Prudhoe Bay/Deadhorse – No topo das Américas

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Acordei um pouco nervoso para o dia mais importante, desde que tudo isso começou. Era bem cedo ainda daquele sábado quando reuni as coisas sobre a moto e parti. Mas rodei só poucos metros, até o posto de gasolina quase em frente ao Ranch Motel.
A ocasião merecia um pouco de cerimônia, pelo menos para um copo de café. A cidade estava vazia, por ser ainda muito cedo, e o dia tinha “amanhecido”, se se podia dizer assim, simplesmente GLORIOSO. Tempo estável e muito sol. Na roupa de cordura já sentia um pouco de calor. Sobre mim pairavam os olhares curiosos dos funcionários da conveniência, e, na saída, enquanto checava a moto e terminava de comer um chocolate, de um cara numa moto que estava por ali provavelmente zarpando para um passeio local. Mas não me perguntou nada. Já devia ter visto outros assim como eu por ali e provavelmente deduzia minha proa para aquele dia.

“O que é bom, [Wagner],
e o que não é bom –
será preciso pedir a alguém que nos ensine isso?”
(Robert M. Pirsig)

Nada mais havendo em termos de preparativos, segui lentamente pela Cushman Street ao norte, como se fosse novamente para o centro de Fairbanks, isto até o cruzamento com a Airport Way, tomando a direita.

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Com a moto em movimento, a brisa era reconfortante. Eu precisava tomar a Rota nº 2 ao norte, que de certa maneira era uma continuação da rodovia em que eu tinha estado todos aqueles dias, ou seja, a Alaska Hwy, mas não se chamava mais Alaska Hwy. Oficialmente a Alaska Highway começa em Dawson Creek e termina em Delta Junction. Naquela altura em que eu estava, chamava-se Richardson Highway, mas depois do próximo grande cruzamento na Airport Way, onde peguei pra esquerda – sempre rumo ao norte –, passa a se chamar Steese Highway.

A nomenclatura não importava tanto, porque o que eu tinha que fazer era simplesmente ir para a DALTON HIGHWAY, este sim um nome conhecido, a AK 11, que me levaria até o fim dessa grande jornada, e era também tão só uma continuação das anteriores, no mesmo rumo. Antes de se chamar James W. Dalton Hwy (seu nome completo), porém, ela ainda teria o nome de Elliott Highway, porque a Steese, propriamente, a certo ponto deriva a noroeste, para um lugar no rio Yukon.

Examinando minha brochura de impressões do Google Maps, que era a minha principal referência de orientação em toda a viagem, essas coisas me confundiam um pouco, e eu ia lentamente com a V-Strom, porque um erro poderia ser um problema bem grande, já que não há postos de gasolina no caminho e tudo estava milimetricamente calculado para dar exato, já contando com o galão extra de 10 litros. No GPS eu não confiava inteiramente. Nessa rota, a 30 km de Fairbanks, tem um posto de gasolina na margem esquerda da estrada, o Hilltop, com uma aparência que inspira confiança. Pensei em abastecer novamente. Talvez já coubessem uns 2 litros no tanque, o que pode ser muita coisa quando se está sem nada. Parei na bomba e, como sempre, precisava pagar antes para liberarem o abastecimento. Fiquei um bom tempo no balcão aguardando, e nada de ser atendido. Todos no balcão estavam interessados em suas próprias conversas, e o freguês não valia muito por ali. Resolvi dar um tempo, pois tinha visto uns telefones públicos na entrada do estabelecimento. Não mandava notícias desde Tok e Fairbanks. Mas quê! Não funcionou. Contrariado, desisti do telefonema e daquelas mocinhas que me ignoraram, tocando em frente sem a gasolina. Tomara que não me arrependesse.

Meses antes eu tinha lido o relato do Artur Albuquerque, Alaska Expedition, no site viagemdemoto.com, e ele nos conta que deixou para abastecer em Livengood, a mais de 100km de Fairbanks, mas não encontrou a cidade e teve de tomar a difícil decisão de retornar esses 100km até um posto na localidade de Fox, que fica 13km ao norte de Fairbanks. Dureza isso! Na verdade, a entrada para Livengood fica na Elliott Hwy a 126km de Fairbanks, e o lugarejo está a 3km da rodovia principal. Nem sei se tem posto de abastecimento lá. Em todo caso, são lugares muito pequenos mesmo, e é muito fácil passar batido por eles.

