Viagem de Moto até Mendoza Argentina

Isabela nas alturas

O que mais me fascina sobre viajar de moto é que basta sentar e partir, não sem um certo planejamento, claro. Em poucas horas (ou dias) podemos alcançar lugares inimagináveis. Os primeiros quilômetros são os mais difíceis, afinal é preciso vencer a inércia, depois o tempo flui como a vida.

Assim começa mais uma aventura. Para onde? (Opa, Argentina reabriu as fronteiras!) Convido os amigos. (‘Não posso’, respondem em uníssono.) Consulto minha filha, Isabela. (‘Eu topo!’) Quando? (Tão logo o tempo melhore!) Quanto? (Gasolina a R$ 3 é o paraíso!).

Nosso primeiro destino seria Mendoza, com direito a trekking no Aconcágua. Depois Ruta 40 em direção a Salta, um trecho ainda inexplorado por mim, e dali de volta para casa. Por uma questão de agenda Isabela se encontraria comigo em Mendoza e então seguiríamos juntos de moto.

Saí bem cedo numa terça-feira qualquer de janeiro, da minha casa em Nova Lima, MG. Logo deixei para trás os cafezais para cruzar as imensas lavouras de cana-de-açúcar, ao som da voz adocicada de Fernanda Takai (I don’t want to talk about it). A moto parece flutuar nas estradas paulistas.

São 980 km até Londrina, meu primeiro pouso. O corpo reclama, o joelho esquerdo parece uma dobradiça velha, o pescoço um periscópio fajuto e as costas saídas de uma cama de faquir. O tancão da Adventure me leva a fazer poucas paradas, foram somente duas. Entrei na cidade ao som dos Engenheiros do Hawaii (Infinita Highway), abri o capacete e senti a brisa da liberdade enchendo meus pulmões e revigorando o meu corpo. Já não me lembrava de dor alguma.

Já no conforto do meu aposento, meu descanso (merecido) só foi perturbado pelo coro contínuo de madeira rangendo e ruídos agudos vindos do outro lado da parede.

As próximas paradas seriam em Foz do Iguaçu, Santa Fé e, enfim, Mendoza.

A Argentina me ofereceu um caloroso bienvenido, precisamente de 42 graus com o sol a pino. Me lembrei de uma dica (ME NOAR) e fechei as aberturas da jaqueta, a bolha que se formou diminuiu o desconforto! Coloquei Blues na vitrola, 144 km/h no piloto automático e me deixei levar pelas retas infinitas (atento à Gendarmería Nacional, que está por toda parte).

Numa dessas retas observei uma GS Rallye chegar rápido e emparelhar comigo. Trocamos acenos e combinamos uma parada para um café. Era o curitibano Jairo. Conversamos por quase uma hora e ele me deu dicas preciosas do roteiro. ‘É o meu quintal’, me disse. Rodamos juntos por algum tempo, depois ele enrolou o cabo e desapareceu. Cheguei a Santa Fé com o hodômetro marcando 1050 km. Meu joelho-dobradiça agradeceu aliviado.

Finalmente à sombra dos plátanos de Mendoza, encontrei Isabela. No dia seguinte fomos à agência que nos levaria ao Aconcágua (‘Tudo Certo!’), alugamos sacos de dormir resistentes a baixas temperaturas e aproveitamos para degustar vinhos esplêndidos em Luján de Cuyo.

Sempre procuramos permear as viagens de moto com caminhadas, mas dessa vez seria mesmo punk: três dias em alta montanha caminhando até a Plaza Francia, que fica aos pés da parede sul do Aconcágua, o teto das Américas (6961 m). Isabela e eu estávamos excitados quando deixamos para trás Horcones (2950 m) em direção ao acampamento de Confluencia (3390 m).

‘A montanha é um espelho de si mesmo, um lugar para se conhecer’, ouvi atentamente a nossa guia hablando sem pausa. Passei os próximos dias pensando nessas palavras, tentando entender o espírito da montanha (e a mim mesmo, por consequência). Também tentei tirar o máximo proveito de estar todo esse tempo só com a minha filha.

Foram 7 quilômetros até Confluencia (podia jurar que foram 42!), que fizemos em 4 horas (intermináveis). O tempo passa tão devagar na montanha! Ficamos exaustos, atinando para o ar rarefeito. Nossa guia, Sol, uma chica miúda, mas com um apetite desproporcional ao seu tamanho e esperta como uma cabra montesa, tinha um jeito pitoresco de caminhar com as pernas ligeiramente arqueadas e o gingado dos ombros.

Durante o farto jantar, perguntei a Sol o que a montanha representava para ela. ‘Simplicidade’, disse, ‘tudo o que eu preciso para viver cabe dentro de uma mochila`. ‘Ah, e humildade’, acrescentou, ‘sem isso não é possível sobreviver aqui’. Sol nos contou que Aconcágua significa ‘Sentinela de Pedra’, era uma das montanhas sagradas dos incas. Contou também de uma múmia encontrada a 6 mil metros de altitude (congelada), era uma criança inca que fora sacrificada aos deuses 500 anos atrás.

Na Argentina são 6 as montanhas onde foram encontradas 8 múmias de crianças oferecidas aos deuses em nome de Wiraqocha, o deus supremo inca (até hoje foram encontradas 27 em toda a cordilheira dos Andes). Três delas, conhecidas como los niños del volcán Llullaillaco, encontram-se preservadas no Museu de Alta Montanha de Salta, que tive oportunidade de visitar.

A noite na montanha foi gelada, mas não impediu Isabela de fazer uma infinidade de fotos do céu estrelado. Jamais vi um céu como aquele! Saímos do acampamento ao amanhecer para uma caminhada de 8 km até a Plaza Francia (4200 m), 5 horas subindo. O Aconcágua nos recepcionou com um vento sul gelado e uma auréola que envolvia seu pico nevado, como se fosse realmente divino. Ficamos ali contemplando 580 milhões de anos de história. Numa espécie de epifania. Entendi que não é preciso explicar o espírito da montanha, apenas senti-lo.

Descemos a passos largos (bem mais fácil descer) para Confluencia, e no dia seguinte de volta à civilização e à motocicleta. Isabela foi valente, jamais se queixou de coisa alguma, e olha que passamos por perrengues. Num vacilo inacreditável, Sol deslizou a 30 cm de uma ribanceira, estava bem perto dela, só por isso consegui agarrá-la pela mochila, que susto! Fiquei encantado com o cuidado que Isabela demonstrava comigo, quando comecei a sentir sintomas do mal da montanha. Admirei ainda mais sua personalidade. ‘Por que você vai seguir pelo caminho de maior trânsito se pode fazer seu próprio caminho?’, me repreendeu certa hora. Era o seu mote.

De volta a Mendoza, tudo que precisava era de um sono revigorante, mas a noite mendocina trouxe uma tempestade rara (chove pouco, a água vem do degelo). O vento assobiou e bateu com violência nas janelas. Foi uma noite de apreensão, afinal teríamos 800 km no dia seguinte.

Pela manhã a chuva deu uma trégua e tomamos a Ruta 40, mas o que encontramos foi uma estrada parcialmente destruída pela chuva e 400 km com todas as depressões alagadas. Não existe ‘drenagem’ por aqui, as depressões na pista funcionam como drenos para os cursos d’agua sazonais. A cada 2 km atravessamos correntezas de lama e detritos, com pedras grandes o suficiente para causar um estrago e tanto.

A chuva voltou a fustigar e nos acompanhou todo o dia em meio a um crepúsculo fantasmagórico, que privou Pachamama (a Mãe Terra) dos raios de Inti (o deus Sol). Tudo o que eu queria era passar ileso por aquele trecho mefistofélico. A experiência da Bolívia havia sido bastante traumática para Isabela. Toda a água derramada na cordilheira nas últimas horas buscava seu caminho sobre o chão árido e impenetrável. As manchetes do dia seguinte não economizaram: ‘Viento, lluvia y granizo: las imágenes de la tremenda tormenta en várias zonas del Gran Mendoza’.

O comentário da Isabela foi irônico, ‘Miramos na Argentina e acertamos na Bahia’, em referência às chuvas recentes que arrasaram o estado. Felizmente chegamos sãos e salvos a Fiambalá, onde encontramos fontes de águas termais de 45 graus, um lugar paradisíaco incrustado entre paredões de pedra vulcânicos, ideal para relaxar depois de um dia tenso (dica do meu novo amigo Jairo).

