Viagem de moto com Harley-Davidson

Readolescência

Os anos haviam sido gentis com eles. Seus rostos vibrantes e seus corpos enérgicos não demonstravam a longa estrada que trilharam até chegarem ali. Como eram admiráveis !

Conheceram-se aos vinte, quando se abriam as portas da juventude, do mercado de trabalho, do posicionamento social. Tanto aprendizado pela frente, tantas barreiras a transpor e tanto tempo pra viver…

Mas o tempo não é simplesmente uma medida linear à qual rapidamente nos acostumamos. Nossos cérebros, durante a infância vêem-no passar lentamente na medida em que muitas e muitas informações são oferecidas aos sentidos para serem armazenadas e manipuladas. Nossos corpos se desenvolvem rapidamente. Muito mais rapidamente do que nos damos conta e logo já quase não podemos ser distinguidos dos adultos.

Então somos adolescentes, em corpos fortes e saudáveis que parecem se adaptar aos limites que se lhes impõe. Não tememos o frio, o cansaço, o esforço. