Fort St. John

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O dia de hoje trazia uma novidade, que era o rumo norte, depois de tantos dias rodando a oeste. Sinal que eu começava a atingir um ponto crucial na viagem. Saí não muito cedo, após o café da manhã no hotel, que não dava pra recusar.
No Voyager Inn o breakfast não era daqueles tão automatizados, padronizados, pasteurizados, artificializados e outros zados, graças talvez à atmosfera mais relaxada de Banff. Sentia um certo frio na barriga, por deixar a segurança e o acolhimento dessa cidade para zarpar rumo a lugares remotos e pouco habitados. Ops, talvez precisasse era de um banheiro …

O primeiro passo era tomar a Trans-Canadá, da qual eu finalmente me despediria, para depois pegar a chamada Icefields Parkway ou Highway 93, que leva até Jasper, a 289km. Uma linda estrada em meio às montanhas cobertas de gelo. Despedi-me das ruas de Banff, num dia lindo de sol e céu azul. Segui pela estrada reta até a altura do Lake Louise. Logo depois há uma bifurcação, e tomei a Hwy 93.

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Numa dessas, de repente, avistei um urso preto subindo numa árvore alta, comprida, fininha, fininha. Será possível? Não tinha visto ursos em todo o tempo que passei em Banff. Olhei melhor. Era sim. Um urso não muito grande escalando a árvore. Passei por ele e resolvi voltar. Ritmo cardíaco acelerando. Parei não muito longe da cena, sem saber direito por onde começar, se desligava o motor, se tirava as luvas, se pegava a máquina fotográfica – que ainda por cima estava dentro de um saco plástico no bolso da jaqueta –, o que fazia primeiro. Sei que, nessa atrapalhação, com um medo danado do tal urso, me vi com uma máquina fotográfica ora apontada para mim mesmo, ora de ponta-cabeça, até que finalmente consegui colocá-la ao menos com a lente na direção certa. Tremia como nunca. Imaginava que, por não ser um urso grande, podia ser um filhote com a mamãe ursa por perto. E eu estava montado na moto, parado no acostamento bem rente às árvores da floresta. A ursa podia perfeitamente sair do meio das árvores e me dar o bote. Calma fio! Desse jeito você não vai tirar foto nenhuma. Caaalma! Calma nada. Você fala isso porque não é você! Vai rápido, rápido, ele pode descer da árvore e correr pra me pegar, ou logo vai sair outro urso desse mato aí. Vai! Dei aquele zoom e, cadê o urso? Cáspita, no zoom, tremendo daquele jeito, não encontrava ele. Reduzi e o achei na lente. Dei zoom de novo e o perdi. Ah, quer saber, vou mirar como posso e clicar. Click! E vamos embora! Uau, meu coração tava a mil. Não acredito, vi um urso, e ele estava em cima de uma árvore!

Eu e a V-Strom saímos rodando com toda essa emoção pela Icefields Parkway. Que estrada! Naquele momento não pensava em mais nada que não fosse o que estava vivendo ali. Eu era da estrada e a estrada era minha. Passamos pelo Bow Lake. Nossa, que lindo! Fiquei abismado com a beleza do lago espelhado refletindo o céu, as montanhas e o gelo. Não dava pra ter pressa. Se pudesse acamparia aqui, pensei, ficaria uns dias fazendo caminhadas, andando de bicicleta. Há muita gente por lá que faz isso. Eram tantos cenários incríveis, lagos, rios e montanhas, que nem dava pra ficar tirando foto de tudo. Desencanei disso. Melhor apenas sentir.

Terminada a estrada, estava em Jasper. Precisava abastecer. Aproveitei pra comer algumas calorias. Sempre é bom para manter o humor em ordem. Dei aquela espiada no óleo. Vazando, mas ok. Jasper em princípio seria o meu destino, ao invés de Banff. A cidade está situada no meio do Jasper National Park, que é o maior dos parques das Montanhas Rochosas. Lá tem menos turista, e por isso eu pensei que seria mais legal, esse ar mais selvagem, melhor para ver ursos e outros bichos. O Columbia Icefield fica lá. É um campo de gelo formado na última glaciação, por volta de 10 mil anos atrás, e tem 900m de espessura em alguns trechos. Fica entre Jasper e Banff, mas mais para os lados de Jasper. É o motivo de a estrada se chamar Icefields Pkw. Mas dela não dá pra ver; acho que tem que entrar numas quebradas para o acesso. Vi apenas um tipo de ônibus muito especial, enorme, pintado de vermelho e branco com o símbolo do Canadá, e que serve para poder explorar a geleira. Seria legal se pudesse ter visitado isso também, mas, no planejamento da viagem, como é necessário fazer muitas escolhas e descartar muita coisa, acabei optando por Banff, mais popular. Por isso é ruim sair com pouco tempo. Mas ainda estou bem longe de poder fazer uma viagem sem data para voltar, até porque a grana não daria.

Quando termina a Icefields Parkway, encontramos a 16 Road, perpendicular. À esquerda (oeste) vamos para Prince George, cruzando toda aquela imensa cordilheira – mas Prince George era uma parada programada para a volta, vindo por outro caminho; à direita (leste) vamos para Edmonton, capital de Alberta, e cidade em que mora o filho do meu amigo Steve. Peguei pra direita, porque depois de um trecho na 16 se vira à esquerda para a 40, outra estrada, num rumo direto ao norte. Após abastecer, fui margeando um pouco o rio Athabasca. Coisa de cinema. Parei para mais uma foto, mas que não representou bem tudo o que eu estava vendo ali, e segui viagem, agora descendo as Rochosas. Na altura de Hinton, já em terreno plano, peguei a tal rota 40 para Grande Prairie. De novo aquela amplidão, retas e muita luminosidade. O pneu da V-Strom estava ficando quadrado. Parece que curvas outra vez eu só teria mesmo na Colômbia, caso voltasse rodando. Isto, por sinal, agora não me preocupava mais. Estava totalmente concentrado no meu objetivo de chegar a Prudhoe Bay. O resto se arranjaria.

O tempo tinha mudado quando cheguei a Grande Prairie. Peguei chuva. A cidade não é muito pequena, tem uns 40 mil habitantes, plana e espalhada. A rodovia corta a cidade, e há vários cruzamentos com farol. Um sistema mais assim a la América Latina. Ali eu teria que encontrar o acesso para a Rodovia 43, à esquerda, para Dawson Creek. Era pela 100 Avenue, que, na verdade, já era a própria 43. Estava com uma vontade louca de falar com alguém de casa, e ia pelos cruzamentos devagar, olhando pra ver se encontrava um telefone público, coisa rara por lá. Ops, tem um ali. Parei numa esquina, debaixo de muita chuva. Peguei no top case a lista de números da Embratel para chamadas a cobrar, e lá fui eu, mas o telefone não funcionou. Segui para abastecer e comer alguma coisinha. O óleo tinha baixado bem. Isso não deixava meu espírito muito confiante, ou então era aquela chuva, ou a distância da família. A atmosfera ali estava mais para assistir a um filme na TV. Não estava com a cabeça tão boa mais. No restaurante, a roupa de moto chamava a atenção, a capa de chuva molhada, a chave pendurada no pescoço. Já estava acostumado aos olhares, mais ou menos adivinhava o que estariam pensando. Na maioria das vezes as pessoas não tinham coragem de se aproximar, mas eu percebia as interrogações na cabeça deles. Naquele estado de espírito, isso me transmitia certa insegurança, já que os outros me devolviam a impressão de que o que estava fazendo era um tanto incomum, digamos, fora da curva. Wagnão … o estranho. O rapaz do balcão quebrou o silêncio e a estranheza e me atendeu com muita simpatia. Era indiano e quis saber várias coisas da viagem, mas meu inglês estava péssimo. Uma das coisas que ele disse é que gostaria muito de visitar o Brasil. Um pouco de humanidade assim sempre cai bem, e, após os procedimentos no estacionamento para completar o óleo, segui para a última perna. Ainda faltavam 200 km.

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Logo avistei a placa: Welcome to British Columbia Canada, The Best Place on Earth, O Melhor Lugar na Terra. Bem, se não fosse assim, ao menos tinha certeza de que um dos piores também não era. Chegando a Dawson Creek, parei no aeroporto local, ao lado da rodovia. Provavelmente havia um telefone. Realmente tinha, mas também não funcionou, o que me fez sentir ainda mais sozinho. O aeroporto era pequeno, e muito me lembrou o Aeroclube de Sorocaba, que tanto eu tinha freqüentado na minha infância e adolescência, quando sonhava em ser piloto. Meu espírito quis ficar agarrado ali um pouco, aconchegado em algo que me pareceu familiar. Eu devia estar sofrendo de saudades. Puxei-o de volta comigo para a estrada. Quando cheguei na principal rotatória da cidadezinha, de 10 mil habitantes, uma placa tão aguardada dizia: “Você agora está entrando na mundialmente famosa ALASKA HIGHWAY”. Uau, nem sei bem o que senti. Tinha agora nas minhas mãos um importante marco da viagem. Ainda não estava no Alaska, mas estava muito no caminho dele, sem dúvida.

A Alaska Highway tem uma história fantástica. Ela foi construída em plena Segunda Guerra Mundial, após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 1941. Ficou pronta em apenas 8 meses e 12 dias. Uma obra heróica através de pântanos, rios, florestas, lama, gelo e pernilongos, muitos pernilongos. Tinha naquele tempo 2.673km, sendo que, hoje, com a remodelação do traçado em algumas partes, está com 2.432km. Nos pedaços modificados costuma haver uma placa indicando: “Old Alaska Hwy, Mile tal to tal”, mas não me atrevi a enveredar por nenhum deles. Esse grande feito da engenharia deveu-se aos esforços de aproximadamente 18.000 trabalhadores, entre norte-americanos e canadenses, que começaram os trabalhos em 08 de março de 1942 após chegarem os materiais e os equipamentos à cidade de Dawson Creek, sob uma temperatura de 30º C abaixo de zero. Trabalharam na frente norte ao mesmo tempo que na sul e foram ligando as partes prontas. Havia naquele contexto um forte temor de invasão pelos japoneses, que já estariam se aventurando perto dali, nas Ilhas Aleutas. A estrada surgiu, portanto, como uma via exclusivamente militar, e só foi aberta ao público em 1949. Seu traçado foi definido a partir dos aeroportos que já havia na região, em Grande Prairie, Fort St. John, Fort Nelson, Watson Lake e Whitehorse, cidades que eram também a minha rota, claro. Dessa forma, por razões estratégicas, a estrada ligaria esses aeroportos uns aos outros por terra. Mas a idéia da estrada e os estudos para um traçado seu tinham começado muito antes. Na verdade, havia já ali muitas trilhas primitivas formando uma rede de caminhos para o comércio que sempre houve na região, de peles, carne, e óleo de peixe. A Alaska Highway atravessa territórios de várias nações indígenas tradicionais, que tinham suas próprias rotas bem antes de chegar o primeiro homem branco, no início do século 19. Quando os russos chegaram para o comércio de peles, a importância das rotas foi se intensificando. Em 1867 o Alaska passou a ser território dos EUA, e o acesso ao norte teve de ser cogitado. Mais tarde, a Corrida do Ouro de Klondike (1897), tendo como centro a cidade de Dawson City, levou muita gente à região, e muitos cachorros puxando trenós eram utilizados nos precários caminhos de então. As intenções imperialistas japoneses foram melhor captadas pelo general americano William “Billy” Mitchell, que defendeu em 1928 a construção da rodovia para suprir e proteger o território. Além disso, na mesma época os canadenses tentavam identificar a melhor rota aérea possível para a Ásia, imaginando uma linha que acabaria tendo influência, como teve, na realização da estrada. Sim, muitas vezes não fazemos essa associação, mas o oriente é logo ali. Várias pesquisas foram feitas sobre por onde deveria passar a tal rodovia, mas nada aconteceu, até tudo se precipitar quando do ataque japonês em 07 de dezembro de 1941. Segundo Murray Lundberg (The Alaska Highway, Historical Notes), as condições de vida durante a construção, tanto no inverno como no verão, eram tão difíceis que era comum os soldados americanos dizerem que, se os japoneses invadissem e tomassem todo o país, isto ainda assim lhes soaria como uma boa coisa. Hoje é surreal imaginar os japoneses invadindo a América, mas naquela época, e faz até pouco tempo, as pessoas sentiram isso concretamente. Muitos diziam que a nova estrada também poderia servir para que os japoneses penetrassem no território, sendo uma bobagem a sua construção. E havia rumores de que a Alaska Highway era tão cheia de curvas que era para que os aviões do inimigo não a utilizassem como pista de pouso, o que não era verdade, diz Lundberg. Aconteceu apenas que ela foi construída onde quer que isto fosse mais fácil, desviando disto e daquilo, na medida em que os obstáculos iam sendo percebidos. Como passava em muitos terrenos pantanosos, uma das técnicas consistia em ir colocando toras de madeira lado a lado, cobrindo com cascalho, e fazendo camadas disso. Às vezes eram necessárias cinco camadas. Acredito que muitos trechos ainda conservam essa técnica sob o asfalto, porque de repente eu sentia a moto afundando, havia rachaduras no pavimento, e as depressões podiam ser bem fundas às vezes. As pontes, todas originalmente de madeira, foram substituídas por pontes metálicas. A estrada cruza vários rios grandes, a começar pelo Peace River, pelo qual eu passei pouco antes de chegar a Fort St. John. É comum que o chão dessas pontes não seja de asfalto, mas só de metal, formando uma estrutura quadriculada e vazada. Então a gente vê o rio embaixo e sente a moto dando aquela tremida. Quando está molhado dá um pouco de medo de derrapar, e, em caso de começar a tremer mais, eu ficava em pé na moto, que assim dava mais segurança e ficava pronto pra qualquer eventualidade. A Alaska Hwy está toda asfaltada, mas, como as condições de temperatura e gelo no inverno são muito difíceis, isso estraga a pista, que está permanentemente em (re)construção. São as tais “constructions” que eu veria muitas nos próximos dias até Prudhoe, bem como os trechos chamados de “loose gravel”, ou, literalmente, cascalho solto. Apesar disso, é uma estrada aberta ao uso o ano inteiro, embora de moto não vejo como encarar essa no inverno. Minha programação de viagem teve desde o princípio como ponto referencial justamente estar nessa estrada no auge do verão de lá. Mas, como sabemos, tem louco pra tudo …

Construcao da alaska highway 1

Foi sob chuva intensa que cheguei a Fort St. John. Estava um pouco abatido pela jornada de 900km. A prioridade era encontrar um hotel de preço razoável e em razão disso eu fugia das grandes redes, com diárias em geral de 150 dólares ou mais, fora o serviço, os impostos, aquela coisa. O primeiro hotel em que parei era bem grande, mas não era de “marca”, digamos, pelo menos não era conhecido para mim, e fui experimentar. Too much expensive. Mas havia lá um telefone público, que, aliás, se diz “pay phone” em inglês, como me ensinou uma senhora pelo caminho, em alguma parada. Ela não entendia o que eu queria, e eu dizia “public phone”, até que, tendo compreendido, me disse que o que eu queria era um “pay phone”. OK? Say “paaaay phooooone”. “Pay phone”, eu repeti. “Paaaay phoooooone”. “Pay phone”. Good, ela disse. Thanks, Madame, but where can I find a pay phone? Oh, sorry, we don’t have a pay phone. Êiiitcha… Orelhão, como dizemos, é uma coisa tão em desuso, que nem teve isso no meu curso de inglês. Mas, enfim, importa que nesse hotel tinha um “pay phone”. Consegui ligar para casa e falar com a Flá. Que bom, isso me animou bastante. Fiquei tranqüilo por saber que estava tudo bem, e sobre o que estavam fazendo naqueles dias. Dizer onde eu estava, e que estava tudo ok, também me ajudava muito, pois tirava o peso da preocupação de elas estarem preocupadas comigo. Mesmo morto de fome e cansado, isto me deu o fôlego de que precisava, e fui em busca de um hotel barato. Barato mesmo não achei, mas era o que tinha. O atendente era chinês, e tinha cara de ser o filho do dono. Nossa, como chovia! Tomara que no meu trecho off-road para Prudhoe não chovesse assim. Tirei aquelas malas, GPS, a tralha de sempre, subi para o quarto no segundo andar com tudo aquilo, me pesando a roupa de cordura e a capa de chuva. Óbvio que precisava de umas cervejas e me dirigi ao restaurante ao lado, do mesmo dono chinês. Ah, esses momentos … Como isso era bom. A cerveja urgente, depois um bom filé, com mais alguma coisa que não me lembro, mas estava tudo ótimo dessa vez.

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Fort St. John tinha sido uma fortaleza, como o nome já diz, e o vilarejo em torno era de apenas 800 habitantes quando começou a construção da Alaska Hwy (1942), passando de repente para 6 mil pessoas. Virou um centro de abastecimento para a região. Atualmente tem em torno de 18.000 habitantes. Na década de 1950 foi descoberto petróleo, e aí surgiu a industrialização local. É uma cidade de importância histórica para a colonização canadense, para a construção da rodovia e, por conseqüência, para os EUA, mas não é uma cidade com atrativos para o viajante. Eu estava tão cansado, e na chuva, procurando hotel, com o GPS me dando uma porção de informações absurdas e fantasiosas, que não tive coragem de ir ao centro da cidade. Depois, já hospedado, a chuva continuou e, sinceramente, não ia sair do hotel por nada desse mundo. Aproveitei que tinha um bom computador no saguão, e era de graça, e fui colocar meus e-mails em dia. O Jimmy, da oficina mecânica no Brasil, tinha respondido a minha consulta enviada antes, lá de Winnipeg, e disse que o vazamento de óleo podia ser por conta do retentor do pinhão ou da haste da embreagem, e que era “bom” procurar um mecânico para a substituição. Hummmmm … ai, ai. Quando chegar em Fairbanks reavalio isso, pensei. Mandei notícias mais detalhadas para casa, finalmente, e fotos. Queria muito mostrar o urso que eu tinha fotografado. Puxa, as meninas iam adorar. Quando baixei a foto, percebi que não tinha saído nada de urso nenhum. Só troncos, galhos e folhas. Ah, que cagão que eu sou. Pelo menos aprendi que não adianta subir em árvores para fugir de ursos.

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