Com toda a reverência e sem querer ao menos chegar aos pés de Gabriel Garcia Marques, faço aqui um plágio do título de sua crônica homônima para relatar o último capítulo da minha aventura. Uma viagem que fora anunciada quatorze meses antes de sua realização. Um sonho que, enfim, virou realidade. E que, dadas as dificuldades por que passei, teve um gosto especial. Ao seu final, algo de diferente há em mim. Eu sei.
Foram 13.430 km percorridos em 25 dias, por 4 países, incluindo o Brasil. Nas minhas anotações, foram consumidos exatos 948,1 litros de gasolina por minha motocicleta, uma V-Strom, 650 cilindradas. A minha pretinha, como a chamo. Moto guerreira que não deu nenhum trabalho, apenas reclamou da falta de um pouco mais de cuidado pelo seu dono, quando afrouxou a corrente e, cansada, me fez parar para dar-lhe mais atenção. Homem e máquina, apesar de prosaico, devem interagir como se fossem velhos conhecidos. Um escutando os alertas do outro, de modo que a harmonia do funcionamento de seus corpos possa estar em perfeita sintonia.
Em novembro de 2012, decidi que faria esta viagem. Como já relatado no capítulo “Como tudo começou”, desde essa época, a viagem já havia sido anunciada em minha mente. Uma certeza inexplicável de que iria realizá-la se abateu sobre mim e comecei a planejá-la. A internet – ah, a internet! – foi a principal ferramenta a ser utilizada. Pesquisei blogs, li relatos e acabei até comprando um livro de um aventureiro motociclista. Definido o roteiro, viajei várias vezes por entre as nuvens do Google Earth para observar cada lugar, cada bifurcação, cada metro das estradas por onde passaria. Viajei tanto nesta ferramenta que, em certos lugares por onde passei na viagem real, lembrava do que já tinha visto.
A viagem teve início em Curitiba. Em Balneário Camboriú, encontrei o meu parceiro de viagem, Fábio Machado, que havia conhecido há pouco mais de um mês pela internet. Estava tão convicto da viagem que a faria sozinho se não o tivesse conhecido. Um grande parceiro. Ao final da viagem, parecia que nos conhecíamos há bastante tempo. Para compatibilizar os nossos roteiros, resolvemos que iríamos entrar na Argentina pelo Uruguai. Assim, mais um país foi incluído no meu roteiro original.
O início da viagem, para mim, foi um pouco apreensivo. Não por medo do que viria, mas porque já começava a sentir o meu joelho incomodar. Já incomodava desde a partida de São Luis para Curitiba, feita de avião. Para não correr riscos, tomei, antes de sair, a prescrição médica recomendada para esses casos: uma injeção de anti-inflamatório. Em Balneário Camboriú, procurei um posto de saúde para tomar a segunda dose.
Nos apresentamos no hotel e, na manhã seguinte, partimos. Apesar da temperatura amena no início, o clima não demorou em esquentar. Um calor insuportável. De vez em quando, abria a jaqueta para pegar um vento e tentava reposicionar o joelho para amenizar o incômodo que começava a aumentar. Comecei a ficar preocupado e temer pelo sucesso da viagem. Mas, enfim, seguir era preciso. Em Pelotas, onde paramos pra dormir, a primeira coisa que fiz foi tomar a terceira dose da injeção. Não tivemos sorte na escolha do hotel. O calor, que já não era fácil, ficou pior porque o hotel não dispunha de ar condicionado. Uma noite mal dormida fez aumentar o desconforto no joelho.
A etapa seguinte seria Colônia del Sacramento, no Uruguai, onde pegaríamos o buquebus para Buenos Aires. Chegamos tarde a Colônia. Senti que a quarta injeção era preciso. A situação não estava fácil e tomei a decisão de desistir da viagem. Não queria atrapalhar a viagem do Fábio. Um sentimento de frustração se abateu sobre mim. Fiquei pensando no tempo que fiquei planejando e anunciando esta viagem, nas pessoas que torceram por mim. O Fábio, por outro lado, incentivava-me para continuar. Pegamos o buquebus e eu havia decidido ficar em Buenos Aires. O Fábio decidiu continuar sozinho. Durante a travessia, entretanto, algo me fez reverter a decisão e resolvi continuar a viagem. Afinal, precisava vencer este desafio. Nas próximas duas paradas, tomei mais duas injeções aplicadas pelo Fábio depois que disse já ter feito isso antes. O joelho ficou bom, o astral retornou e a viagem prosseguiu dentro do planejado.
Fizemos mais algumas paradas, pegamos uns 120 km de rípio – que, para mim, mais parecia asfalto – e finalmente chegamos a Ushuaia, depois de 7 dias e 5.570 km percorridos. O objetivo, enfim, havia sido alcançado. Um sentimento de felicidade já se abatia sobre mim alguns quilômetros antes. Um filme em retrospectiva invadiu a minha mente eufórica. Pensei em quase tudo. No antes, no durante e no depois da viagem. Fiquei imaginando as consequências sobre mim se houvesse desistido. Se fosse proporcionalmente contrário ao sentimento que sobre mim se instalava naquele momento, seria terrível.
Curtimos Ushuaia, curtimos as outras cidades que conhecemos na Argentina e no Chile, curtimos os diversos pontos turísticos e, principalmente, as rodovias em paisagens belíssimas e suas curvas que nos faziam ficar em êxtase. Afinal, o importante em uma viagem de moto não é chegar, mas percorrer o caminho. É fazer parte da paisagem, cujo sentimento é único quando percorrido em cima de uma motocicleta. E o que faz alguém viajar de moto durante 25 dias, percorrendo mais de 13.000 km? O que nos move? Essa é uma resposta que só cabe a cada um de nós. Cada um tem sua “viagem” que pode ser de qualquer forma. Afinal, como diria Robert Pirsig em seu livro Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas: “O verdadeiro veículo que conduzimos é um veículo chamado ‘nós mesmos’.”
Se eu me encontrei? Não sei. Acho que nunca o saberei. Apenas sei que o caminho se tornou mais leve, que as placas de sinalização ficaram um pouco mais claras e que não importa onde elas me levarão. Que apenas me levem de forma branda. Constatei o que já sabia: que felicidade não é um ponto final a ser atingido. Nada mais é que momentos de uma estrada. E esta viagem me deixou, em muitos momentos, feliz. Não há nada mais prazeroso e gratificante do que atingir uma meta estabelecida. Isso é felicidade. Simples assim. Para o autor do livro citado acima, somos divididos na categoria dos Clássicos e Românticos. Os Clássicos são considerados funcionais e mecanicistas, muitas vezes céticos, como eu. Esta versão se aflora um pouco mais em mim, talvez influenciado pela minha formação técnica. Os Românticos, por sua vez, são considerados um pouco mais amantes da superficialidade das coisas, da natureza, do que está à sua volta. Acho que conquistei um pedacinho mais desse lado.
“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
Fernando Pessoa
*Omar Barroso Maia Junior é autor do blog Projeto Ushuaia 2014, onde o relato da viagem citada acima encontra-se publicado.
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