Carnaval em Recife

28 de fevereiro de 1960, 14h, 1º dia de carnaval e 15º dia de viagem. Pelos planos originais estava concluída metade da meta estabelecida, porque dali voltariam. Mas acontecia que Recife não era mais o destino, porque agora ainda teriam mais estrada a percorrer em razão do compromisso assumido com as garotas cujos bilhetes prometeram entregar às suas mães em Campina Grande (PB).

E para poderem cumprir o compromisso tinham mais estrada pela frente. Mas isso não será já, pensou o piloto. Primeiro irão ver o carnaval, sendo mais prioritário ainda resolver logo o problema do dinheiro.

Nota: Aproveitando para informar que 1960 foi ano bissexto, havendo, portanto dia 29 de fevereiro de 1960.

Continuando o relato, por estarem sem dinheiro, nada tinham comido nem bebido desde aquele lauto café da manhã que lhes foi oferecido em Caruaru, só voltando a comer novamente quando chegaram à casa da mãe do Fernando, Dona Júlia, que morava no bairro de Areias, distante uns seis quilômetros do centro da cidade.

Não tendo comunicado a ida deles até lá, ao verem-nos chegar sujos de barro, queimados do frio, do sol e numa moto barulhenta, cheia de objetos em cima, atrás e nos lados, a surpresa foi total.

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Na casa, além da mãe do Fernando estava uma de suas irmãs, viúva, chamada Zezé, que residia no Rio e estava por lá a passeio. Havia também uma empregada de nome Maria, que com o decorrer do tempo descobriram ser muito eficiente.

Refeitas da surpresa pela chegada dos aventureiros, foram efusivamente recebidos e imediatamente convidados a ficar na casa o tempo que quisessem. Estas foram mágicas palavras que precisavam e queriam ouvir. “Era mamão com açúcar” na expressão popular.

Numa oportunidade que surgiu quando ficaram sozinhos, Fernando comunicou à sua irmã Zezé o fato de estarem sem dinheiro e aproveitou para pedir um empréstimo com a garantia de pagarem assim que fosse retirado o dinheiro que chegaria pelo Banco. Ela concordou e emprestou-lhes uma razoável importância. Foi “a salvação da lavoura”, outra expressão popular da época.

Agora, o passo importante do piloto será pedir ao seu sócio Borges, que enviasse dinheiro através do Banco. Mas onde achar um telefone para ligar? A Zezé então informou que o melhor seria ir ao centro da cidade e usar as cabines da Companhia Telefônica que, embora sendo carnaval, estariam funcionando.

Por estar entardecendo e cansados da viagem, resolveram ficar na casa porque o Fernando queria aproveitar para visitar antigos vizinhos e amigos do tempo em que lá morou.

Tarde da noite voltaram para casa, conversaram com os familiares sobre a viagem e a seguir se recolheram.

No dia seguinte, 29/02/60 (ano bissexto) acordando bem cedo, tomaram o café da manhã e foram à cidade a fim de ver o carnaval porque, segundo informações que tiveram, o centro da cidade ficava bem animado. O negócio então era ir lá para conferir.

Realmente! Havia muita gente pulando, cantando e sambando. Muitos blocos carnavalescos e também de frevo com diversas “frevistas” se apresentando ostentando as indefectíveis sombrinhas coloridas. Carros antigos sem capota, todos enfeitados e cheios de foliões dentro, atrás, dos lados e na frente. Só não repararam se havia também alguém debaixo do carro. Muita gente bonita, ricamente fantasiada, animada e cantando alegremente em grupos; confetes de cores diversas eram atirados para o ar ou em cima de pessoas; serpentinas, que depois de arremessadas formavam extensas tiras de papéis coloridos enfeitando os locais; sem falar nos cheirosíssimos lança-perfumes gelados, esguichados nas pessoas distraídas que tomavam susto ao receberem aquele líquido gelado e perfumado.

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Na Av. Guararapes o piloto tentou falar com o sócio via telefone “Radional” mas não foi possível porque ninguém atendia na sua casa, no Rio de Janeiro. Após isso ficou marcado com a telefonista que voltariam às 20h. Por estar na hora do almoço, voltaram para casa a fim de comerem aquela gostosa comida caseira.

À noite e na hora marcada já estavam eles na Companhia Telefônica, exatamente conforme combinado. Aguardaram algum tempo e em determinado momento o piloto foi chamado para ir até uma das cabines vazias (onde uma das telefonistas após ter feito a ligação a transferiria).

Estando o sócio Borges em casa, atendeu a ligação e finalmente conseguiram se falar conversando sobre a situação da Livrolândia e a viagem. Por fim o piloto lhe pediu para enviar dinheiro, pois o que ele levara acabara todo. O sócio respondeu que mandaria quando os Bancos abrissem após os feriados de carnaval. Satisfeitos, encerraram a conversa, inclusive porque a ligação estava com muitos chiados.

A seguir os dois circularam mais um pouco pela cidade para olharem as ruas enfeitadas, ver fantasias, moças bonitas e toda aquela alegria contagiante quando, de repente para completa perplexidade de ambos, por acharem que poderia ser um fantasma vagando naquela confusão do carnaval, eis que, andando em sentido contrário a eles, quem eles veem:
Nem mais nem menos do que o tal argentino “mui amigo” que viram e com ele falaram no hotel em Salvador e que ao se despedir disse estar indo para o sul, para a sua “mui querida Argentina”.

Se ele estava ali, porque dissera no hotel em Salvador, que estava indo para o sul? Algo muito estranho ele deveria estar fazendo.

Andando em sentido contrário passou “batido” por eles, sem olhá-los diretamente, porém os dois notaram que ele os vira e reconhecera. Então, assim que ele passou, piloto e garupa olhando um para o outro, como se tivessem visto um fantasma comentaram:

“Que “baita” coincidência! Num lugar tão distante e no meio de milhares de pessoas fazendo tremenda algazarra foram encontrar o “mui amigo” andando calmamente pelas ruas de Recife. O que ele estava fazendo ou planejando fazer não sabiam e nem os interessava saber, mas boa coisa não deveria ser tendo em vista que no Hotel, em Salvador, ele se mostrava muito arredio e desconfiado. Aí confirmaram o velho ditado popular: “Mentira tem pernas curtas”.”

Após terem visto o “fantasma” e apreciado bastante o carnaval, voltaram satisfeitos para casa.

Saindo no dia seguinte para novo passeio a pé, procuraram e acharam próximo ao Centro uma grande oficina de retífica de motores. Apanharam a moto e levaram-na funcionando para essa oficina. O dono (mecânico) abriu o motor, examinou-o e disse terem sido danificadas as duas válvulas do cabeçote esquerdo, principalmente a da descarga. Não havendo válvulas originais para substituição, disse que comprassem duas válvulas de carro da marca “Studbaker” (existia na época) Ref. 194.216-IN para substituir as originais danificadas.

As válvulas custaram Cr$ 400,00 e a mão-de-obra para usinagem e colocação de volta no motor custou Cr$ 150,00. Foi possível apresentar esses detalhes por ainda existirem as respectivas Notas. Depois do motor aberto viram que uma das válvulas, a de descarga do pistão esquerdo, teve grande parte derretida.

Tudo acertado, ficaram de apanhar a moto no dia seguinte.

À noite, para variar, pegaram os patins, que estavam em uma das bolsas e a pé foram procurar uma rua tranquila e com bom asfalto para patinarem, porque no Centro não seria possível devido ao grande número de carros e pessoas pulando e brincando.

Finalmente escolheram a Rua Conde de Boa Vista onde calçaram os patins.

Assim que iniciaram a patinação formou-se logo uma assistência nos dois lados da rua (o que era normal) vendo-os e dizendo nunca terem visto coisa parecida. A certa altura e depois de algumas peripécias, um senhor que lá estava dirigiu-se até eles e perguntou se poderiam patinar mais um pouco para ele filmá-los, no que concordaram e a filmagem foi feita.

Ao terminar comunicou que as imagens seriam apresentadas logo no dia seguinte pela TV Jornal do Commércio, onde trabalhava. Mas, por estar a TV em fase experimental não saberia dizer qual seria a hora da exibição, porém acreditava ser na tarde do dia seguinte.

Ao retirar-se, convidou-os para irem um dia ao jornal a fim de serem entrevistados.

Na volta, após tirarem os patins, passaram pelo centro para observarem os estertores da folia e logo depois trataram de se recolher.

Nessa noite, 1º de março de 1960, acabava o carnaval, que aconteceu dias 28, 29 de fevereiro e 1º de março.

Dia seguinte foram cedo à oficina para retirar a moto, que já estaria pronta. Ficara uma beleza! Aquele seu barulho característico da descarga livre mostrando sua tremenda disposição, voltara. Que maravilha!

Além do mais estava limpinha, polida e perfumada. Beleza! Saíram para experimentá-la e pegaram a direção de casa, por ser hora do almoço.

Depois de almoçarem, resolveram dar um passeio por Olinda, que ficava próximo e aproveitariam para ver na TV a apresentação deles nos patins, o que não poderia ser feito na casa da mãe do Fernando porque lá não havia televisão. E isso acontecia em quase todas as casas por se tratar de objeto caro, raro e na época considerado artigo de luxo.

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Passeando por Olinda, onde havia muitas casas bonitas na beira daquelas praias lindíssimas, logo viram ser diferente do Recife que tinha na sua orla marítima muitos edifícios altos. Procurando uma casa que tivesse antena de TV, coisa rara, pelo fato de estar iniciando o sistema na região, acharam uma e lá os moradores autorizaram que entrassem.

Interior luxuoso, muitas dependências e uma sala espaçosa. Ficaram ali conversando entre sofás e poltronas, bebendo uísque servido pelo anfitrião, Sr. Diniz. Através da TV marca Philco, que apresentava uma imagem excelente, sem chuviscos, fantasmas ou o que fosse (Olinda e Recife, cidades com poucas elevações, sinal de TV não tem interferência).

Passado algum tempo vendo apresentações do carnaval (sem cores porque na época a TV era só preto e branco) viram várias cenas, até que em determinado momento e rapidamente apareceram algumas imagens mostrando a patinação dos dois e foi só.

Agradecendo a gentileza do Sr. Diniz, voltaram direto para Recife.

No dia seguinte piloto combinou com Zezé, irmã do Fernando e viúva com quem fizera boa amizade, para passearem pelas praias.

Nascida na Paraíba e criada em Recife até quando se casou, ela conhecia muitos locais interessantes, principalmente as praias da região. Mas se soubessem o que estava para acontecer com eles, sem dúvida que adiariam o passeio, mas de qualquer forma houve compensação devido ao gostoso envolvimento que aconteceu.

Então, depois do almoço, satisfeitos e dispostos a darem o tal passeio, saíram em direção às praias e durante longo tempo ficaram percorrendo a de Boa Viagem. Em toda extensão iam vendo pequenas cabanas com tetos de palha onde serviam bebidas e frutos do mar. Os fregueses sentavam em bancos de madeira e as iguarias ficavam sobre os balcões, também de madeira.

Pararam em uma delas para poderem conversar e beberem alguma coisa enquanto apreciavam a beleza proporcionada pelo extenso mar, encimado por enorme céu azul, mesclado com algumas nuvens brancas que nele pairavam. Enquanto isso acontecia, eles se aproximavam mais, conhecendo-se cada vez melhor, sensação que lhes dava grande prazer, fazendo-os sentirem-se cada vez mais atraídos um pelo outro, a ponto de começarem a trocar gostosas e excitantes carícias.

Chegando ao final da praia, local pouco frequentado e por estarem sós, tiveram finalmente a oportunidade de poderem se conhecer profunda e demoradamente.

Tendo esquecido da hora em razão daqueles deliciosos momentos, quando deram conta disso já estava escuro. E por continuar a moto sem farol, retornaram por onde vieram.

Depois de terem percorrido boa extensão da praia e dirigindo-se para o bairro Areias, ao passarem em frente a um quartel do exército no bairro Afogados, onde a rua (como a maioria delas) era de paralelepípedos e mal iluminada, eis que de repente e já em cima do problema, o piloto vê à sua frente paralelepípedos soltos e desordenados na rua e com pó de pedra espalhados sobre eles.

O local se encontrava assim por estarem recolocando paralelepípedos no lugar após terem consertado canos subterrâneos, mas não tiveram o cuidado em colocar qualquer sinalização ou aviso. E aí deu no que deu. O piloto entrou nos paralelepípedos que estavam soltos e ficou brigando com o guidão a fim de manter a moto equilibrada para poder passar pelo obstáculo. Não conseguindo, caiu. No impulso da velocidade o “quique” da moto puxou-o pelo joelho, arrastando-o. Isso aconteceu porque o quique era fixo, não dobrando para dentro como acontece atualmente com algumas motos que ainda os têm.

Já no chão e após ter parado, o piloto olhou para trás e viu a Zezé (cuspida da moto logo no primeiro solavanco), dando largas passadas na tentativa de equilibrar-se. O engraçado foi, assim que ela parou após ter dado várias passadas e já dominando seu equilíbrio, sem mais nem menos caiu esparramada no chão!

Aquilo foi engraçado, mas não era hora de rir.

O piloto levantando-se foi até onde ela estava, ajudou-a a se levantar e verificou que sofrera apenas pequenos arranhões nas palmas das mãos. Fora isso, só o susto, felizmente!

