Ansiosos por vencer a última etapa do roteiro, abastecemos as motos e deixamos para trás a aduana do Paso de Jama. Tinha início um dos trechos mais instigantes da viagem… Apesar do sol brilhante e do horário, algo em torno das três da tarde, o frio da altitude fazia a diferença, pois desta vez chegamos a alcançar os 4.800 metros, nosso recorde nessa viagem, que ainda tinha muito a nos oferecer.
O Salar de Águas Calientes nos impressionou como um dos mais belos cenários vistos naquela região. Lagoas de água salgada incrivelmente azuis contrastavam lindamente com os tons amarelados do deserto. Nelas os flamingos buscavam seu sustento, totalmente indiferentes à nossa presença, assim como inúmeras vicunhas que pastavam no seu entorno, proporcionando verdadeiro deleite para os fotógrafos de plantão. Era como estivéssemos numa daquelas capas da National Geographic . Nosso companheiro Barba, alheio ao perigo e à pressa dos demais em seguir viagem, não se contentou em apreciar tudo aquilo ao longe e se aventurou pelas trilhas das vicunhas esgueirando-se entre as lagoas de águas sulfurosas, tudo para conseguir as melhores fotos.
Logo após pudemos vislumbrar a entrada para uma nova e imperdível atração daquelas paragens, era o Salar de Tara, que compõe um dos sete setores da Reserva Nacional Los Flamencos, distante cerca de 100 quilômetros de San Pedro de Atacama e numa altitude que beira os 4.300 metros. O que se destaca em Tara são as impressionantes formações de estrutura vulcânica, modeladas pela ação dos ventos. Os principais são chamados de Monjes ou Guardianes de La Pacana, grandes torres de pedra que se elevam do deserto como estranhos monólitos, que demarcam uma paisagem totalmente surreal. Infelizmente não tivemos tempo para explorar melhor essa beleza natural, que incluía também o Farallon de Tara, um gigantesco paredão de pedra esculpido pelo vento e a principal atração que se chama Catedrales de Tara, igualmente esculpida em pedra, além da Laguna de Tara, alimentada pelo rio Zapaleri, um dos poucos cursos d’água da região e que nasce em território boliviano. Nesse ponto da estrada estávamos a apenas 5 quilômetros da fronteira boliviana, porém retomamos nosso destino à San Pedro, sabendo de antemão as dificuldades que enfrentaríamos em mais uma aduana. Paisagens incríveis sucediam-se até que iniciamos uma descida que parecia interminável, na verdade um descenso que inspira cuidados especiais de todo viajante motorizado. Ele começa aos 4.200 metros de altitude e termina em 2.200 metros, tudo isso num curto trecho de pouco mais de 40 quilômetros, quase numa só reta… Descer em “ponto-morto” nem pensar! O ideal é usar o freio-motor, pois o desgaste das pastilhas ou lona seria enorme e além disso os efeitos da diferença de altitude, num espaço tão curto, se for rápido demais pode afetar negativamente o raciocínio…
Para se ter uma noção como o trecho é perigoso, existem vários pontos de escape para caminhões, no caso de perda dos freios… São acessos cobertos de brita para facilitar a parada e que terminam numa pequena elevação.
Mais alguns quilômetros e ao lado da estrada um dos ícones de San Pedro, lá estava como uma sentinela dominando a paisagem, o majestoso Licancabur com seus 5.916 metros de altitude e que mesmo em pleno verão ainda ostentava alguma neve em seu topo. O vulcão localiza-se sobre a divisa do Chile com a Bolívia e apesar de não existir nenhum registro oficial da sua última erupção, ainda assim é classificado como um vulcão semi-ativo. No lado boliviano ele ganha um complemento muito especial que é a Laguna Verde.
A exploração do seu entorno apresenta alguns riscos, pois sendo região de fronteira, segundo alguns guias, há a possibilidade, mesmo que remota de serem encontradas algumas minas, lá enterradas desde a época da ditadura militar no Chile. Estima-se que o governo de Pinochet tenha plantado na região de fronteira mais de 190.000 minas, tendo sido registrado 4 acidentes e 3 mortes.