No dia seguinte seguimos para Tafí del Valle (onde almoçamos) e depois para Cafayate (dicas do amigo motociclista argentino Vazco). Não sei por que cargas d’agua, mas resolvi fazer os 450 km (de Fiambalá a Tafí del Valle) sem parada, foram 5 horas a 19,6 km/l. ‘Para testar os limites’, pensei, desci da moto como caranguejo. Tocava Lou Reed (Who am I) na vitrola.

Já se sentiu nuvem? Sim, foi como me senti em El Infiernillo, a 3042 m de altitude, contemplando o imenso vale à frente, lá em baixo a charmosa cidade de Tafí del Valle. Gotículas d’água se acumulavam na minha viseira, mas não chovia, a chuva ‘estava lá’ e nós éramos parte dela, Isabela e eu. ‘Sou nuvem’, decretei.

Cafayate é uma cidade agradabilíssima. Comemos empanadas e tomamos vinho Torrontés, a uva tradicional da região. Estava preocupado com meu pneu traseiro, que apresentava desgaste acentuado, embora não tivesse mais que 8 mil km. Vinha poupando, mas não teve jeito, pedi socorro ao Vazco. Ele prontamente me indicou um revendedor em Salta onde encontraria o pneu.

A Ruta 40 é repleta de quebradas, que são passagens estreitas entre as montanhas, formando verdadeiros desfiladeiros. São de rara beleza. A Quebrada de Belén é um oásis com montanhas cobertas de um magnífico tapete verde. Em Hualfin as montanhas adquirem tons do vermelho à púrpura. Ao longe se avista o Cerro del Bosón com seus picos nevados sobressaindo acima das nuvens. Em Chilecito me vi numa espécie de Rio do Rastro, embora bem mais imponente (2050 m), infelizmente não vimos nada além de nuvens nesse trecho. Deixamos a Ruta 40 e tomamos a 68 para Salta. No caminho, várias paradas para fotos da Quebrada de las Conchas. Segui embalado por Christopher Cross (Ride like the wind).

Voltamos a encontrar corredeiras de lama. Algumas tão profundas a ponto de cobrir as rodas, perigosas e traiçoeiras. Numa delas minha roda dianteira mergulhou subitamente e a traseira foi atrás, cheguei a pensar que ia ficar preso num buraco infernal, mas segurei no freio traseiro e acelerei para sair dele como uma fênix. Ufa! Chegando a Salta fui imediatamente trocar o pneu e pude respirar aliviado. O dia foi de descanso, principalmente para Isabela, que estava esgotada.

Em Salta comemos mais empanadas e experimentamos a cerveja de mesmo nome. Curtimos um pouco daquela cidade vibrante e nos preparamos para enfrentar os 3500 km da volta para casa. Dos 800 km que separam Salta de Corrientes, 600 parecem ser uma reta única, pontilhada por algumas poucas corcovas de dromedário (o camelo possui duas). Parei para abastecer em um lugarejo chamado Pampa del Inferno. Nem precisava perguntar o motivo do nome, mas a atendente do posto explicou: ‘A temperatura costuma chegar aos 50 graus por aqui’. Dei graças por estar ligeiramente abaixo de 40.

De Corrientes a Posadas passamos por uma densa névoa cinzenta que cobria uma área extensa (entre o rio Paraná e o Parque Iberá), os sinais de queimada estavam por toda parte. A fumaça deixou meus pulmões entorpecidos e meus olhos embaçados. Ainda em Posadas vimos o que todo motociclista odeia ver, uma motocicleta em pedaços e um corpo estirado no chão. Jairo havia comentado sobre um amigo que entrou com tudo na traseira de um caminhão. Todo cuidado é pouco.

De novo em Foz do Iguaçu, o jantar foi por conta da Isabela, que comentou ainda perplexa: ‘Aquelas montanhas parecem ter um universo próprio, é montanha em cima de montanha’. Muito pertinente! Mas agora é hora de seguir viagem. O próximo pouso seria em Marília e depois finalmente em casa. Chegar à terrinha é sempre bom, me sinto cansado, mas realizado. A trilha sonora não podia ser outra que não os mineiríssimos Lô Borges e Toninho Horta (Manuel, o Audaz).


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