As enchentes que arrasaram várias cidades do meu Rio de Janeiro e o tsunami no Japão, trouxeram-me à lembrança passagem de uma das minhas aventuras realizada em 1960 e que está descrita no meu original “Motociclistas Invencíveis”. Para que seja possível entender o ocorrido na cidade de Imbuíra-BA, abaixo narrada, faço uma introdução explicando o por quê da aflitiva situação na época quando voltava da Paraíba-PB para o Rio de Janeiro-RJ, numa viagem que durou 41 dias.
Foi assim: Devido ao grande dilúvio ocorrido no nordeste em 1960, o presidente Juscelino Kubitschek mandou jogar víveres de paraquedas para motoristas ilhados nas estradas, inclusive nas aldeias e pequenas cidades completamente arrasadas, pelo fato deles não poderem ir para frente nem para trás e por isso já estarem passando necessidades. Para piorar, a distância de um povoado para outro, via de regra era de centenas de quilômetros por estradas de terra. Isto colocado, começo então a narrativa extraída do Original:
Imbuíra, BA, 21 de março de 1960
37º Dia.
Como sempre, acordei por volta das 06:00h, mais cedo que o Fernando e tratei de agilizar nossa saída colocando a Norton para fora do quarto com todo o material que nela estava e verifiquei se havia algum problema a ser ajeitado. Nada havendo, fiquei aguardando que ele acordasse. Olhei o tempo e vi estar nublado, porém algo de bom estava acontecendo: a chuva havia finalmente parado.
O Fernando acorda e diz que também desejava sair logo para abreviar nossa chegada ao Rio, mas retruquei dizendo: Espera aí. Agora com dinheiro, antes de viajar vamos é tomar um bom café da manhã na cozinha dessa pensão que parece ser asseada.
Estávamos na copa tomando tranquilamente nosso café, por sinal muito bom, mas já havíamos notado que desde nossa chegada ali, vinha de um cômodo qualquer da pensão, sons de alguém gemendo. Havia ocasião em que o gemido era tão alto, que incomodava-nos. E o som emitido indicava ser de voz feminina.
Incomodados e curiosos com aquilo perguntamos à senhora que nos estava servindo, o que se tratava, pois parecia que alguém estava sofrendo muito. Ela respondeu não ser grande coisa e que por isso não nos incomodássemos. Era apenas uma forte dor de cabeça que uma pessoa estava sentindo.
Não! Aquela resposta não nos convenceu! Até podemos aceitar que uma dor de cabeça incomode e faça a pessoa gemer. Mas daquele jeito… Não! Insistindo para vermos o que realmente se passava, acompanhamos a tal senhora e fomos até ao cômodo onde estava a pessoa que gemia.
Ao entrarmos num diminuto quarto vimos uma menina nova, magra, talvez com uns 14/15 anos e que poderia até ter mais, visto que em locais pobres, crianças se alimentam mal e por isso parecem ter menos idade que na realidade.
Deitada numa cama de solteiro contorcia-se de dor e acredito que ela nem prestou atenção em nós porque virava-se de um lado para o outro, sempre gemendo. Preocupados com aquilo, perguntamos para a tal senhora o que realmente havia, pois poderíamos ajudar se fosse possível.
Ela então conta: Era sua filha e devido a um gesto impensado por parte da menina, resultara uma infecção que já estava agora perigosíssima. Para esconder um problema que fora o resultado de um namoro secreto, a menina arranjara outro ainda maior que acabou gerando essa grave infecção.
Não havia ainda levado a filha ao médico em Jequié, porque ninguém conseguia passar na estrada e ela estava, há dias, aguardando uma oportunidade. Mas já se encontrava assustada devido ao agravamento do quadro que a menina apresentava, cada dia piorando mais.
Não conformado com a resposta, disse-lhe: Se nós ontem à tarde viemos de Jequié na Norton, podemos voltar e levar a menina, pois são apenas cerca de uns 40 km. Ela aqui sem recursos continuará sofrendo e poderá até morrer. Ir pela estrada haverá risco, sim, mas será um risco calculado. Veja bem: As bolsas e maletas ficariam aqui. Ela iria entre mim e o Fernando, que por sua vez a protegeria com os braços passando-os por baixo das axilas dela e segurando em mim, no meu blusão de couro. Dessa forma ele a ampararia, não deixando que caísse. Iríamos devagar até ao hospital a fim de evitar trancos em obstáculos. Só precisaríamos de um documento que nos autorizasse fazer isso.
Agora faço uma pausa para externar o que pensei logo após este oferecimento que fizemos: Só dois malucos poderiam ter uma idéia dessas. Colocar em risco a integridade física da menina, e sofrer terríveis conseqüências que certamente cairiam sobre os dois, se porventura acontecesse o pior. Mas por falta de iniciativa da mãe da menina, algo tinha de ser feito. Afinal, a garota estava morrendo! Ali onde estavam não havia qualquer chance ou qualquer recurso que salvasse a menina. Para nós, naquela altura dos acontecimentos e pelo que já havíamos passado por todo caminho, tudo era festa. Para nós não mais existia o pior após tudo o que já havíamos experimentado e sofrido.
Continuando… A mãe da menina por estar em dúvida refletiu por algum tempo e depois falou: Está bem! Levem-na para o Hospital em Jequié, mas não deixem de me dizer onde ela ficou moço, por favor! Pode ser que amanhã chegue um parente com um jeep. Se ele conseguir chegar, eu vou tentar ir lá.
Faço aqui uma pausa para dar uma razoável explicação: Naquela época as pessoas acreditavam mais umas nas outras – sem falar na nossa aparência de moços honestos (brincadeira…) – e também pelo fato de não haver alternativa na ocasião.
Enquanto nos ajeitávamos na Norton junto com a garota, a senhora foi para a sala, demorou um pouco e na volta entregou-nos a autorização, que ali na hora escreveu. Deu-nos a certidão de nascimento da menina, foto da garota com ela (mãe) e falou: Por favor, saiam com cuidado e não deixem os vizinhos verem. Vão com Deus!
Deixamos a bagagem na pensão e a seguir pegamos a menina cheia de dores, colocando-a entre mim e o Fernando, que a seguir amparou-a com os braços. Nisso, a senhora colocou num saco plástico algumas roupinhas de dormir, que amarrei no bagageiro que estava vazio. Ah, sim, um detalhe: Um pouco antes, a mãe da menina deu-lhe algo para beber e então perguntamos o que era aquilo. Respondeu que se tratava de um calmante caseiro para aliviar as dores dela durante o percurso.
Nota: Foi possível colocá-la –confortavelmente- entre nós, porque o banco (piloto/garupa) era inteiriço e plano.
Assim que a ajeitamos entre nós ela encostou a cabeça nas minhas costas, que ficava curvada para a frente devido ao guidão de corrida. Verificando então estar ela bem amparada, partimos.
Após algum tempo de muita atenção na estrada e a luta para passar pelos vários buracos escondidos sob a água e vencer pequenos atoleiros, o Fernando lembrou muito bem que o trecho pior estava por chegar, e quando lá chegássemos eu teria de saltar a fim de equilibrar melhor a Norton e até empurrá-la. Ele de forma alguma poderia sair da moto, porque se isto fizesse não teríamos como amparar a menina.
A lembrança é porque havia um atoleiro com mais de 20 metros de extensão, de um lado ao outro da estrada, e que era perigosíssimo. Se nos outros atoleiros era difícil até moto passar, neste nenhum veículo passava, nem motocicleta (porém isso não era conosco porque com malucos ninguém se mete, nem atoleiros), mas aconteceu que no dia anterior havíamos passado por ele. Com dificuldade, sem dúvida, porém passamos. Assim sendo já o conhecíamos. Mas agora, devido à responsabilidade de estarmos com a menina, teríamos de agir com maior atenção e prudência. Verificando então que do lado em que eu ia não poderia prosseguir por haver um caminhão tombado no extremo da estrada, além de outros atolados dentro dela, passei para a contramão (lado que tínhamos passado no dia anterior) e ao chegarmos ao início do atoleiro saltei com cuidado, mas continuei com a Norton ligada, indo bem pelo extremo da margem onde existia uma pequena elevação.
Mantendo baixa aceleração e empurrando vagarosamente a Norton, aos poucos ela ia passando sem atolar. Ao passo que eu atolava até às canelas. Os sapatos e meias não ficavam no atoleiro porque já os havia tirado desde a nossa saída da pensão.
Aos caminhoneiros que ali estavam (uns de um lado e outros do outro lado do atoleiro sem poderem atravessar) e que já nos haviam visto passar no dia anterior, curiosos por verem a garota gemendo perguntavam qual o motivo. Então falamos tratar-se de apêndice supurado e a estávamos levando urgente para o Hospital. Depois disso ouvirem, mais que depressa começaram a fazer tudo para ajudar-nos na travessia, a qual foi rapidamente superada graças a essa grande ajuda.
Dali por diante foi-nos possível continuar sem maiores problemas e chegamos tranquilos ao Hospital, onde fomos logo atendidos por diversas enfermeiras, surpresas e assustadas com a nossa chegada montados uma moto toda suja de barro (eu também) e ainda por cima com uma pálida garota entre os dois ocupantes.
Após ouvirem nosso relato, verem a foto e documentos da menina, assim como a carta feita pela mãe com nomes, endereço e tudo mais, levaram-na urgentemente para dentro e passaram a cuidar dela.
Aguardamos um pouco, oportunidade que aproveitei para limpar meus pés, pernas e roupas.
Após sermos informados de estar tudo resolvido, levaram-nos até a enfermaria onde ficara a menina. Vendo que estava finalmente tranquila, dormindo, que não mais gemia e nada mais tínhamos a fazer, agradecemos a generosidade deles e saímos, dizendo que avisaríamos à família.
No caminho de volta os caminhoneiros nos elogiaram pelo feito. Preocupados que ficaram com o problema da menina, perguntaram pelo resultado. Sem parar dissemos ter corrido tudo bem, melhor até do que esperávamos graças à ajuda deles e passamos com vivas e tapinhas nas costas enquanto andávamos devagar e sem parar, inclusive por estarmos os dois com os pés descalços.
Ao encontrarmos a mãe da garota informamos que tudo correra bem, falamos das urgentes e necessárias providências tomadas no hospital, e que felizmente ela já estava sendo tratada numa enfermaria e fora de qualquer perigo. E pelo que ainda pudemos ver, já estava sem dor e até sua cor mudara de amarelo para rosa (embora um rosa ainda um pouco esmaecido).
A senhora não sabia como agradecer. Quis pagar-nos pelo gasto que tivemos e o tempo que perdemos, o que recusamos. Mas devido à sua insistência, falei: Bem, já que a senhora está disposta a pagar tudo… Aí ela ficou aguardando o que eu ia dizer… Pois muito bem! A senhora então não vai nos cobrar o café da manhã que tomamos.
Enquanto apanhávamos nossas coisas, a senhora preparou uns sanduíches para nós e desejou-nos muitas felicidades.
O que aconteceu com a menina daí por diante, não soubemos.
Grande abraço
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