Eu tinha 410km para fazer até Coldfoot, minha única referência importante até Deadhorse. A autonomia da V-Strom é de 330km, mais ou menos, e eu ainda levava mais 10 litros no galão, o que me proporcionaria talvez mais 150km extras, resultando 480km no total. Tudo em teoria.

De volta à estrada, uma via de terra numa confluência à direita, parecendo uma rua, levava o nome de By Your Own Risk Road, ou Lane, não me lembro bem, ou seja, a via se chamava “Por Seu Próprio Risco”. Achei graça e pensei que isso dava bem o tom da jornada deste dia.

A primeira parte da viagem é por caminho muito bom, asfaltado, cercado de florestas de pinheiros. Logo de início se percebe a companhia de uma estranha tubulação, elevada em relação ao solo, enorme, prateada, num contínuo zig-zag pela paisagem, que vai seguindo sempre ao lado da estrada, ou nós é que a vamos seguindo. É um oleoduto. Trata-se do Trans-Alaska Pipeline.

Em 1968 se descobriu petróleo na Baía de Prudhoe e, com a crise do petróleo nos anos 70 elevando o preço do barril, os Estados Unidos resolveram explorar pra valer aquela descoberta, apesar de todos os questionamentos ambientais que houve, e também sobre o direito dos povos nativos. Para o transporte do óleo, tornou-se necessário o dito pipeline, que é hoje um dos maiores do mundo, com 1.287km de extensão. Tem 1,22m de diâmetro. Vai de Prudhoe Bay a Valdez, lá no sul do Alaska, a partir de onde o petróleo pode ser levado por mar a qualquer parte.

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A Dalton Highway foi construída justamente para dar suporte à construção do oleoduto, e isto se deu entre os anos de 1974 e 1977. O marco zero da rodovia, oficialmente, se dá quando termina a Elliott Hwy, depois de Livengood. Olhando sob esse aspecto histórico, é interessante notar que, se não fosse pelo petróleo em Prudhoe Bay, talvez nunca tivesse havido uma estrada permitindo percorrer de moto até o extremo norte das Américas. Foi o acaso, portanto, prenunciado há milhares de anos pelo Povo Inupiat – que já usava a turfa encharcada de óleo para proporcionar aquecimento e iluminação –, que permitiu esses 667 km de chão de estrada até o quase insondável fim do continente, no Mar de Beaufort. As cidades no caminho são Coldfoot, Wiseman e Deadhorse. Tô até aliviando com Wiseman, pois não dá pra chamar propriamente de cidade. A Dalton Hwy alterna trechos asfaltados e de terra, os famosos “loose gravel”. As “constructions” também são uma constante, ou seja, trechos em obras de recuperação, avariados pelo gelo do último inverno. Nesse dia eu passaria por quatro “constructions”.

A primeira terrinha que peguei estava um “mamão com açúcar”. O tempo era firme e a terra não tinha cascalhos soltos e era bem compactada. Era como se fosse asfalto, e segui em velocidade normal, curtindo a paisagem que, apesar de ser a de um lugar remoto, não trazia grandes novidades, a não ser o próprio oleoduto mesmo. Parecia até que eu estava no Brasil, em alguma estrada de terra entre reflorestamentos de eucalipto. Não demorou e fui parado pela primeira “construction”. Cristo! Os mosquitos me pegaram de jeito. Quase que nem consigo abrir o top case para pegar o repelente. Tive que passá-lo às pressas, principalmente no rosto, e resolvi deixar o repelente sempre bem à mão, no bolso da jaqueta. Aqueles bichos vorazes acho que são capazes de sugar todo o sangue de uma pessoa ou de um animal. Mesmo com o repelente não vão embora. Ficam voando a dois centímetros da nossa pele, mas aí é suportável e me acostumei. Logo chegou a caminhonete do “Pilot Car” e com ela seguimos por um tempo.

Agora estava mais calmo, sabendo que, ao contrário dos mosquitos, a estrada não mordia. Na verdade, estava tendo grande prazer em pilotar entre aquelas variações de terreno. Asfalto, cascalho, terra. Se fosse há um tempo atrás, isso me assustaria e muito. Infelizmente não sou um piloto off-road, mas meu curto estágio em trilhas com a CRF-230 no ano anterior me ajudou bastante.

A primeira vez que deparei pra valer com uma situação off-road foi logo no deserto de Uyuni, na Bolívia, no final de 2008. Eu estava fazendo um tour bastante civilizado de Sorocaba ao sul do Brasil, no Chuí, depois pelo Uruguai passando por Montevidéo e Colonia del Sacramento, cruzando pela Argentina até o Chile, e subi via La Serena ao norte, até San Pedro de Atacama. Lá encontrei meu amigo Alysson, que tinha ido com seu Toyota Bandeirante. A minha idéia original era fazer um passeio até Uyuni através das agências de viagem em San Pedro, que levam os turistas com todo conforto em carros 4×4. O Alysson me convenceu a ir de moto. Para que servem os amigos, não?! Ele no Bandeirante e eu na V-Strom. Fizemos os trâmites de saída do Chile e ingressamos na Bolívia, onde a estrada de terra para Uyuni nos aguardava já a partir do serviço de imigração, ou até mesmo um pouco antes dele, ao deixar a Ruta maravilhosamente asfaltada que conduzia ao Paso Jama, fronteira com a Argentina, mais a leste. Pois bem, na primeira pedra redonda que pegou na roda da frente, com o tamanho da minha mão, me caguei todo e senti que aquilo não ia dar certo. Isso foi a alguns metros antes do escritório da imigração boliviana. Fizemos os trâmites assim mesmo, mas eu estava naquela falta total de confiança. Resultado: avancei 500 metros em território boliviano, por uma “estrada” que era só terra fofa disposta em cavas fundas dos pneus que por ali já tinham passado, e o guidão da V-Strom tremia mais do que eu, numa instabilidade que não podia suportar, quanto mais pelos 400km que teria pela frente. Voltei os 500 metros humilhado e arrasado, dei a saída da Bolívia, cuja entrada tinha acabado de carimbar, voltei a San Pedro, onde guardei a V-Strom, e regressei a pé à fronteira para ir de carona no Toyota Bandeirante. Aí sim seguimos viagem por aquele incrível lugar. As Lagunas Verde, Colorada, o gigantesco salar … tudo belíssimo. Ainda quero a revanche desse episódio … Naquele dia, a caminho de um pouso na Laguna Colorada, fomos conversando sobre o off-road e a moto. Foi quando tomei contato pela primeira vez, através do Alysson, que já tinha experiência nisso, com os conceitos básicos, como pilotar em pé, acelerar quando nossa intuição manda reduzir, usar o freio traseiro, e a respeito de quais são as qualidades que uma moto deve ter para se dar bem na terra, como suspensão invertida, suspensão de curso mais longo, roda de 21 polegadas na frente, rodas raiadas etc. etc.. Na época, pra começo de conversa, eu achava impossível pilotar em pé. Como ia usar os manetes de embreagem e freio, a alavanca do câmbio… ? No mais, a V-Strom não reunia muitas qualidades off-road. Mesmo assim, agora, uns anos depois, tudo isso que tínhamos conversado me ajudava e eu me sentia muito seguro em pé na V-Strom, tendo-a bem firme e estável entre os meus joelhos. Não pilotava com a força dos braços, mas com as pernas, e tudo ia muito bem. Se o guidão trepidava, isso não importava muito. É claro que toda essa questão tem variações em graus, podendo chegar a dificuldades inimagináveis, para pilotos extremamente habilidosos. No caso da Dalton Hwy, muito aquém disso, não é que exija habilidades estritamente off-road. Definitivamente não, como também não as exigem o rípio da Ruta 3 de Rio Gallegos a Ushuaia, na Argentina. Mas ter algum conhecimento técnico sobre isso torna mais fácil e menos estressante a travessia.

Assim venci alguns trechos de cascalho, até chegar à Ponte sobre o Rio Yukon. Lindo rio. Já falei dele antes. O danado vai desaguar lá no Mar de Bering, no Oceano Pacífico, muito longe a oeste. Depois da ponte, à esquerda, tem um acampamento, um ponto de apoio. Eu ainda estava bem de gasolina, e não fui verificar, mas acredito que ali tenha gasolina para vender, pois me lembro de ter visto placa ali ou perto dali. Mas nunca vi relatos de motociclistas sobre haver gasolina por lá. O Wikipedia traz a informação de que ali tem gasolina sim, referindo-se particularmente a esse ponto da Dalton Highway. Também depois da ponte, à direita, tem um pequeno escritório do Departamento Americano do Interior (Bureau of Land Management). Eu parei um pouco antes dele, sob o oleoduto, para tirar uma foto. Veio uma caminhonete oficial na minha direção, e pensei que me reprovariam por ficar ali debaixo do oleoduto. Mas não. O motorista queria saber se eu precisava de ajuda para a foto, e gentilmente se ofereceu para tirá-la. Legal! Gente boa esse cara.

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Faltavam ainda 190km para Coldfoot. Aproveitei, uns quilômetros depois do Yukon River, para completar o tanque com a gasolina do galão. A vegetação foi ficando mais rala, menos árvores e a estrada estava praticamente vazia. Essas bandas não são um lugar propriamente turístico. Sempre há um ou outro louco indo para lá, ou voltando, mas isso não é coisa tão comum, ou melhor, não é um movimento de massa. A grande parte da circulação na rodovia é por caminhões, provavelmente fazendo serviço para as companhias de petróleo. Outros veículos, principalmente caminhonetes, têm a ver com a própria manutenção da estrada. Acredito que, no verão, não seja uma rodovia tão perigosa. Mas, se acontecer um acidente, só é possível ter alguma assistência em Coldfoot, onde especialmente há um aeroporto, ou em Deadhorse mesmo. A Wikipedia diz, sem citar fontes, que uma em cada cinqüenta motos se acidentam na Dalton Hwy, e que a estrada é altamente desaconselhável para veículos de passeio. O History Channel fez até um programa, CAMINHONEIROS DO GELO, descrevendo os perigos dessa estrada no inverno. A revista Exame, por Lilian Sobral, a classificou como uma das mais perigosas do mundo, e a BBC de Londres fez um outro programa chamado “As Estradas Mais Perigosas do Mundo” (World’s Most Dangerous Roads), em que a Dalton Hwy aparece no primeiro episódio, apresentado por Charley Boorman, de quem, aliás, sou muito fã já dos filmes Long Way Round, Long Way Down e Race to Dakar. Eu não estava vendo nada de tão perigoso naquela rodovia. Andar de moto é perigoso. Viver é perigoso. Mas naquele momento já estava um pouco mais descontraído. Toda essa mística criada em torno da rodovia acaba nos deixando mais ansiosos do que deveríamos. Por isso é tão bom ir conferir pessoalmente, para tirar as próprias conclusões. Além disso, o comparativo que não nos sai da cabeça é com as estradas brasileiras. Aqui sim temos estradas perigosas. Isso é fato. Na Dalton Hwy, daquele verão, vigoravam a paz, a natureza, o céu claro, e também o cascalho solto e os caribus e ursos que poderiam aparecer pelo caminho. Mas era só isso.

A meio caminho entre o Rio Yukon e Coldfoot passa a linha imaginária do Círculo Polar Ártico. Eu cheguei lá. Latitude 66º 33′ Norte. Há uma placa alusiva a esse importante marco geográfico, e fiz umas fotos enquanto brigava com os mosquitos. Não havia ninguém lá com quem pudesse comentar a grandiosidade do momento, e meu impulso foi o de seguir viagem. Agora seria, como no livro do Clodoaldo Turbay Braga, ALÉM DO CÍRCULO POLAR ÁRTICO. Cadê minha medalha?!

Mais um pouco a frente, quase no alto de uma colina, tem uma instalação no meio do nada, que é a chamada Prospect Creek. O lugar não é habitado, mas ali funciona uma bomba do oleoduto, a Pump Station 5, e também tem um aeroporto. Portanto, em caso de emergência, penso que seria um possível lugar para buscar ajuda.

À medida que o relevo vai ficando mais montanhoso, estou chegando a Coldfoot. Eu não contei os moradores, mas dizem (censo de 2010) que a população é de 10 habitantes. Será que tem congestionamento por lá? Na verdade, a cidade é uma parada para caminhoneiros. Mas já existia lá pelos idos de 1900 como um acampamento para mineradores. É uma bênção poder contar com essa minúscula cidade pelo caminho, ainda mais quem está em viagem moto, porque é o único posto de abastecimento pelos próximos 400km até Deadhorse. A gente entra à direita da Dalton Hwy, por uma ruazinha de terra, e logo encontra a “cidade”, um terrenão largo com duas bombas de gasolina à esquerda, um restaurante e o Correio atrás dessas bombas, e, do outro lado, o Slate Creek Inn. Pra quem quiser dormir nessa cidade, uma boa alternativa é acampar. Bem, não para mim, que não nasci com esse dom. Mas é que o hotel lá, segundo pesquisei, tem poucos lugares e não me pareceu nem um pouco convidativo.

Assim que cheguei fui atender à prioridade maior, que era abastecer. As bombas ficavam no terreirão, todo cheio de poças d’água, sinal que tinha chovido bastante. O sistema da bomba é pré-pago. Então entrei no restaurante, que administra as bombas, e expliquei que precisava do tanque bem cheio. O senhor que me atendeu, que acredito fosse o proprietário, me pediu para deixar com ele o cartão de crédito, que assim ele liberava a bomba para qualquer valor que eu quisesse. Enchi bem cheio o tanque e estacionei a moto bem em frente à escada de acesso ao restaurante, pois pretendia fazer um lanche. Percebi que o protetor de corrente estava querendo soltar outra vez. O parafuso da Northen Power que eu tinha colocado em Fairbanks não prendeu bem a peça, porque o problema estava na verdade na própria peça. Tinha espanado a rosca, ou coisa assim. Então amarrei tudo “delicadamente” com fita adesiva do tipo silvertape, e, perdido todo esse tempo, entrei para acertar a conta. O senhor do caixa me entregou de volta o cartão com uma notinha, um “receipt”. Opa, mas este não é o meu cartão!, eu disse. Era muito parecido com o meu, mas definitivamente não era o meu. Dei o alarme ao caixa e ficamos todos em pânico. Busca o verdadeiro proprietário daqui e dali, e nada do rapaz. Foi embora!, disse o caixa. Ah, meu Deus, que coisa mais inusitada para acontecer neste fim de mundo. De repente, depois de uns minutos de pura angústia, que me pareceram uma eternidade, eis que volta o senhor do caixa acompanhado do dono do cartão. Ele ainda estava no banheiro. Acho que tava quietinho cagando, porque antes já tinham dado uma busca nele por lá. Ufa, que sorte! No final, o caixa tinha pago com o meu cartão a conta do outro cara, que tinha uma caminhonete grande, e “devolveu” o meu cartão pra ele. E o cartão dele pagou a minha mísera conta de tanque de moto, e estava agora comigo. Era preciso destrocar os cartões e fazer as devidas compensações nas contas. O dono nem titubeou. Perguntou se eu me importava de receber a diferença em dinheiro, e eu aceitei, claro. Tudo resolvido, mas até perdi a fome. Tomei um energético, comi um chocolate, e só.

Na minha ida ao banheiro, vi que tinha uns pay phone no estabelecimento. Puxa, não custa nada tentar, pensei. Tenta uma, duas, três, quatro vezes, e consigo completar a ligação. Minha esposa atendeu do outro lado. Nossa, inacreditável. Tinha conseguido contato de onde menos podia imaginar, em Coldfoot, in the middle of nowhere, como eles dizem. Oi Flá! Como cê tá?! E as meninas? Que saudades?! Aqui tudo bem, digo. Estou indo pro fim do mundo, já passei por Tok e Fairbanks … Aquela coisa toda. Ficamos todos muito felizes. Que ânimo aquilo me deu. Agora podia ir até a Lua. Eu estava energizado. Nunca que ia ficar em Coldfoot. O dia seria longo, ainda era cedo, e eu ia até Deadhorse de qualquer jeito.

Só que agora o tempo tinha mudado. Estava nublado e carregado. As montanhas depois de Coldfoot se mostravam magníficas à distância. Era ótimo variar de cenário. O asfalto é bom na saída da cidadezinha, mas logo depois vem a terra. Antes, porém, tem a vilazinha de Wiseman, a 18km de Coldfoot. É uma alternativa para pouso, mas eu nem vi a entrada. Segui firme acelerando, pilotando em pé a maior parte do tempo. Estava com o moral elevado e, ao passar por dois motociclistas com BMW GS 1200, que vinham em sentido contrário, acenei em pé para eles, com a mão esquerda, e eles me corresponderam de um jeito mixuruca. Vinham devagar, sentados, acho que estavam um pouco abatidos. E eu crente que estava abafando. É isso, garoto! Barriga pra dentro, peito pra fora, queixo erguido!! Seja como for, com o piso de terra não demorou para vir a chuva também. Pela primeira vez me senti obrigado a reduzir a velocidade, ficando em certa medida refém dos caminhões. Tive um pouco de medo de derrapar, principalmente quando era espremido para o canto mais sujo e lamacento da estrada.

Esta segunda e última perna da jornada para Prudhoe Bay tem ares bem diferentes, tudo por causa da Brooks Range, a última cadeia de montanhas a vencer antes de chegar ao fim do continente, e também por causa da crescente latitude, é claro. Sem falar que os trechos de terra são muito mais freqüentes e extensos. Aliás, é quase só terra.

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Era a estação das chuvas, e eu tinha dado sorte com o tempo seco por toda a primeira perna da viagem. Só que o relevo montanhoso deve ter seus humores mais sensíveis. Mesmo assim, logo a chuva parou, e foi dando lugar ao frio. Até Coldfoot não subi muito em altitude. Fairbanks está a 136m de altitude, e Coldfoot a 309m. Mas, para chegar ao litoral Ártico – Deadhorse está a 15m de altitude –, era preciso superar essas montanhas, que nada mais são que a última porção das Montanhas Rochosas. E o ponto mais elevado nessa rota leva o nome de Atigun Pass, com 1.444m. Portanto, o tempo ia esfriar bastante, ainda mais se considerasse que o objetivo do dia se situa a mais de 70º Norte de latitude.

Não demorou para estarmos eu e V-Strom rodando entre montanhas com picos gelados. Comecei a sentir frio, mas ainda ia parando bastante para fotografar. Isso toma tempo, é verdade, mas era mais forte do que eu. A estrada de terra e cascalho, as montanhas, o gelo, a vegetação baixa que agora ocupava o lugar das coníferas, os largos descampados, sempre a companhia do estranho oleoduto, e a moto, ah, a moto, como ficava linda naquele cenário.

O Atigun Pass é uma beleza. Demorei um tempo ali admirando. O chão estava bem molhado. Fui seguindo com mais cautela, até começar a pegar bastante chuva. Não era torrencial, mas forçava a reduzir a velocidade e ia sujando tudo, inclusive a viseira do capacete.

Descido da Brooks Range, a paisagem foi ficando cada vez mais ampla. Fui gradualmente avançando entre trechos secos e molhados, costelas, cascalho, lama, e “constructions”. Numa delas, com sede, pedi água para a mulher da caminhonete oficial que orientava o tráfego, e ficamos conversando. Ela perguntou para onde eu ia, e ficou admirada da resposta. É que começava a ficar um pouco tarde, realmente, embora houvesse bastante luz. Disse que certamente eu encontraria ursos no caminho, e era bom ter muito cuidado com eles. Isso me deixou apreensivo, especialmente porque eu nada tinha perguntado a ela a esse respeito, e tanto mais porque estava demorando muito para me liberar. Só tinha eu naquela “fila”. Fiz de presente a ela, em agradecimento pela água, uma bandeirinha do Brasil. Não tinha fome, mas precisava comer e aproveitei para por umas calorias para dentro. Quando finalmente o tráfego, ou seja, eu, fui liberado, saí com grande determinação. Mas já era uma determinação mais espiritual. Estava principiando um cansaço, e sentia decair minha capacidade física e de pilotagem.

Lá pelas tantas, peguei um bom trecho de asfalto. Era perfeito para prosseguir a viagem e dava boas esperanças. Então afinal não era tão difícil assim chegar a Prudhoe Bay (pensei)… mas … durou muito pouco esse asfalto. Dali para frente, sempre em paralelo ao Sag River e ao Pipeline, no meio de uma vasta paisagem de estrada de terra e TUNDRA verde a perder de vista por todos os lados até o horizonte, a dificuldade só foi aumentando. Com minhas forças declinando rapidamente, forcei-me a parar para abastecimento. Isso dava trabalho, e não estava com a mínima vontade de parar. No meio daquela SOLIDÃO, fui atraído por um caminhão parado à beira da estrada, e aproveitei para cumprir esse ritual ali próximo a ele. É incrível como, nessas situações, qualquer sinal da presença humana me atrai. Se não tivesse um caminhão, mas houvesse uma placa, era ali que eu ia abastecer. Se não tivesse placa, mas tivesse um lixo qualquer jogado na estrada, produto da nossa vida em sociedade, eu escolheria esse lugar. Qualquer traço da presença humana me dava um pouquinho mais de confiança. Tomei cuidado para não derrubar muita gasolina para fora, como sempre acontece, comi mais uma coisinha, tirei uma água do joelho, e segui para Deadhorse. Não haveria mais paradas, e faltavam uns cem quilômetros ainda. Oh, My Gosh! 100km de COSTELAS! Isso estava sendo bem desgastante. E realmente esse final foi dramático. Choveu, a estrada piorou mais ainda. Não transitava ninguém. Acho que só um caminhão passou por mim durante esse último trecho. E me ultrapassou tranquilamente, porque minha velocidade vinha reduzindo pouco a pouco na medida em que minhas forças também iam acabando. Estava já há mais de 11 horas na estrada, por aí. Sentia muito frio, minhas mãos congelando, não podia mais pilotar em pé, apesar de a estrada me pedir isso, pois era costela, cascalho ou cascalho fofo, ou lama. Cada trecho tinha uma característica diferente, e nenhum era cômodo. Quando eu tentava ficar em pé, para quem sabe poder ir mais rápido nas costelas, minha viseira se enchia de uma laminha fina, e, se eu levantasse a viseira, tomava um vento congelante na cara. Aí me resignava em ficar sentado. A velocidade máxima se reduziu a 40km/h. Mais que isso eu não podia. Minha galhardia, meu ar de dignidade de 350km atrás, tinham se evaporado completamente.

Desse jeito, no passo a passo e na pura persistência, por absoluta falta de opção, fui me arrastando até a linha de chegada. Já quase lá, avistei umas renas pastando na tundra. Uma cena totalmente inédita na minha vida. Isso me deu a força que estava faltando, e até parei para tirar foto, mas sem conseguir descer da moto. Se descesse, provavelmente não subiria mais. Não tinha visto nenhum animal ainda nesse dia, e a visão das renas me encheu de alegria. Só um pouquinho mais a frente, avistei o que parecia ser o meu destino, embora não se assemelhasse muito a uma cidade. Pela quilometragem no odômetro, eu tinha chegado. Mas o que eu via não me animava muito. Seria ali mesmo? E se não fosse? Eu não agüentava mais nada. Eram já 13 horas sobre a motocicleta, sem praticamente comer. Enxerguei o aeroporto, fui rodando devagarzinho, tentando identificar algo como uma cidade. Só via instalações pesadas, como de uma indústria, grandes estruturas. Se aquilo era uma cidade, era bem esquisita. Achava que nem teria forças para encontrar um hotel, mas fui seguindo. Coragem homem, você já fez coisa pior. Fiz? Pelo menos não chovia. Lá bem ao Norte os índices pluviométricos são bem menores. Em volta do Colleen Lake, o lago em torno do qual está Deadhorse, tinha um bando de loucos correndo de shorts e camiseta. Era o Fun Run. Devia ser para divertir um pouco os funcionários das companhias de petróleo. Isso dava um astral legal e fui contagiado. Então aquele lugar pareceu um pouco mais simpático. Intuitivamente virei à esquerda no Lago. Encontrei o Arctic Caribou Inn, aquele famoso hotel de contêiner azul, que já serviu de pano de fundo para tantas fotos de aventureiros motociclistas. Infelizmente descobri que estava fechado. Já era. Ainda bem que um pouco mais à frente, à esquerda na Deadhorse Dr., tinha o PRUDHOE BAY HOTEL. Parei a moto imunda bem em frente e, com o maior aperto no coração, por medo de não ter vaga, fui até a recepção. Ficava lá dentro no corredor principal, e muita gente circulava por ali, voltando do trabalho, ou do banho para ir jantar. Alguém me pediu para usar um paninho tipo galocha nos pés, que fica disponível na porta de entrada e é descartável, para não sujar o interior do hotel. Caraca, mais esse trabalho só pra perguntar se tem vaga! Olá moça, tem vaga? SIM SENHOR, TEMOS. PREFERE O QUARTO COM BANHEIRO PRIVATIVO OU NÃO? PRIVATIVO, SIM, CLARO, falei mais que prontamente. SÃO 150 DÓLARES!, ela disse. NÃO TEM PROBLEMA, É MEU! Só não disse a ela que pagaria o dobro ou o triplo, ou o quanto fosse, penhoraria minha moto, hipotecaria minha casa se necessário! Depois perguntei: Senhora, onde estou? O que você quer dizer, disse ela? Quero saber se aqui é Deadhorse. Ela disse: sim, é Deadhorse. Então onde fica Prudhoe Bay? É aqui também, disse ela. Prudhoe Bay e Deadhorse são a mesma coisa?, indaguei. Ela explicou algo em inglês que não entendi bem, mas compreendi o seguinte: EU TINHA CHEGADO!!!! Cheguei, caralho!!! Cheguei na porra do fim do continente!!!!

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Depois de mais de 13 horas, estava com a missão cumprida e, melhor, o hotel era de pensão completa. A qualquer hora do dia você podia ir ao refeitório, que fica bem em frente à recepção, e comer umas coisinhas, ou se esbaldar de comer no maravilhoso buffet servido no café, almoço e janta. E um banheiro com banho quentinho só pra mim, num quarto bem aconchegante. Ah, eu não merecia tanto. Ainda tive tempo de pegar o jantar daquela “noite”. A comida era a melhor até agora em toda a viagem. Era comida de verdade, inclusive frutas e verduras frescas, nada de coisas do tipo “fast-food”, nem apimentadas, e nada daquele monte de frituras.

Com um sentimento íntimo de vitória, sob o prazer da conquista, tinha garantido meus 800km do dia. A viagem desde Sorocaba já era de 25.600km, e eu estava 24.000km longe de casa. Só havia o senão de ter ficado sem minhas cervejas desta vez, pois não vendiam essas coisas, e não agüentei fazer mais nada que não fosse desabar na cama.

Por um breve instante, recordei que tudo tinha começado numa madrugada de julho de 2012, quando silenciosamente saí da garagem de casa com a moto, motor desligado para não acordar ninguém, tendo como prosaico destino a cidade de Campo Grande/MS, veja só. Não dava, então, pra ter a mínima segurança de que chegaria ali, no Topo. Passei por Cáceres, Ariquemes, Rio Branco, Puerto Maldonado no Peru, Cuzco, Nazca, Lima, Piura, Cuenca no Equador, Quito, Popayán na Colômbia, e por aí afora, por Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala, México, Estados Unidos, até Toronto, etc. etc.. Lugares de uma relação insuspeita entre si, que agora eram pontos ligados, formando um sentido e compondo minha própria história.

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