Voltando até a moto levantou-a do chão e notou que o tanque de gasolina tinha ficado levemente amassado.

Sentindo o joelho começando a ficar adormecido devido traumatismo causado pelo quique e já estar sangrando um pouco, perguntou à Zezé se sabia onde poderiam ser medicados. Respondeu dizendo que no caminho, um pouco mais adiante havia um Posto do SAMDU – Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência. Na época havia desses Postos em todo o território nacional e ficavam abertos 24 horas todos os dias. Antigamente as coisas eram diferentes. Instituições funcionavam corretamente beneficiando o povo.

Quando chegaram, o joelho do piloto já começava ficar rijo pelo fato da musculatura estar esfriando em razão do tempo já decorrido.

Atendeu-os uma gentil enfermeira, que tratou primeiro da Zezé e a seguir do piloto por ser seu caso mais demorado porque, além de tratar do ferimento no joelho, ainda teria de enfaixá-lo.

Terminados todos os curativos, agradeceram e saíram.

Não mais conseguindo quicar a moto com a perna direita por já estar endurecida, usou a perna esquerda. Deu certo! Pegou de primeira, o que era normal acontecer!

Dali foram direto para casa, deixando a moto no jardim.

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Quem ficou cuidando do piloto durante seu restabelecimento foram: Zezé e a Maria, empregada da casa, que no fim do tratamento ganhou uma gorjeta e ficou toda feliz desejando que ele caísse mais vezes: “Eu falei brincando, disse”. Mas quem espontaneamente fazia carinhoso curativo no seu machucado era a Zezé. E até fazia com excessivo zelo, talvez por ciúme da empregada, Maria, que afinal de contas não era de se jogar fora.

Sabendo que o piloto teria que ficar de “molho” alguns dias, Fernando resolveu visitar parentes da mulher dele numa cidade chamada Guarabira (PB), cerca de algumas horas viajando de ônibus em chão de terra. Tinha pretensão de ficar por lá alguns dias enquanto o piloto se restabelecia. E assim fez.

Dia 6 de março e lá estava o piloto ainda de “molho” com a perna dura e a ferida por cicatrizar, mas sempre colocando Anaseptil.

Para piorar ainda mais a situação, tinha o caso do dinheiro que ainda não havia chegado ao Banco no centro da cidade.

Dia 9 de março, já não mais aguentando ficar dentro da casa, mesmo sendo “paparicado” pela carinhosa “enfermeira” Zezé, ele resolveu andar. Dessa forma iria exercitar a perna prejudicada e também saberia se estava melhorando o suficiente para poder pilotar a moto.

Nesse mesmo dia, recebendo através da Zezé agradável notícia da chegada do dinheiro ao Banco, foi com ela até lá para retirá-lo e imediatamente pagou-lhe a importância que emprestara. Achando no caminho uma loja onde havia pneu para a roda traseira da moto, deixou para comprá-lo quando estivesse com a moto porque não iria carregá-lo agora na mão e ainda por cima mancando devido ao problema no joelho.

Tendo retornado à noite e sabendo da melhora do piloto, Fernando falou para irem até Campina Grande assim que ele pudesse a fim de fazerem a entrega dos bilhetes da Gabriela e Mariazinha, acrescentando que no caminho poderiam passar por João Pessoa a fim de verem a belíssima praia de Tambaú.

Achando a ideia excelente, pois já estava com algum dinheiro e bem melhor do joelho, o piloto concordou e então combinaram de ajeitarem primeiro a moto para depois então partirem.

No dia seguinte, 10 de março, fizeram alguns preparativos necessários, conforme segue:

Compraram e trocaram o pneu traseiro; soldaram o paralamas traseiro que já estava quase partindo; trocaram o óleo do cárter e abasteceram o tanque de gasolina.

Aproveitando o fato de estarem circulando na cidade, lembraram-se do convite feito pelo cinegrafista da TV e então resolveram passar no Jornal do Commercio. Lá chegando foram encaminhados à redação, onde falaram com um repórter, que imediatamente os entrevistou.

Esse dia foi um teste para o joelho, que apesar de não estar bom e nem a ferida ter cicatrizado, já dava para pilotar. Estando então tudo providenciado, resolveram dar mais umas voltas a fim de fazerem um teste maior na moto e também no joelho.

Dia seguinte, 11 de março, animados com a nova empreitada e após tudo pronto, despediram-se do pessoal que os aguardaria na volta e partiram cerca das 08h30 em direção a Campina Grande, onde entregariam os bilhetes às mães das duas garotas que encontraram em Ibimirim.


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