Assim na dúvida se é fato ou folclore, optamos por fotografá-lo ao longe mesmo… A escalada até seu topo é permitida mediante autorização das autoridades chilenas em San Pedro, desde que haja acompanhamento de guias especializados em alta montanha. No entanto meu guia (espiritual, é claro) me aconselhou a não “inventar moda” a esta altura do campeonato… 62 do segundo tempo!
Com a adrenalina em alta, a chegada a San Pedro foi comemorada efusivamente, com gritos de viva Zapata e socos no ar… Todos mais pareciam moleques, porém entendam que isso faz parte da aventura!
A alegria só acabou mesmo quando paramos na aduana chilena, debaixo de um sol de 40° C e com os milicos sem pressa alguma para nos liberar. De fato, os motoqueiros despertam suspeitas infundadas, tivemos que baixar toda bagagem para uma revista geral. Acreditem que o soldado encarregado da minha revista, desconfiou até das bonequinhas aymanás adquiridas em Purmamarca para minhas netas, e ficou apertando uma a uma na tentativa de identificar algum “recheio especial” ou apenas para observar alguma reação comprometedora da minha parte…
Aquela roupa de cordura, as botas e o sol inclemente, tudo somado a um guardinha mal humorado… Nem precisaria ser adivinho para saber o que eu estava imaginando daquilo tudo, meus pensamentos estavam explícitos para qualquer um ler em letras garrafais!
De repente um pensamento nefasto caiu como um raio gelando meu sangue… Onde será que meu irmão tinha guardado as malditas folhinhas de coca, distribuídas para mascar no trem das nuvens? Lá naquela região da Argentina eram liberadas, porém no Chile a história era outra e seria problema na certa! Furtivamente cheguei bem perto dele e perguntei do santo remédio para o soroche (mal das montanhas) e ele imediatamente respondeu: – Não tenho nem idéia! Fiquei roxo, ainda bem que o policial não estava me olhando naquela hora, pois tinha dado a maior bandeira! Felizmente logo em seguida fomos liberados, o susto passou e nem lembrei mais das mágicas verdinhas. Malas recolocadas nas motos e partimos para o povoado em busca de acomodações da Pousada Don Raul, único lugar que consegui reservar às vésperas da nossa partida, no Brasil.
Realmente a pousada não era muito atraente, mesmo para os padrões básicos da povoação, mas para quem tinha dormido em Susques na noite anterior, era até “jeitosinha”… Além da boa localização, a poucos metros da rua principal (rua Caracoles), dispunha de estacionamento fechado para nossas motos, debaixo de frondosas árvores, ( só a sombra no deserto já é um luxo…), os quartos em chalezinhos construídos em adobe, tinham pintura interna recente e ofereciam um mobiliário básico, porém confortável. Uma vez instalados, nos sobrou o resto da tarde para percorrermos a vila para adquirirmos algum pacote turístico para o dia seguinte, algumas fotos, contatar a família e finalmente um bom jantar para encerrar um dia cheio por excelência.
Considerada como um oásis no Deserto do Atacama, San Pedro surgiu como um centro de parada para os colonizadores espanhóis e a povoação originou-se a partir da sua igreja, construída pelos jesuítas no século XVI. O local sempre foi considerado o principal centro da cultura atacamenha e oferece inúmeras atrações turísticas pela sua formação geológica singular. Entre tantos pontos de visita poderíamos destacar: Valle de La Luna (La Cordillera de La Sal), Geiseres Del Tatio, Reserva Nacional Los Flamencos (Laguna Chaxa), Pukara de Quitor e Vulcões – Licancabur, Sairecabur, Lascar, entre outros, além de salares e lagunas. O clima é extremo, sendo considerado o deserto mais seco do mundo (por uma combinação de fatores climáticos) a ausência de chuva é sua característica mais marcante. Assim o mesmo deserto que durante o dia apresenta temperaturas em torno de 40 graus centígrados, à noite pode cair abaixo de zero. Por tudo isso alguns cuidados especiais precisam ser tomados, notadamente para quem viaja de moto: Manter-se hidratado, usar soro nasal (a mucosa chega a sangrar), usar bloqueador solar de máxima proteção e também colírio para manter a hidratação do globo ocular.
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