sonolentos, etc…

Mas é quando a estrada parece não ter fim e o objetivo a ser alcançado está além da imaginação que o motociclista encontra um ponto em comum com o universo, com as forças que permeiam nossos dias na Terra. Então se ouve mais nitidamente uma voz que dentro de nós nos diz que o mundo é maior, mais pleno, mais interessante do que velhos hábitos e costumes nos sugerem. Não deixar que esta voz se cale é a maior missão do motociclismo.” (Clodoaldo Turbay Braga)

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Assim o Clodoaldo inicia o seu livro “Alaska Além do Círculo Polar Ártico”, e gostaria de um dia poder cumprimentá-lo pessoalmente por essas frases que tão bem sintetizam o espírito estradeiro.

Estava eu agora a caminho de Moose Jaw, na Província de Saskatchewan. A jornada era de uns 650km por caminhos retos e grandes planícies. Eu tinha programado distâncias não muito grandes para os primeiros dias, para ir me acostumando. Ótimas estradas no Canadá, com a perspectiva de depois, na volta, cruzar os Estados Unidos de norte a sul, isto era um prêmio após trechos esburacados no Brasil e as fronteiras “burrocráticas” na América Central. Sentia-me confortável nas estradas, e estava imensamente feliz por estar ali com a minha motoca, pela primeira vez na vida entre as grandes pradarias do Canadá, apesar de que as saudades de casa já começavam a se infiltrar pelas estreitas rachaduras das minhas convicções.

Pensava na vida em Sorocaba. Muitas vezes, assim nas estradas, começo a ter diálogos com meu pai, falecido em 2001. Engraçado, ainda temos nossas conversas, e ainda discutimos de vez em quando. Eu estou em estradas retas, tranqüilas, tendo o horizonte como companhia, o barulho tranqüilo e seguro do motor da V-Strom, e então, quando não estou cantando as poucas canções que conheço de cor, estou simplesmente deixando um fluxo de consciência se libertar.

Nós éramos seis em casa – o casal e quatro filhos –, uma casa simples e pequena para os padrões atuais. Embora de classe média, meu pai proporcionava uma vida francamente austera. Tínhamos que dividir quartos e banheiros, roupas e brinquedos, mais tarde a televisão, aparelho de som, a velha Belina 1976. Estudávamos em escolas públicas, voltávamos a pé morrendo de fome num calor desgraçado. O banho tinha que ser rápido, usar o telefone também. Pra ter algum pequeno luxo, muitas vezes era preciso fazer um trabalho extra, como limpar, cortar o mato com enxada, ou pintar o portão, por exemplo. Não que tenha nos faltado alguma coisa. Nunca. Mas tudo era assim meio espartano. Sobretudo, não havia acesso ao consumo. Refiro-me ao consumismo. Como reação natural a isso, nossas mentes fantasiavam e buscávamos maneiras de obter satisfação por iniciativas próprias e com criatividade. Nós sonhávamos. Eu adorava aeromodelos, que eu mesmo construía. Minha imaginação voava junto com eles. Tornar-se independente era uma necessidade, que permitiria mais espaço para sonhadas liberdades. Aos 15 anos estava trabalhando no Banco do Brasil, e ganhando dinheiro que sobrava para comprar quantos aeromodelos eu quisesse. Aos 16 entrei para a Aeronáutica, na Escola Preparatória de Cadetes do Ar. Sonhava em ser piloto. Eram idéias de liberdade, na proporção com a idade. Aos 20 deixei a Academia da Força Aérea, justamente porque, apesar de ter ali tantos aviões, não era definitivamente onde morava a liberdade. Já cursando Direito no Largo São Francisco, na capital, a cidade grande inicialmente prometia independência. Mas a rotina esmagadora, entre estudar e trabalhar, o corre-corre naquela fuligem preta de todo dia, metrôs e ônibus lotados, violência, tudo isso com pouco dinheiro, também fizeram evaporar qualquer expectativa boa em relação a São Paulo. De novo o desejo de procurar mais longe uma tal liberdade, um certa conformidade para a alma. Bem, eu nem sabia o que estava buscando, e ainda hoje não sei com certeza, mas no ano 2000, quando um amigo quis se livrar de uma velha Honda CB-450, achei que ela poderia me levar a lugares e experiências interessantes. Uma CB-450 e uma Suzuki Bandit 650 depois, lá estava eu de V-Strom nas pradarias do Canadá, a caminho das Montanhas Rochosas, que eu só tinha ouvido falar nas aulas de Geografia do ginásio. Não estava com qualquer grande pretensão de encontrar a essência do que quer que fosse, embora estejamos todos, acredito, sempre a buscar alguma coisa. Ali, naquele momento, já valiam a pena só o contato com a natureza e todo aquele estradão pela frente, longe do mar infinito das excessivas tarefas diárias próprias de um vivente do tecnológico século 21. Então, já a estrada parecia não ter fim e o objetivo a ser alcançado estava além da imaginação…

