De Mariana à Foz do rio Doce

Quando fiquei sabendo do rompimento da barragem com rejeitos de minério em Mariana (MG), minha reação inicial foi de indignação por mais um acidente ambiental que ocorria em nosso país. Ainda não tinha noção da extensão do problema e das suas consequências para o meio ambiente, moradores da pequena Bento Rodrigues e dezenas de povoações e cidades de Minas e Espírito Santo ribeirinhas ao rio Doce e de seus afluentes.

Como a maioria das pessoas, tentei entender as causas do acidente, acompanhei atentamente as notícias e fiquei tremendamente consternado ao tomar conhecimento da real dimensão da destruição causada pela lama nas cidades mais próximas à barragem e das várias vidas perdidas com a inundação.

Quando a enxurrada de rejeitos atingiu o rio Doce, um dos principais rios brasileiros, e chegou ao Oceano Atlântico, provocando mortandade de peixes, tartarugas, pequenos mamíferos e aves e impedindo a população ribeirinha de utilizar as águas para as necessidades mais básicas, os especialistas passaram a classifica-lo como o maior desastre ambiental causado pelo homem no Brasil em todos os tempos. Assim como a maioria da população que assistia ao noticiário, minha indignação crescia na proporção que a lama avançava.

Passados dois meses do desastre ainda eram veiculadas notícias sobre o problema. Imagens do rio Doce e do mar mostravam que as águas continuavam avermelhadas por causa dos sedimentos. Imagino que todos continuam tendo, como eu, muitas dúvidas sobre tudo que ocorreu e a principal eu acho que é saber se um dia o meio ambiente se recuperará e retornará ao seu curso natural?

Indignado e ao mesmo tempo curioso, aproveitei alguns dias de férias no trabalho para ver de perto o estrago e percorrer com minha moto as estradas desde a barragem que rompeu em Mariana até a Foz do Rio Doce. Sabendo que o que veria poderia de alguma forma afetar meu estado de espírito, carreguei os alforjes da minha moto com a força que precisaria para não ficar deprimido, apontei a roda dianteira da moto para Mariana e fui para a estrada.

Saí de Belo Horizonte num domingo de manhã e segui pela BR 356 em direção àquela cidade. Em pouco mais de uma hora e meia percorri os quase 120 km e as muitas curvas que separam minha casa da primeira vila, cidade e capital do Estado de Minas Gerais. Parei a moto na Praça de Minas Gerais, onde ficam três dos principais monumentos históricos de Mariana, a antiga Casa da Câmara e Cadeia, a Igreja São Francisco de Assis e a Igreja Nossa Senhora do Carmo. O movimento no local era pequeno àquela hora.

Igreja São Francisco de Assis e Igreja Nossa Senhora do Carmo, Mariana (MG)

Conversei rapidamente com um morador que passava pelo local, que comentou que a maioria da população não foi afetada diretamente pela tragédia, mas todos ficaram extremamente comovidos e acabaram se envolvendo de alguma forma, seja mobilizando-se para ajudar os atingidos pela lama ou ficando consternados com tudo que acontecia, principalmente com o drama daqueles que perderam parentes e bens. Perguntei como ele via a possibilidade da Empresa que causou o acidente ser obrigada a encerrar as suas atividades como punição pelas consequências do acidente e ele respondeu que “seria ruim porque a cidade tem uma dependência grande da empresa, porque ela gera muitos empregos e faz a economia girar. Se ela fechar, muita gente não encontrará onde trabalhar na cidade”.

Casa da Câmara e Cadeia, Mariana (MG)

Tirei algumas fotos e segui para o Caminho dos Diamantes, rota da Estrada Real que ligava Vila Rica (atual Ouro Preto) à região de exploração de diamantes na Vila do Tijuco (Diamantina). Encontrei com facilidade o trecho da estrada que começa na MG-129 próximo a Mariana. Uma faixa colocada junto a uma cerca pela prefeitura avisava que o acesso ao distrito de Bento Rodrigues estava interditado por tempo indeterminado. Resolvi seguir adiante assim mesmo.

Caminho dos Diamantes, Estrada Real (MG)

A estrada de terra e cascalho é bastante sinuosa e muitos dos seus trechos são estreitos e têm subidas e descidas íngremes, mas não foi difícil percorrê-la com minha pesada moto custom, porque o piso está bem compactado e em boas condições. Às suas margens, matas preservadas, pastos e plantações de eucalipto.

Caminho dos Diamantes, Estrada Real (MG)

Passei por alguns portões vigiados por seguranças onde haviam placas informando que aquelas terras pertenciam à Vale. Ao longe, crateras marcam as faces de várias das montanhas, denunciando a principal atividade econômica da região, que faz parte do Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais, responsável por quase metade do minério de ferro exportado pelo Brasil.

Caminho dos Diamantes, Estrada Real (MG)

A estrada estava sem movimento. Cruzei apenas com alguns poucos ciclistas fazendo seu exercício de fim de semana, uma moto e uma caminhonete de mineradora.

Caminho dos Diamantes, Estrada Real (MG)

Vi alguns marcos da Estrada Real com a indicação de onde me encontrava. Alguns deles continham uma placa com informações históricas sobre o local, coordenadas geográficas e as cidades mais próximas.

Caminho dos Diamantes, Estrada Real (MG)

Cheguei ao Distrito de Camargos, onde a estrada é a principal e parece que única via. O vilarejo é formado por poucas casas simples que avançam sobre a estrada, estreitando-a ainda mais. Os principais marcos são um cruzeiro e uma igreja histórica no alto de um morro.

Camargos, Mariana (MG)

Encontrei uma pequena cachoeira cerca de 200 metros depois de deixar o vilarejo, onde parei para apreciar e fotografar. Poucos metros à frente, as primeiras marcas da destruição. O que parecia a sede de uma fazenda que foi atingida pela lama. Algumas paredes estavam em pé e outras tinham desaparecido junto com o telhado. Havia um caminhão atolado na lama e palmeiras, que pareciam antes demarcar a entrada da propriedade, agora mostravam a altura que a enxurrada de rejeitos alcançou ao passar por aquele local.

Cachoeira de Camargos, Mariana (MG)
Camargos, Mariana (MG)

Enquanto fotografava, um rapaz passou com uma criança. Perguntei como a estrada estava à frente e ele respondeu que estava fechada, mas havia uma abertura ao lado da porteira onde os moradores costumam passar. Voltei para a moto e continuei viagem.

Pouco depois cheguei a um portão de metal que fechava a estrada e onde havia uma placa avisando que a partir daquele ponto a passagem era proibida. Resolvi continuar. Passei sem dificuldades com minha moto pela lateral do portão e segui pela estradinha de chão batido.

Pouco mais de dois quilômetros à frente cheguei a um lugar onde encontrei uma grande devastação. Naquele local o rio Gualaxo do Norte passava sob a Estrada Real, mas agora não havia mais estrada, apenas marcas da destruição, com terra revolvida, troncos espalhados e lama cobrindo a paisagem. Foi por ali que a lama escoou até o rio do Carmo, que por sua vez levou os rejeitos para o rio Doce. O pequeno rio continuava correndo e suas águas estavam com um tom de vermelho escuro, aspecto denso e sujo, mostrando que a barragem continuava vazando os rejeitos. Do outro lado havia um marco inacessível da Estrada Real.

Não tinha como prosseguir. Retornei o percurso de terra até Mariana onde peguei a MG-129, uma linda estrada que liga aquela cidade a Santa Bárbara. Enquanto viajava, tentava decidir qual caminho seguiria, se iria para Barra Longa, cidade às margens do rio do Carmo que também foi atingida pela lama ou para a BR-381, para ver a situação do rio Doce. Resolvi ver o rio Doce.

MG-129
MG-129

Ao passar por Catas Altas parei para um descanso. É uma linda cidade histórica mineira que fica aos pés da Serra do Caraça.

Catas Altas (MG)

Depois passei por Santa Bárbara e cheguei à BR-381 em São Gonçalo do Rio Abaixo. Aquela estrada é conhecida como Rodovia da Morte por causa da grande quantidade de acidentes que ocorrem nela com frequência. Como sempre, o tráfego estava intenso, com muitos caminhões percorrendo as suas curvas mal feitas. Ao invés de adequar a estrada ao tráfego que ela recebe atualmente, a solução encontrada pelas autoridades para reduzir os acidentes, foi instalar uma grande quantidade de radares e reduzir a velocidade dos veículos para 60 km/h em vários trechos.

Depois de João Monlevade cheguei ao rio Piracicaba. Parei para ver o rio e estranhei porque suas águas barrentas apresentavam coloração normal. Até então eu imaginava que os rejeitos tinham atingido o Piracicaba também, porque ele nasce na Serra do Caraça, muito próximo do local do acidente e deságua no Doce. Mas descobri mais tarde que a enxurrada de rejeitos seguiu por outro caminho.

Continuei viagem até Ipatinga, onde finalmente encontrei o rio Doce. Apesar de muito mais largo e caudaloso, a cor de suas águas era a mesma que havia visto mais cedo no rio Gualaxo do Norte. Estavam avermelhadas e com aspecto denso. A estrada de ferro, por onde o minério é transportado até o Porto de tubarão em Vitória (ES) para exportação, acompanha as curvas do rio Doce até quase o Oceano Atlântico.

Rio Doce

Pernoitei em Governador Valadares. No dia seguinte subi o Pico da Ibituruna, uma grande rocha que tem o rio Doce e a cidade de Governador Valadares aos seus pés. A subida pela estrada de pé de moleque foi rápida. A princípio as nuvens baixas atrapalharam a visão do vale, do rio e da cidade, mas pouco depois o tempo abriu e pude curtir o visual e o clima agradável. Mas mesmo de longe foi possível perceber o quanto o rio Doce havia sido afetado pelo desastre ambiental.

Depois de um tempo apreciando o lugar, apontei o GPS para a vila de Regência, onde fica a foz do rio Doce e desci a montanha. O GPS mandava atravessar Governador Valadares, mas como conheço bem a cidade, ajustei a rota para passar pelo anel rodoviário, onde peguei a continuação da BR-381 até o Distrito de São Vitor, a partir de onde passei a percorrer a boa BR-259 que acompanha o rio em quase toda a sua extensão até a divisa com o Espírito Santo.

A primeira cidade que encontrei foi Galileia. A rua que levava às margens do rio Doce era de pedras grandes, causando grande desconforto para percorrê-la. Não havia ninguém no local, apenas algumas canoas abandonadas debaixo de uma árvore.

Galileia (MG)
Galileia (MG)

Segui em frente até a cidade seguinte, Conselheiro Pena. Parei na cabeceira da primeira ponte e percorri-a a pé. Parei para observar a lama entre as pedras em uma parte do leito do rio onde a água é mais rasa. A imagem era triste e cruel. Quando retornava para a moto, vi um carro se aproximando por uma estrada de terra. Não lembro a marca e modelo do carro, sabia que era velho, mas o que me chamou a atenção foram algumas varas de pescar amarradas ao seu teto. Fiz sinal e um casal de idosos me atendeu curiosos com a visão de um motoqueiro todo equipado, sozinho e debaixo de um sol quente. Perguntei como estava a pescaria. O Senhor que dirigia o carro disse que estava muito ruim. Perguntei se estavam pescando no rio e ele respondeu que no rio não havia mais nada para pescar desde que a lama chegou. Vinham de uma lagoa próxima, mas os poucos peixes que existiam nela também estavam desaparecendo. Lamentou o desastre e lembrou que “já tinha pescado curimatã de quase meio metro em um remanso próximo à ponte”, mostrando com as mãos paralelas o tamanho do peixe. Desejei a eles sorte na pescaria, peguei a moto e fui até o centro da cidade. Depois retornei para a estrada e rumei para o meu destino.

Conselheiro Pena (MG)
Conselheiro Pena (MG)

Em Resplendor, fui alvo da curiosidade de dois velhinhos que estavam sentados em um banco de madeira debaixo de uma árvore enquanto eu observava o muro colorido que acompanhava a margem do rio. Os dois fizeram muitas perguntas sobre a moto e um deles comentou que com ela poderia ir até o fim do mundo. Falei que ela já havia ido ao fim do mundo (Ushuaia), mas ele não sabia onde era. Depois de registrar fotos da ponte, retornei para a estrada. Passei por Aimorés, a última cidade mineira. Do outro lado do rio Doce a vizinha cidade capixaba de Baixo Guandu. Eu não conhecia a simpática cidade onde minha mãe nasceu na primeira metade do século passado.

BR-259
BR-259
Resplendor (MG)
Resplendor (MG)
Aimorés (MG)
BR-259, Divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo
Baixo Guandu (ES)
BR-259

Passei ainda por Colatina, onde peguei a ES-248, com asfalto bem ruim no começo, mas depois de alguns quilômetros ela revelou-se uma bela estrada, que me levou até Linhares, onde conheci algumas lagoas de águas cristalinas, com praias de água doce lindas e próprias para o banho.

Colatina (ES)
Linhares (ES)

Depois de Linhares o GPS me levou para uma estrada de terra. Com dúvidas sobre o caminho correto a seguir, perguntei a um ciclista, que me respondeu que eu estava indo para a Povoação de Regência e que a Vila de Regência, onde fica a foz do rio Doce, era do outro lado do rio. Tive que retornar até Linhares, atravessar a cidade, seguir alguns quilômetros pela BR-101 e depois pegar uma estradinha estreita, que inicialmente era asfaltada, mas depois passou a ser de terra e com muita areia espalhada, que fazia a moto rebolar bastante. Segui com cuidado por cerca de 40 quilômetros até chegar à Vila de Regência, que é um distrito do município de Linhares.

Percorri as ruas sem pavimento da Vila e parei no posto de gasolina. Enquanto abastecia a moto, um senhor veio conversar, curioso com a moto. Perguntei ao dono do posto se ele me indicava uma pousada. Ele riu e disse que conhecia uma muito boa, mas era mal assombrada. Fiquei sem entender até descobrir que a pousada pertencia ao senhor com quem eu estava conversando. Ele me indicou o local, para onde segui e encontrei a excelente pousada do Senhor Nogueira. Depois de instalar-me, fui para a praia. Já estava escuro, mas pude tirar algumas fotos do mar, das gaivotas e do pôr do sol. Passei no restaurante do posto, onde tomei uma cerveja, comi um PF e retornei para a pousada.

Vila de Regência, Linhares (ES)

No dia seguinte cedo saí para conhecer a foz. Que tristeza! O acidente ocorrera há mais de dois meses e a 643 km de distância, em Mariana, mas os efeitos na foz ainda eram devastadores. Onde minha vista alcançava só via água avermelhada, tanto a que chegava mansamente pelo rio quanto a do agitado oceano. As ondas que batiam na areia da praia tinham a cor suja dos rejeitos de minério. Não dava para enxergar debaixo d’água, mas imagino que a vida marinha tinha sido severamente afetada na região, que é um dos mais importantes locais de desova de tartarugas marinhas do Brasil. Integrantes do Projeto Tamar percorriam as areias com um quadriciclo, para monitorar os ninhos daqueles repteis. Consegui até identificar um local onde havia um ninho demarcado pelos técnicos do projeto.

Caminhei até o ponto onde as águas do rio encontram as ondas do mar e dava para ver claramente que uma grande quantidade de sedimentos continuava descendo pelo rio em direção ao mar. Novamente me perguntei se um dia o meio ambiente se recuperará de tudo isso.

Enquanto voltava para a pousada, pensava no que vi durante essa viagem. Eu me sentia indignado com tudo, mas lembrei-me que o desastre que ocorreu agora foi apenas uma das muitas ações do homem que contribuíram para a degradação do Vale do Rio Doce, que originalmente tinha 98% de suas terras ocupadas por mata Atlântica e hoje sofre não só com a atividade mineradora, mas com a ocupação desordenada das suas margens, o despejo de esgoto das casas, descargas químicas e o desmatamento. Enquanto acompanhava o rio percebia claramente que a maior parte da mata ciliar, aquela que protege o rio da erosão das margens e morros, foi quase que totalmente retirada, remanescendo pastagens no seu lugar. Em muitos morros a própria pastagem já não existe, restando apenas a terra nua, parte da qual escorre para o leito do rio sempre que chove, assoreando-o e criando bancos de areia em quase toda a sua extensão. Há anos os moradores de Regência falam que o rio traz quase que só lixo para suas praias e no ano passado, por conta da estiagem, eles viram a foz ser represada pela areia pela primeira vez na história.

Os responsáveis por este desastre ecológico devem responder pela negligência e a empresa causadora deve pagar pelos danos ao meio ambiente e às famílias atingidas pela enxurrada, mas não podemos demonizar a atividade mineradora e esquecer o que vem ocorrendo com o rio. Não sou contra a exploração econômica dos recursos naturais, pelo contrário. Devemos aprender a utiliza-los com responsabilidade, atuando nos locais onde os danos ao meio ambiente podem ser mitigados e preservando os lugares que precisam ser preservados. No caso específico da mineração, eu acho um erro extrair o minério e exporta-lo sem beneficiar e agregar valor a ele. Da forma como é feito hoje, apenas a nossa geração se beneficia da sua exploração através de impostos e empregos, mas no futuro, quando estes recursos esgotarem, sobrarão apenas as crateras para os nossos netos.


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