Rumo ao Pacífico – de Porto Alegre a Viña del Mar

Alcei a perna no pingo / E saí sem rumo certo
Olhei o pampa deserto / E o céu fincado no chão
Troquei as rédeas de mão / Mudei o pala de braço
E vi a lua no espaço / Clareando todo o rincão

Os versos do poeta João da Cunha Vargas (musicados por Vitor Ramil no disco Ramilonga) ecoaram dentro do meu capacete ao longo dos pouco mais de 5 mil quilômetros que rodamos – eu, Dedé, Landão e Tara – entre a capital de todos os gaúchos e Viña del Mar, comuna chilena localizada na província de Valparaíso.

O plano era simples: cruzar o Pampa e a Cordilheira dos Andes para alcançar o Oceano Pacífico, riscando uma linha quase reta de um lado a outro da América do Sul. Foram 10 dias sem chuva, pneu furado ou problema mecânico, o que nos permitiu aproveitar a neve, as cervejas locais, as parrilladas e muito mais. É o que passo a contar agora.

A ida

O primeiro dia de qualquer viagem é sempre de muita empolgação; ainda assim, a BR-290 (que liga Porto Alegre a Uruguaiana) é uma velha conhecida de todos e não deveria nos surpreender – mas o tempo, quem diria, sim: ninguém apostaria que o dia mais frio de uma motocada através da cordilheira aconteceria quase ao nível do mar.

O dia seguinte começou cedo, com uma sensação térmica bem mais modesta, e depois dos trâmites de entrada na Argentina atacamos o mesmo trecho que percorremos em 2010 até Santa Fe, que no começo está em ótimas condições (com apenas um desvio e vários segmentos duplicados) mas entre San Jaime de la Frontera e Federal o concreto da RN-127 está quebrado ao longo de mais ou menos 20 quilômetros.

Viagem de Moto para o Chile

Chegamos a San Francisco no meio da tarde, em pleno feriado de 1º de maio, e pudemos ver os parques lotados de pessoas de todas as idades correndo, pedalando ou apenas mateando na sombra. Estávamos atrasados e ficaríamos mais ainda por conta das muitas cidades no caminho até Villa María, onde chegamos já com a noite fechada e, depois de descarregarmos as motos, comemos a primeira de muitas parrilladas.

Com a cabeça pesando mais que o normal (culpa das Quilmes na noite anterior), colocamos as motos na estrada às 7h30min para cumprir a meta do dia: chegar antes da noite em Mendoza. Apesar das paradas, lá pelo meio da tarde avistamos ao longe a pré-cordilheira, uma parede de pedra suntuosa visível a dezenas de quilômetros de distância. Com o sol na testa, entramos em Mendoza e fomos direto ao hotel para os procedimento de praxe (seguidos de uma caminhada pela Plaza Independencia e outra parrillada).

Viagem de Moto para o Chile

A manhã chegou rápido e com ela o primeiro trecho de chão batido da viagem, entre Mendoza e Uspallata; é quase impossível não parar a cada curva para fotografar o visual lunar da RP-52: são quilômetros de subida, com curva em cima de curva, que desembocam em um planalto a 3.000 metros de altura onde enxergamos, pela primeira vez, a neve no topo das montanhas. Descemos até Uspallata e não demorou para que chegássemos à cordilheira, um lugar de beleza inexplicável: quase sozinhos na estrada, foi possível reduzir a velocidade e contemplar a beleza dos rios, túneis, pontes, morros e da neve que se aproximava cada vez mais da estrada. A intenção inicial era subir até a estátua do Cristo Redentor e cruzar a cordilheira pelo caminho antigo, mas a quantidade de neve impediu que fizéssemos isso – e, a bem da verdade, não conseguimos sequer passar da primeira curva, onde chegamos com muito esforço, alguns sustos, vários escorregões e poucos tombos.

De volta ao asfalto, atravessamos o Túnel do Cristo Redentor e logo chegamos à aduana integrada (do lado chileno): para ingressar no Chile, é preciso descobrir o que fazer e, em seguida, passar por 5 guichês, que carimbarão pelo menos 7 vezes a papelada, para só então ter a moto revistada, cheirada pelos cachorros e revistada novamente. Este processo demorou quase 2 horas, o que fez com que chegássemos tarde da noite em Viña del Mar. A compensação veio no dia seguinte, quando caminhamos pela beira-mar, fomos até Valparaíso, comemos e bebemos nos restaurantes locais e nos preparamos para botar o pé na estrada de volta para casa.

Viagem de Moto para o Chile

{loadmodule mod_custom,Anúncios Google Artigos}

A volta

Sem a necessidade de parar a todo momento para documentar os detalhes, a volta transcorreu com rapidez até a cordilheira, onde encostamos as motos mais uma vez para apreciar o visual ao mesmo tempo belo e assustador da montanha e a neve que chegava ao meio da canela. Voltamos à estrada para passar mais uma vez pela aduana integrada (dessa vez do lado argentino, que possui um procedimento muito mais organizado: os veículos entram em uma fila e ali os documentos são revisados e carimbados; nenhuma mala foi revistada) e descobrimos que um dos integrantes – o mesmo que esqueceu a identidade em 2009 – havia perdido um papel que deveria ser apresentado no regresso à Argentina. Problema resolvido, entramos na fila da vistoria e quando chegou a vez do perdedor de papéis, ele se deu conta que outro documento tinha ficado pelo caminho. Haja coração…

Viagem de Moto para o Chile

Ainda na cordilheira, visitamos o Parque Provincial Aconcágua, de onde se pode ver o pico de 7.000 metros de altura que dá nome ao parque, e passamos novamente pela Puente del Inca, onde há uma feira permanente de artesanato. Chegamos a Mendoza no final do dia e descansamos as carcaças cansadas, preparando os pés para uma caminhada de vários quilômetros no dia seguinte pela cidade.

Apesar de longa, a motocada do antepenúltimo dia transcorreu com facilidade e só nos demos conta que estávamos quase sem pesos argentinos em Villa María; como era cedo, procuramos uma casa de câmbio e lá fomos informados que o valor mínimo para troca era de R$ 500. Como não tínhamos essa quantidade de reais, fomos à outra casa de câmbio, mas lá não era possível fazer a troca e voltamos à primeira, onde um habilidoso motoqueiro do grupo convenceu a atendente a trocar pouco mais de R$ 200 por pesos. Depois do estresse inicial, para comemorar, resolvemos tomar uma cerveja – mas os cafés do centro não aceitavam cartão de crédito e precisávamos poupar nossos pesos para a gasolina, de forma que compramos 4 cervejas em um supermercado e saímos bebendo pela rua. Enquanto os demais xeretavam uma vitrine, eu tomava minha cerveja olhando para o nada quando uma policial encostou do meu lado e disse:

– É proibido beber na via pública.

Meio atordoados com a carraspana da policial (que ficou nos cuidando com o canto do olho enquanto nos afástavamos), voltamos ao supermercado para terminar de beber as cervejas, onde um dos viajantes teve a ideia de documentar aquela cena inusitada – mas ele mal sacou a máquina fotográfica e foi abordado por uma funcionária do supermercado:

– É proibido fotografar dentro do supermercado.

Com o rabo no meio das pernas (não era proibido), voltamos ao hotel (também não era proibido) e tomamos outras lá (torcendo para que não fosse proibido). Acabamos rindo muito da história toda, mas discretamente: não tínhamos certeza se era proibido ou não.

Por fim, rodamos até Uruguaiana e no dia seguinte de lá para Porto Alegre, fechando com chave de ouro uma viagem perfeita. De minha parte, resta agradecer ao Patrão Velho pela proteção e aos meu companheiros de estrada pela parceria e pela paciência ao longos destes 10 dias.

¡Gracias, bugrada!