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Essa estrada, a Trans-Canadá, tem 8.030km de extensão e é uma das maiores estradas do mundo, juntamente com a Trans-siberiana e a Rodovia 1 da Austrália, conforme o Wikipédia. Demorou apenas uns 20 anos para ser construída, entre 1950 e 1971. Não tem um buraco, nem se paga pedágio. Assim é o Canadá que eu estava descobrindo. No Brasil, a BR-116 tem metade dessa distância e muitos problemas, como sabemos. Falta projeto, falta engenharia, falta traçado, falta qualidade no pavimento, falta duplicação, falta manutenção. Em 2005 passei de moto por um trecho na Bahia, indo de Lençóis a Salvador, que mais parecia ter sido bombardeado, repleto de verdadeiras crateras, onde a terra ao lado da rodovia era melhor de passar que a própria rodovia. Os caminhões faziam um ballet, um zig-zag para passar. E eu tinha que tentar prever para que lado desviariam. Um total desprezo com a vida das pessoas. Já no trecho de São Paulo a Curitiba, praticamente em toda curva tem um caminhão tombado, ou restos de cargas viradas. Acredito que seja um dos trechos mais perigosos do mundo. Das Américas sei que é. São curvas largas, abertas, e o pessoal abusa. Outro dia estava passando por ali com minha esposa na garupa. Numa dessas curvas, vi a carga de um caminhão entortando e, de repente, se esborrachando no asfalto. Não deu pra desviar. Era uma carga de pisos cerâmicos. Freei o máximo que pude e, quando chegamos nos cacos, soltei o freio e deixei a moto à vontade pra ver até onde ia. Tombamos à esquerda, bem devagar, graças a Deus. Me lembro de ter pensado: “Puxa, estou vivo ainda!” Nenhum dano físico aparente, mas lembrei de levantar rápido, pois vinha o tráfego atrás. Só que minha esposa estava com a perna presa no bauleto lateral esquerdo e o peso dela estava sobre mim. Rolei para livrar-me dela e desesperado a puxei de baixo da moto e praticamente a joguei por cima do guard rail. A moto tinha caído com o pisca-alerta ligado. Acho que foi meu anjo da guarda. Assim, no meio da poeira levantada, ainda dava pra vê-la. Os caminhões que vinham atrás devem ter visto uma grande cortina de poeira e o pisca aceso, a moto caída. Tivemos sorte e pudemos continuar a viagem. Essa triste realidade das nossas rodovias parecia estar bem longe agora. Era paz na Trans-Canadá. 8.030km unindo todas as dez províncias canadenses. O sentido é leste-oeste, desde St. John na Terra Nova (leste) até Victoria na British Columbia, e quase sempre em paralelo segue a Ferrovia Canadian Pacific, presença constante nessa parte da viagem. Eu me desviaria dessa mega estrada depois de Banff, para subir ao Alaska.

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E, assim, tome estrada … plana, reta, perfeita. O tempo era estável, e havia preocupação constante com os Mooses. Eu não tinha esquecido da advertência em Toronto. Além disso, ainda tinha o vazamento de óleo me intrigando. Qual seria a causa disso? O quanto estaria vazando? Eu conferia sempre o nível, e não parecia estar baixando muito, mas o motor embaixo estava sempre babado de óleo que ia fazendo aquela sujeira junto com a poeira da estrada. Desconfiava que eventualmente o Peter, da oficina em Scarborough, pudesse ter colocado óleo demais, e imaginava que a V-Strom tivesse um sistema para por pra fora o excesso. Eu tinha ouvido falar de alguma coisa assim, mas não parecia ser muito provável. Nos dias seguintes eu ocuparia minha mente com isso. De fato até fiz em 2009 o curso de mecânica de motos no SENAI, mas sem praticar fica difícil. Em todo caso, estava me lembrando do casal Sutherland, o John e a Sylvia, personagens do livro “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas”, de Robert Pirsig (1974). Eles estavam viajando de moto pelos Estados Unidos junto com o personagem narrador – que era o próprio Pirsig – e o filho deste, de 12 anos, cada dupla numa moto, sendo que o casal não sabia nada de mecânica e tinham aversão à tecnologia. Gostavam apenas das estradas e de sua liberdade. Essa atitude era, segundo as críticas que li, uma forma de se contrapor a uma sociedade tecnocrática, racional ao extremo, desumana, consumista. Mas essa visão não era inteiramente compartilhada por Pirsig, que na estória, ao contrário do casal de amigos, sabia bastante de mecânica e era capaz de consertar sua própria moto e a deles. Esse não é exatamente um livro sobre viagem de moto ou sobre estradas, nem sobre manutenção de motocicletas, mas de filosofia. E nessa filosofia Pirsig descreve certo antagonismo entre a visão hippie, libertária e romântica, e o tecnicismo da sociedade racional, que consome e descarta, buscando ele (o Autor) uma forma de fundir esses aspectos em algo que chamou de Metafísica da Qualidade. Uma forma de compreensão superior. Seria, acho que, como buscar algo mais ZEN, transcendental, não necessariamente científico, mas intuitivo, mantendo a consciência sobre o que é material e tendo a humildade (esta palavra sou eu que estou usando) de reconhecer que não prescinde deste. Ou seja, temos a moto, estamos sobre ela curtindo as dádivas deste mundo, mas isto se apóia em algo material e tecnológico que alguém, dentro de uma sociedade e sob certo sistema econômico, inventou e desenvolveu, sobre o que, por uma razão de coerência, devemos ter um mínimo de noção e conhecimento. Certo, mas eu ainda não sabia o porquê do vazamento de óleo… Minha V-Strom, companheira dessas longas jornadas, sofria de alguma coisa que eu, como simples usuário, não sabia resolver. Estava mais para John Sutherland.

Ia pela Trans-Canadá nessas chautaquas (Robert Pirsig), rodando pelas minhas filosofias caseiras, mas acima de tudo curtindo a estrada, atento à natureza e aos bichos, e menos aos postos de gasolina, isto é, menos do que deveria. Logo talvez encontrasse ursos.

Respirava e sentia o momento, lembrando da família e de pessoas, tentando involuntariamente estabelecer conexões, absorver os exemplos que conhecia, idealizar novos planos, identificar o rumo que poderia tomar, mais afeito aos valores de vida talvez mais genuínos que, sobre a moto, sozinho e num lugar distante, e sobretudo neste tempo em que vivemos, pareciam se revelar como de maior importância.

Num mundo pós 2ª Guerra e pós Muro de Berlim, quer dizer, não tão polarizado, uma volta de moto pode ser apenas uma volta de moto. Isto é, pode ser uma viagem de autoconhecimento, de exploração pessoal da geografia e até do metafísico, mas não será provavelmente um questionamento do sistema, nem um gesto com conotação política ou revolucionária ou de contra-cultura. Apesar disso, acredito que muitas das questões adormecidas de décadas atrás, refletidas por exemplo no livro “Na Estrada”, de Jack Kerouac (1957) – que agora virou filme por obra de Walter Salles –, ou no célebre filme Easy Rider (1969), ainda persistem despercebidas na memória quotidiana e acabam tendo algum impacto nas nossas viagens contemporâneas, apesar de aparentemente não haver intenção de maiores engajamentos. Há uma chama acesa. Ainda há perguntas esperando por respostas.

O asfalto passava rapidamente sob meus pés. As faixas brancas do centro … zum, zum, zum. Na impossibilidade de ter a compreensão global do universo, e na impossibilidade de saber onde exatamente devo chegar além de Moose Jaw, contentava-me com o vento, com uma liberdade que se insinuava na linha do horizonte, e com o espetáculo sereno das pradarias, satisfeito por poder viajar tão longe, por caminhos de estrada muito mais longos que os personagens de Zen e a Arte da Manutenção das Motocicletas ou do Easy Rider puderam trilhar.

Aliás, é uma relativa novidade poder rodar livre por todos três continentes americanos, por 30.000km, exceção feita apenas em relação ao Estreito de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, onde ainda não há estrada. Somos privilegiados por podermos hoje viver essa experiência. Acredito que se deva em grande parte à tecnologia essa possibilidade de uma pessoa comum, sem habilidades especiais ou prática específica, poder percorrer todo esse caminho. E aí voltamos um pouco ao tema abordado por Pirsig. Mas sobre as conseqüências dessa expansão dos nossos limites físicos ou geográficos ainda não temos, que eu saiba, uma obra ou uma literatura que aborde e procure sintetizar o significado disso, fazer um prognóstico.

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Passei por Regina, a capital de Saskatchewan, onde finalmente tinha uma curva pra fazer, só pra desviar da cidade, que o rumo ainda era sempre oeste, e segui para o destino final do dia. Faltavam apenas 73km. Se fosse na direção sul, uns 700km, estaria em Montana ou Dakota do Norte nos EUA. Tantas retas e pensamentos me fizeram esquecer da gasolina. Eu ainda não levava gasolina no galão. Resultado é que bem perto da entrada de Moose Jaw a moto parou. Olhei ao redor e, por muita sorte, tinha um posto na pista do sentido contrário. Deixei o pisca-alerta ligado, peguei o galão e atravessei a pé o canteiro da Trans-Canadá. Solucionado o problema, segui o GPS atrás de um hotel. Escolhi o centro da cidade. Mas aí umas nuvens escuras trouxeram uma repentina e forte pancada de chuva. Errei algumas entradas até encontrar o hotel, depois de uma conversão proibida em pleno Canadá, país tão certinho, e logo abaixo de uma câmera de vigilância da cidade, como vim a descobrir depois. Instalado no Capone’s Hideaway Motel, inspecionei o óleo, a moto de uma forma geral, troquei os tairapes que prendiam o protetor de corrente desde que o parafuso se soltou entre a Nicarágua e Honduras no ano anterior, e fui jantar no restaurante ao lado, na Main Street. Ah, a(s) merecida(s) CERVEJA(S)!

A cidade é bem agradável. Tem por volta de 32.000 habitantes e, a exemplo de várias cidades no Canadá, foi fundada por ocasião da construção da Canadian Pacific Railroad. É lembrada por causa do Al Capone. Reza a lenda que na época da Lei Seca nos Estados Unidos, entre as décadas de 1920 e 1930, esse gângster visitava a cidade porque tinha montado a partir dali um esquema de produção de bebida e contrabando para Chicago. A cidade era conhecida como Cidade do Pecado, devido ao fato de que, antes mesmo do Al Capone, havia túneis secretos e mal intencionados ligando pelo subterrâneo prédios no centro da cidade; esses túneis eram usados para esconder trabalhadores ferroviários vindos da China, e também serviam para jogos e prostituição (fonte: Wikipédia). Depois serviram ao esquema de contrabando das bebidas do Al Capone. Acho que cheguei tarde, porque não vi túnel nenhum, nem pecado nenhum, além daquela minha conversão proibida. Ou talvez tenha sido porque me recolhi relativamente cedo, depois de caminhar a esmo pelas ruas vazias do centro sob um forte vento gelado. Precisava dormir.


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