Olindina (BA)

Na manhã do dia seguinte acordaram lépidos e ansiosos para enfrentarem estrada. Aprontaram-se, nada comeram, mas explicaram ao pessoal da estalagem que iriam comer na próxima cidade porque tinham pressa.

Cá entre nós, um lugar onde não havia água e ainda por cima muita sujeira e desarrumação consideraram não ser convidativo comerem ali. Por isso, resolveram pagar a conta do pernoite e cair fora. Mas quando o piloto tenta apanhar a carteira no bolso de trás da sua calça jeans onde estava todo seu dinheiro, seus documentos e o da moto, teve desastrosa surpresa.

A carteira havia sumido!!!

No primeiro momento desconfiou do pessoal da estalagem e até olhou de “cara feia” (isso porque é de nascença mesmo a cara feia) para o proprietário. Mas numa rápida reflexão viu não ser isso possível porque ninguém entrara no quarto depois deles terem ido dormir. E mesmo que tivessem entrado e tentado tirar a carteira do bolso teriam de mexer no travesseiro porque o piloto sempre colocava a calça embaixo dele, quando não dormia vestido com ela. Então, o que tinham de fazer era retornar pelo mesmo caminho que fizeram na noite anterior, pela possibilidade de tê-la perdido durante a noite no trajeto.

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Tinham que achá-la de qualquer maneira, por que: 1) Poderia ser preso por vadiagem (sem documentos), que na época era uma figura da contravenção; 2) Sem dinheiro seria difícil continuar, pois não colocaria gasolina e tudo mais; 3) e dificilmente poderia vender a moto por desconfiarem ser roubada, o que seria um bom motivo para ele ser preso e o Fernando incriminado como cúmplice.

Explicando ao dono da estalagem a perda da carteira, de imediato esboçou sua desconfiança através da fisionomia, o que era de se esperar, porém o piloto ajeitou a situação dizendo que iam levar a motocicleta para procurar a carteira, porém os blusões e as quatro maletas ficariam ali com ele e na volta os apanharia e pagariam a dívida, que afinal de contas era quase nada, ao passo que os blusões e as maletas eram úteis e valiam um bom dinheiro.

Ele concordou e até disse não ser necessário deixarem os objetos, mas deixaram. A seguir, piloto e garupa montaram na moto e pegaram a estrada ainda com um pouco de névoa por ser muito cedo. Por estarem sem os blusões sentiram frio.

Vagarosamente foram fazendo o retorno, olhando cada um para um lado da estrada, da mesma forma que fizeram quando perderam os blusões logo na saída do Rio de Janeiro e felizmente os acharam.

Por estar iniciando o dia e a estrada secundária, o movimento de veículos por ela naquela hora era nenhum.

Olhando a estrada palmo a palmo, estavam concentrados em cada detalhe dela. Uma pedra, um pedaço de papel, um saco amassado jogado na estrada, a tudo observavam, enquanto vagarosamente retornavam pelo mesmo caminho que haviam feito na noite anterior. De repente, vendo algo parecido com a carteira junto a umas árvores e parcialmente coberto por mato, foram até lá.

No nervosismo por aquele achado, a moto estancou, sendo então deixada no meio da estrada, apoiada no descanso lateral. Entusiasmados que estavam pelo achado, ao aproximarem-se do objeto ficaram logo frustrados por não se tratar da carteira. Era um simples pedaço de couro, talvez do arreio de algum cavalo.

Já iam voltando, quando sem que esperassem um vulto num voo rasante passa próximo às suas cabeças de um lado para o outro, assustando-os. Tratava-se de um furioso carcará e pela atitude demonstrada mostrava não estar nada satisfeito com a presença deles ali naquele local, tanto que ia e voltava em ziguezague, aproximando-se deles com as asas abertas, garras expostas e emitindo altos trinados, a fim de afastá-los dali. Então, enquanto Fernando espantava a ave movimentando seu boné de cor escura, o piloto correu rápido até a moto para ligá-la. Ligada, ele saiu vagarosamente com ela para que o Fernando, andando rápido, sentasse na garupa. Assim que ele correu e sentou, saíram rápido.

Vendo que a ave não mais os perseguia, foram mais devagar e continuaram procurando a carteira, que era o mais importante para eles naquele momento.

Seguindo adiante e observando novamente a estrada com bastante cuidado, Fernando lembrou o tombo que a moto tomou na noite anterior, no momento em que o piloto aguardava seu retorno do casebre de onde moradores lhes indicaram a estalagem. Aconteceu que, sentado na moto enquanto esperava que ele voltasse, falseou o pé, perdendo o equilíbrio e com isso, pesada como estava, a moto tombou até ao chão. Como já estava retornando do casebre com a notícia da estalagem, ele até o ajudou levantá-la.

E a seguir, diz: “Será que a carteira não caiu por lá naquele tombo? Como estava escuro, talvez tenha caído e não deu para vermos naquela hora.”

Mal acabou de falar, o piloto acelerou e num instante chegaram ao local. De longe já viram algo gordinho, que parecia ser a carteira, caída na beira da estrada, no início do tal caminho de acesso ao casebre e com várias cabras próximas a ela. Com receio que as cabras pudessem comer a carteira, o piloto foi bem junto delas fazendo-as correr para longe, assustadas que ficaram com o barulho da descarga. Isso porque, se as cabras comessem a carteira com tudo dentro, como ia ser? Sem documentos e sem dinheiro, nem era possível imaginar como sairiam dessa. E depois provar, através das bolinhas evacuadas pelas cabras que nelas estavam dinheiro e documentos, quem iria acreditar ou verificar?

Nesse mesmo momento mais uma surpresa apareceu quando o piloto, ao abaixar-se para apanhar a carteira, intacta, percebe ter ao lado dela pegadas de pés descalços e também de sapatos. As pegadas dos sapatos poderiam até ser deles, mas a de pés descalços, não. Alguém deveria ter passado por ali e não viu a carteira devido à escuridão da noite.

Foi uma tremenda sorte que eles deram.

De volta à estalagem, já tranquilos e satisfeitos, passaram devagar pelo local onde a ave os expulsou, por não quererem que ela voltasse a atacá-los. Observando bem as árvores, Fernando descobriu e mostrou haver um ninho, exatamente onde eles estavam quando o tal carcará apareceu. Aí entenderam as razões do ataque que sofreram. Sem dúvida, era para afastá-los das proximidades do ninho.

Voltando à estalagem onde apanharam seus blusões e demais pertences, no momento de pagarem a conta, o proprietário da estalagem de forma bem cordial, disse:

“De início desconfiei dos senhores ao dizerem ter perdido a carteira com dinheiro e documentos. Mas a forma de como preocupados saíram para procurar vi logo que era verdade. E pelo sucesso que tiveram não cobrarei a estadia”.

Argumentando que ele deveria estar precisando do dinheiro por ser recém-chegado ao lugar, de forma alguma aceitou os argumentos do piloto, dizendo que era um prêmio pelo trabalho que tiveram por acharem a carteira. E prêmio não se deve recusar.

Mediante isso, agradeceram a gentileza e partiram satisfeitos.

A saída aconteceu às 6h20, com a pretensão de alcançarem a cidade de Paulo Afonso (fica praticamente nas divisas da Bahia, Alagoas e Pernambuco), na BR-116 (estrada Rio Bahia).

Pegaram a BR-110, que não estava nada animadora, por ser tal e qual a Rio-Bahia, cheia de buracos e valas por todos os lados, além de muitos cascalhos pelo caminho. Nesse trajeto passaram por Olindina e depois de andarem durante muito tempo, chegaram à cidadezinha de Cipó onde pararam num trecho da estrada, maravilhados ao verem as águas ferventes que, borbulhando, saíam do fundo da terra. Era o fenômeno denominado gêiser.

Moradores da localidade informaram-lhes que no meio do ano, gente vinda de outros estados e até do exterior banhava-se naquelas águas na esperança de obter cura contra reumatismo, gota, doença de pele e muitas outras enfermidades. Disseram, inclusive, que servia até para curar falta de dinheiro. Após terem ouvido isso trataram logo de banharem-se também.

Seguindo pela BR-110, pararam mais adiante na cidade Ribeira do Pombal por volta das 11h30, onde almoçaram.

Não consideraram esse trecho da estrada ruim porque essa expressão seria até um elogio. Abominável estaria mais adequada, tendo em vista que os cascalhos com tamanhos variados e espalhados em toda largura e extensão da estrada eram terríveis, prejudicando tremendamente a dirigibilidade e fazendo a moto derrapar por qualquer bobeira do piloto.

Após uma parada para o almoço, continuaram por essa estrada perigosíssima. Na tentativa de evitar qualquer acidente, o piloto andava devagar e com muita cautela. Razão de até carroças puxadas por jegues os ultrapassarem, fazendo até com que comessem poeira.

Acreditou? Ainda bem que não, pois se trata de brincadeira do piloto.

Passaram por uma cidade de nome Cícero Dantas e depois de penarem bastante, chegaram finalmente a Jeremoabo.

Analisando se valia a pena continuar para alcançarem Paulo Afonso, conforme desejavam, olharam para o céu e vendo-o muito carregado de nuvens, imaginaram que dali a pouco iria escurecer. E, estando o céu cheio de nuvens, prenunciando noite sem luar e talvez chuva, não tendo farol a moto e, além de tudo, estarem cansados, o melhor a fazer seria pernoitarem por ali mesmo. E foi o que fizeram!

Motociclistas Invencíveis

Semanalmente vamos publicar, aqui no Viagem de Moto, capítulos do livro Motociclistas Invencíveis, romance extraído de uma viagem com moto ocorrida em 1960.

Conduzindo na garupa da moto um amigo, piloto sai do Rio de Janeiro por estradas de terra a fim de encontrar sua linda namorada, que saindo de Itabuna (BA) para morar no Rio de Janeiro, de repente, da noite para o dia, desaparece sem deixar rastros. Chegando a Itabuna, piloto descobre que ela fugia de assassinos (contratados para matá-la), pelo fato dela ser testemunha do assassinato de seu pai, ex-cacaueiro na região.

Por acontecerem muitas aventuras e novos amores pelo caminho, foram até a Paraíba.

Enfrentaram sol, poeira, chuva e lama. Ajudaram, foram ajudados, acontecendo inclusive que, por levarem uma garota (estava num leito de morte) entre eles dois até ao hospital, salvaram sua vida. Em si, a história mostra como eram os motociclistas Nos Deliciosos Anos Dourados.


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Um brasileiro e uma moto no Himalaia indiano