{loadmodule mod_custom,Anúncios Google Artigos}

Detalhes da rota

Caminho (por dia) Distância

  • Porto Alegre (BRA)/Rosário do Sul (BRA)/Uruguaiana (BRA) – 630 km
  • Uruguaiana (BRA)/Federal (ARG)/Santa Fe (ARG)/San Francisco (ARG)/Villa María (ARG) – 760 km
  • Villa María (ARG)/Rio Cuarto (ARG)/La Toma (ARG)/San Luis (ARG)/Mendoza (ARG) – 620 km
  • Mendoza (ARG)/Uspallata (ARG)/Los Andes (CHI)/Quillota (CHI)/Viña del Mar (CHI) – 410 km

Apesar da rota escolhida não ser problemática quanto ao piso e a quilometragem diária não ser nenhum absurdo, a experiência nos ensinou algumas lições simples, resultado das decisões que tomamos, que merecem ser compartilhadas:

  • Na ida, entre Porto Alegre e Uruguaiana, resolvemos almoçar lá pelo meio da tarde por que estávamos com tempo sobrando; como o posto de gasolina onde paramos possuía um restaurante, nos abancamos em uma mesa, comemos feito condenados e depois, já na estrada, a soneira bateu forte. Nos dias seguintes não almoçamos mais, somente comemos lanches leves pelo caminho.
  • Os 760 km entre Uruguaiana e Villa Maria não seriam demorados de percorrer se não tivéssemos a imigração para passar (em Paso de los Libres) e, maior fator de atraso, várias cidades pequenas para atravessar, onde parávamos em sinaleiras e ficávamos presos atrás de caminhões lentos.
  • Apesar de termos adquiridos pesos argentinos e chilenos antes de sairmos daqui, muitos postos de gasolina (com preços variando entre R$ 3,30 e R$ 3,40 por litro) e até um hotel não aceitavam cartão de crédito, o que nos levou a precisar trocar novamente reais por pesos argentinos.
  • Adiante de Mendoza, a beleza se apresenta de várias formas e a cada curva, fazendo com que as muitas paradas para contemplar e fotografar sejam obrigatórias – e isso gera uma demora considerável para rodar míseros 100 km.
  • Nem todos os hotéis contam com serviço de lavanderia: a solução é levar roupas suficientes para todos os dias da viagem ou – meu caso – lavar as roupas no quarto do hotel e secá-las perto dos aquecedores (as calças e camisas do tipo segunda pele secam de um dia para o outro mesmo sem o aquecedor por perto).
  • Ao contrário da Argentina, onde pagamos pedágio (R$ 3,50) apenas na entrada do túnel subfluvial entre Parana e Santa Fe, no Chile as motos sempre pagam (R$2,50) para utilizar a estrada.
  • Que me desculpem os mais ortodoxos, mas o GPS é indispensável nesse tipo de viagem. Mesmo nas cidades maiores, como Mendoza ou Viña del Mar, a chegada ao hotel foi facílima; nas estradas, algumas mal sinalizadas e sem viva alma em um raio de quilômetros, saber com segurança para que lado seguir foi tranquilizador.

Equipamentos e itens de apoio

  • Conjunto de chuva (jaqueta, calça e botas)
  • Ferramentas básicas (chaves de boca, allen, torx, fenda, phillips e alicate)
  • Lanterna, fita isolante, estilete, arame, lacre plástico e silver tape
  • Reparo de pneu
  • Trava de disco
  • GPS
  • Medicamentos (para azia e dores de cabeça e musculares)

Números da viagem

  • Distância percorrida: 5.013 km
  • Seguro pessoal: R$ 60
  • Seguro carta verde: R$ 110
  • Hospedagem: R$ 1031
  • Combustível: R$ 576
  • Média de consumo da BMW F 800 GS: 22,6 km/l (melhor: 23,9 km/l; pior: 20,8 km/l)

{gallery}0512/Pirex{/gallery}

Piréx (Cássio Pires) é autor do excelente blog Piréx – Diário de Bordo, …”um conjunto de anotações sobre viagens, festas, motos e tudo mais que orbita o universo motociclístico”.

Para ver mais fotos desta viagem, clique aqui.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *