A partida

Conforme previamente combinado, no dia 14 de fevereiro de 1960, Fernando (o garupa) foi até a casa do piloto, onde ambos se arrumariam a fim de partirem do Rio de Janeiro (RJ), onde ambos moravam.

Após organizarem os apetrechos na moto e já vestidos com roupas apropriadas para o trajeto (camisas sem gola, blusões de couro, calças Jeans, sapatos mocassins, bonés e o charmoso cachecol), estavam prontos para partir.

Colocaram duas maletas com roupas e demais pertences pessoais no para-lama traseiro, onde adaptaram o bagageiro. Prenderam pastas contendo ferramentas, bomba de ar, dois pares de patins e peças para manutenção da moto em cada lado dos tirantes laterais, adaptados no quadro da moto. Fernando levou a tiracolo um bornal (bolsa de tecido) com algum alimento, radinho de pilha, máquina fotográfica e medicamentos para alguma emergência, tais como Anaseptil em pó, esparadrapo, gaze, algodão, éter e produtos de higiene pessoal.

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Dinheiro, o piloto levava em espécie. Isto porque na época era difícil e até impossível descontar cheques em outras cidades. Caixa 24h não existia e nem sabiam que um dia existiria, assim como cartões de crédito, bancário e outros.

Considerando não faltar mais nada, deram por encerrada essa parte preliminar da partida.

Tudo pronto, partiram exatamente às 09h35 de um dia de domingo tranquilo, com sol claro, temperatura amena, razão de vestirem na ocasião apenas camisas sem gola e mangas curtas, calças jeans, sapatos, bonés, óculos e o garupa sentado sobre os dois blusões de couro.

Saíram alcançando logo a Avenida Brasil (via principal de entrada e saída do Rio de Janeiro) e a seguir pegaram a estrada Rio-Petrópolis (Rodovia Washington Luiz), mas quando já estavam em Duque de Caxias, município vizinho ao Rio de Janeiro, Fernando grita lá da garupa:

“Nossos blusões de couro caíram na estrada. Eu estava sentado em cima deles, mas com os solavancos devem ter escorregado e caído na estrada. Não sei onde aconteceu porque não vi quando nem onde caíram”.

Um detalhe: Muito embora tenha ele demonstrado ser pessoa responsável e criativa, em contrapartida havia o lado descontraído e até inocente, responsável por muitas das “gafes” que cometeu pelo caminho.

imediatamente voltaram dali mesmo, por serem os blusões vestes importantíssimas para poderem enfrentar chuva, frio, sol, e protegê-los de arranhões nas caatingas e até de eventuais tombos.

Como na época as estradas eram mão e contramão e não tinham muretas, apenas uma faixa ou ficavam separadas por reduzido meio-fio, foi-lhes possível voltar observando cada pedaço da estrada antes percorrido. Ficou combinado que piloto olharia para um lado e Fernando para outro. Dessa forma voltaram até a Avenida Brasil onde encontraram os blusões juntos e intactos no lado contrário e fora da estrada.

Incrível, ninguém viu, nem os levou.

Alegres pelo achado, retornaram à jornada, agora mais otimistas e entusiasmados, mas por via das dúvidas, vestiram os blusões.

Da Avenida Brasil retornaram à Rodovia Washington Luís (Rio-Petrópolis) e seguiram em frente para mais adiante começarem a subida da serra de Petrópolis (RJ).

Ao chegarem a Itaipava (RJ) pararam no Posto Rodoviário a fim de pedirem ao policial de plantão que carimbasse o 1ª dos 70 carimbos que foram colocados nas folhas de um pequeno caderno, cujo propósito era provar ao sócio da Livrolândia (Borges) toda a trajetória da viagem. Tanto na ida quanto na volta.

Esse caderninho, assim como o Diário e o “grande” mapa rodoviário que ficaram casualmente guardados durante anos, ajudaram nas diversas lembranças para confecção deste livro escrito 50 anos após a aventura. E é bom frisar que eles ainda guardavam fortes vestígios do pó de barro da estrada, inclusive na mente do piloto, conforme declaração dele.

Prosseguindo a narrativa, chegaram a Areal (RJ). Haviam passado por Três Rios, Além Paraíba e Porto Novo do Cunha.

Para eles, até aí tudo era festa. Estrada asfaltada, céu claro com um sol bem brilhante e morno (a região era alta), muitas árvores, hortênsias floridas colorindo um longo trecho da estrada, vários animais pastando e um rio tranquilo que os acompanhou durante um bom tempo pela estrada União Indústria.

Nessa oportunidade atravessaram a fronteira do Rio de Janeiro com Minas Gerais, chegando finalmente à famosa e perigosa Rio-Bahia (BR 116), estrada toda de terra.

Continuando o percurso, agora em estradas de terra dentro do estado de Minas Gerais, ao chegarem à cidade de Leopoldina resolveram fazer uma parada para reabastecer a moto e carimbar o caderninho.

Moto abastecida e caderninho carimbado seguiram em frente para alcançarem Muriaé, começando assim o enfrentamento com chão de terra nessa longa, cruel e penosa sina que dali para frente eles enfrentariam, fazendo o piloto confessar ter sido assustadora essa visão inicial.

No final da tarde e ainda na estrada, além da quantidade de poeira suspensa no ar para incomodar, foram recepcionados por bandos de enormes mosquitos, que parecendo estarem providos com bastões de beisebol, ao chocarem nos seus rostos era como se estivessem dando-lhes tremendas cacetadas com os bastões. Isso acontecia porque na época não existia capacetes, muito menos viseiras. Usavam apenas óculos e bonés.

A impressão que tiveram devido ao chão de terra, poeira e insetos de todo tipo foi de terem saído do paraíso e entrado no purgatório, tendo em vista o que passaram dali por diante.

Como o tempo estava bom e o chão seco, a poeira levantada pelos veículos à frente turvava completamente a visão, incomodando bastante e oferecendo sérios riscos. Mais feia ainda ficava a coisa quando os veículos que vinham em sentindo contrário passavam por eles e a poeirada resultante desse vai e vem de veículos ficava um bom tempo suspensa no ar. Era igual a um denso (fog) nevoeiro londrino.

Depois de enfrentarem longa e perigosa subida nessa estrada de terra, piloto é obrigado a declarar que neste percurso feito à noite foram recompensados com a bela visão da lua e do seu claríssimo luar espalhado por toda aquela estrada deserta e sem qualquer iluminação.

Trafegar à noite é poético, principalmente quando há luar igual ao que estavam vivenciando. Tudo na mais harmoniosa paz. Não havia barulho algum além do motor da moto. Dava impressão de estarem alheios ao mundo. Em compensação tinham por companhia os mosquitos e outros insetos, distinguindo-se facilmente dentre eles o vaga-lume devido à sua lanterninha com mau contato (pisca-pisca).

Fascinados com aquele luar e querendo apreciá-lo na sua total intensidade, apagaram a luz do farol. Maravilha! Parecia que estavam vendo o dia com óculos levemente escurecidos. Se olhassem diretamente para a lua ela até os ofuscaria.

Extasiados com a cena, assim continuaram até chegarem a Muriaé () onde fizeram o primeiro pernoite e onde o caderninho foi mais uma vez carimbado.

Devido ao grande cansaço que sentiam se instalaram logo num pequeno hotel que havia próximo à estrada.

Vai aqui uma rápida pausa para esclarecimento:

No tempo dessa viagem não havia e nem se falava em violência, roubo, furto de carro, muito menos de motocicleta. Por isso, vez ou outra deixavam a moto na rua, num lugar próximo a eles, retirando apenas materiais de asseio. Nem as ferramentas retiravam. Trancas, alarmes, ou outra parafernália de segurança inexistia por ser desnecessária e nem chave de contato havia. Para ligar a moto bastava quicá-la e ela funcionava. Para desligá-la acionava-se o manete do descompressor e o motor parava. Tudo era simples e até ingênuo, considerando-se as diferenças daquela época com a atual, cheia de violência prejudicial.

Crimes violentos, assim como assaltos, eram fatos raros e quando ocorriam surpreendiam. A droga, por sua vez, era praticamente desconhecida. Mas hoje em dia não é mais assim. Violência e drogas passaram a ser algo corriqueiro e banal. As coisas mudaram, infelizmente para pior. Se os viciados entendessem os prejuízos que causam às famílias brasileiras e também às deles com esse terrível e inútil vício, parariam e deixariam de enriquecer traficantes e outros criminosos, inclusive políticos corruptos e policiais bandidos.

Dentro das casas havia harmonia e segurança e as famílias eram compostas de numerosas pessoas. Pelas ruas e estradas andava-se com tranquilidade, mas nem por isso deixavam de tomar certas precauções, tanto que, na viagem, o piloto levou uma pistola (da 2ª guerra mundial) calibre 22, com pente carregado, que lhe fora emprestada por um amigo para ser usada numa emergência. Isso até lembra um ditado popular:

“Prudência e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.

Motociclistas Invencíveis

Semanalmente vamos publicar, aqui no Viagem de Moto, capítulos do livro Motociclistas Invencíveis, romance extraído de uma viagem com moto ocorrida em 1960.

Conduzindo na garupa da moto um amigo, piloto sai do Rio de Janeiro por estradas de terra a fim de encontrar sua linda namorada, que saindo de Itabuna (BA) para morar no Rio de Janeiro, de repente, da noite para o dia, desaparece sem deixar rastros. Chegando a Itabuna, piloto descobre que ela fugia de assassinos (contratados para matá-la), pelo fato dela ser testemunha do assassinato de seu pai, ex-cacaueiro na região.

Por acontecerem muitas aventuras e novos amores pelo caminho, foram até a Paraíba.

Enfrentaram sol, poeira, chuva e lama. Ajudaram, foram ajudados, acontecendo inclusive que, por levarem uma garota (estava num leito de morte) entre eles dois até ao hospital, salvaram sua vida. Em si, a história mostra como eram os motociclistas Nos Deliciosos Anos Dourados.


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