Nunca se esqueça do principal

O sábado amanheceu com o ceu limpo e uma leve brisa. Eu estava ansioso. Era hora de pegar estrada. A minha velha moto já estava abastecida, com a corrente lubrificada e com os pneus calibrados. Estava um pouco suja, pois não tive tempo para dedicar-lhe uma boa limpeza.

Muita coisa eu havia feito no dia anterior. Afinal, ainda não estava totalmente de férias e vários problemas no trabalho ainda careciam de solução. Somente ao final do expediente da sexta-feira é que consegui passar as demandas do serviço ao colega que iria me substituir na usina. Tão logo saí do trabalho, corri ao supermercado pra comprar frutas e algumas barrinhas de cereais. Antes, porém, desviei o caminho pelo banco, para pagar algumas contas pendentes. Não queria deixar essas perturbações do cotidiano me incomodarem. Antes de seguir para o descanso, passei na casa dos meus pais, onde recebi o conselho sempre preocupado da minha mãe: – “meu filho, não se esqueça do principal; não se esqueça dos que muito te amam.

Tal qual acontece com a maioria dos motociclistas nas vésperas das viagens, durante a noite eu não consegui dormir. Antes mesmo do dia clarear e de tanto me remexer de um lado para o outro na cama, acabei me colocando de pé muito antes da hora. O corpo doía um pouco. Esquentei e tomei um chá de alcaçuz sem açúcar.

As bagagens já estavam colocadas na moto. Roupas impermeáveis, ferramentas para pequenos reparos, câmaras de ar reservas, máquina fotográfica… quase tudo estava embarcado no meu velho “cavalo de aço” de seiscentas e cinquenta cilindradas. Ôpa!!! Onde havia colocado as barrinhas de cereais, as maçãs e as bananas que havia comprado? Não me lembrava. Suspeitei que as havia esquecido na casa dos meus pais. Pensei rápido: tanto melhor; eles terão algo a mais para se alimentarem e para lembrarem-se de mim.

{loadmodule mod_custom,Anúncios Google Artigos}

Como moro sozinho, antes de partir em viagem, coloquei com fartura algumas castanhas, ervilhas e sementes de girassol num pequeno prato e enchi de água um copo grande, para manter alimentado meu papagaio de estimação. Brinquei rapidamente com o “Dirceu” ─ meu velho gato gordo, herança dos antigos moradores da casa ─ e logo liguei o motor da moto. Quando colocava o capacete, disse ao felino: – “se cuide, pois só estarei de volta no início do próximo mês.

Com o motor já aquecido, montei na moto e segui rumo ao sul do Brasil. Meu objetivo era cumprir a primeira etapa da viagem em três dias, onde iria passar pelo portal do Rastro da Serpente e por Morretes, no Paraná. Tinha como uma das metas percorrer a estrada que corta a belíssima Serra da Graciosa, até chegar a Lauro Müller, em Santa Catarina. Daquele ponto, subiria pela Serra do Rio do Rastro até chegar à aconchegante cidade de Urubici. Na segunda etapa estava programado pilotar em território gaúcho, até chegar a Alegrete, terra do saudoso escritor e poeta Mário Quintana. Após um período breve de turismo e descanso, iria seguir de volta para casa margeando toda a orla marítima sul e sudeste brasileira.

O imaginário da cultura motociclística ensina que a solidão do capacete nos permite encontrar as respostas aos problemas da vida. Hoje percebo que, durante essa viagem pelo país, aprendi várias lições, às quais carrego para sempre em meu peito. Aprendi, por exemplo, que os espelhos retrovisores não refletem somente a imagem do que ficou no trajeto percorrido. Eles nos remetem a sempre estar atentos àquilo que deixamos para trás. Seguimos em frente, mas precisamos estar sempre atentos ao que deixamos pelos caminhos. Descobri que, nos meus retrovisores, estão minha família, meus amigos, meu trabalho. E, como me havia aconselhado minha mãe, aprendi que nunca devemos nos esquecer daqueles que deixamos para trás. Aprendi também que não se inicia uma longa viagem sem ter, em meio às bagagens, água e alimentação balanceada; não se faz uma longa viagem sem estar fisicamente preparado e, por fim e não menos importante, nunca se deixa de dar alimento a um gato gordo faminto, sobretudo se houver ao seu alcance um pequeno e “suculento” papagaio.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *