Eu tocava adiante na estrada, vendo somente os raios de sol cortarem o tronco das árvores que se punham em sequência como se fosse uma cortina natural, situada ao longo do meio fio, fazendo um jogo de luzes e sombras que desenhavam formas bastante peculiares no asfalto e que ganhavam um visual bem singular quando visto por detrás de meus óculos escuros, e a tudo isso eu cortava ao mesmo tempo em que sentia a brisa pincelando meu rosto.
Era o final de uma tarde de verão e eu estava viajando de moto com a viseira levantada, em algum lugar do norte de Alagoas, num trecho não muito movimentado, permeado de estradas sinuosas e pequenos morros cobertos por uma vegetação verde e litorânea, no qual o único sinal de movimento além dos meus sobre a moto eram treminhões que levavam carregamentos pesadíssimos para os latifúndios da região, e, talvez, um ou outro mochileiro de bicicleta viajando no sentido contrário. Eu pretendia passar a noite em Maceió; ficaria alguns dias por lá, mas durante a viagem de moto imaginei que, em algum momento, eu tivesse pego o caminho errado, pois estranhara o fato de seguir já há muito tempo naquela estrada enfiada num cenário meio paradisíaco, sem jamais encontrar qualquer vestígio da capital alagoana.
No meu trajeto, eu procurava apenas uma placa que indicasse Maceió a XXX quilômetros, mas não encontrava. As únicas placas que apareciam no correr da estrada diziam em letras grandes CUIDADO COM OS TREMINHÕES.
Em um certo momento, notei que atrás de mim vinha outro motociclista. Bem que pretendi solicitar ajuda, mas ele vinha numa moto superesportiva e passou por mim em tão alta velocidade que num espaço de poucos segundos eu já o perdera completamente de vista, a ponto de duvidar de mim mesmo se alguém havia passado por mim naquele instante.
Enquanto o sol descia ainda mais, eu encontrei um garoto encostado ao pé da rodovia, mexendo numa bicicleta. Parei ao seu lado e lhe perguntei para que lado ficava Maceió, se eu estava seguindo no sentido correto.
– Maceió? – ele perguntou. Tinha uns 12 anos, mas provavelmente não fazia a menor noção de para que lado ficava Maceió.
Eu segui adiante, ainda na esperança de encontrar placas que indicassem a distância ou o sentido para o qual eu devia seguir para achar Maceió, mas todas as placas que apareciam se atinham a me avisar CUIDADO COM OS TREMINHÕES.
Como eu andasse já há tanto tempo e naquela estrada deserta não houvesse posto de gasolina, esperei chegar a primeira cidadezinha e decidi que dormiria nela, para pegar a estrada e continuar a viagem na manhã seguinte. A cidadezinha de fato apareceu, com feitio aconchegante. Ao lado de um barzinho que ficava às margens da rodovia tinha um motel, pensei em dormir ali. Antes de ir ao motel, entretanto, fui ao bar, queria beber alguma coisa. Entrei, sentei no balcão, e fiquei conversando com o atendente. Era o próprio dono do bar, que inclusive, no decorrer da conversa ofereceu gasolina que ele tinha estocado para que eu pudesse prosseguir.
– Você é matador? – perguntou-me um bêbado barbudo da mesa em que estava sentado, interrompendo minha conversa com o dono do recinto. Eu não ouvira a pergunta, ou não me houvera dado conta de que havia sido feita para mim. Somente quando ele repetiu – você é matador? – eu virei o rosto e notei que era mesmo comigo.
– Por que a pergunta? – questionei.
– Por causa dessas roupas aí – ele disse.
Eu usava uma calça jeans meio surrada, e um colete de motoclube, além de um bracelete punk. Usava também uma bandana, mas havia tirado logo que tirei também o capacete. Provavelmente corria para ele a lenda de que motociclistas nesse estilo eram assassinos e saqueadores. Mas eu estava sozinho, por isso ele e os demais se sentiam seguros.
– Não – eu lhes disse. – Não sou matador – sou escritor.
– Escritor? O que faz um escritor? – perguntou outro cara que não cheguei a ver, apenas ouvi.
– Acho mais fácil você ser matador do que escritor – sentenciou o barbudo.
– Que seja – eu falei. – Mas eu sou escritor.
– Eu também acho mais fácil ser matador – disse uma voz feminina que se aproximou de mim, pelo outro lado, sem que eu notasse sua chegada. Apenas balancei a cabeça para ela. Era uma morena de pele clara e cabelos negros, mas com umas mechas loiras, bem baixinha, com roupas que denunciavam o que ela fazia; era nitidamente uma mulher muito usada pelos caras da região.
– Mora aqui nessa cidadezinha? – perguntei.
– Durmo no motel – ela disse.
– Dorme no motel?
– Durmo, mas não apenas durmo.
Ah, sim, eu falei. E comecei a pensar na ideia de gastar uns trocados com aquela miudinha. Mas quando dei-lhe uma vista geral, notei algo que não havia visto na primeira vez, que eram as suas pernas expostas; eram até bem grossas e ficavam realçadas pelo shortinho que mais parecia de pijama, mas que, pelo que se via, há muito tempo não haviam sido depiladas. Quando eu olhava melhor, ela bem poderia ser confundida com pernas de homem. Aquilo não me animou muito. Ela continuou dando mole e pedindo algumas bebidas que prontamente paguei, mas achei melhor não ficar naquela cidade, sob risco de passar a noite sendo perseguido por essa baixinha peluda.
Saí do bar, ouvindo pela metade os comentários da mulher e do bêbado barbudo e fui em direção à minha moto, que estava rodeada por umas três ou quatro crianças que nunca haviam visto motos no estilo custom; provavelmente achavam que era uma moto de brinquedo.
– 1 real se alguém me disser quanto tempo falta pra Maceió nessa direção – ofereci.
– Maceió?? Maceió fica praquele lado! – disse um dos moleques, apontando no sentido contrário.
Só então me dei conta de que estava o tempo todo viajando no sentido contrário. Que grande merda, pensei.
– Demoro muito para chegar lá? É longe? – ainda perguntei.
– É quase longe, disse um deles. – Acho que entendi.
Tomei rumo de volta, e a essa altura o sol já havia se posto por trás dos morros verdes, e diante de mim só restava a estrada sinuosa que eu acompanhava com o farol alto da moto, recebendo como comunicado somente as mesmas placas de CUIDADO COM OS TREMINHÕES. Eu já estava cansado de ver tais placas, sobretudo porque ainda não havia visto nenhum treminhão por ali. Reclamava, de dentro de meu capacete, de todas as instâncias governamentais que não colocavam uma mísera placa apontando para que lado ficava Maceió.
Depois de duas horas de viagem em pleno breu, encontrei uma encruzilhada de três direções que passara batida na minha viagem, mais cedo. Decidi tomar o rumo que houvera ignorado. Nesse rumo, somavam-se mais curvas, mais montanhas, e mais placas de CUIDADO COM OS TREMINHÕES. Segui em frente, confiante de que chegaria a Maceió antes da madrugada. De repente, no meio daquele breu infinito, eu vi luzes acumuladas algumas centenas de metros à frente, na estrada. Diminuí a velocidade, vi que havia bastante movimento. Eram luzes de carros. Estavam estacionados vendo um estrago na rodovia. Era um ciclista que, ignorando os anúncios para tomar cuidado com os treminhões, havia passado rápido demais numa área de risco. Foi atropelado pelo treminhão, tendo sua bicicleta estraçalhada e seu corpo dilacerado e espalhado na estrada. Eu, um matador de araque, fiquei meio desconfortável quando vi braços aqui e pernas ali. E fiquei apreensivo também com aquele treminhão, cuja imponência justificava as tantas placas que alertavam para o risco de me encontrar com um deles.
Mas a viagem não duraria muito tempo depois dali. Bastou mais vinte e cinco minutos adiante para que eu chegasse a Maceió.
Leon K. Nunes
Texto gentilmente cedido pelo auto do blog Literatura Vil
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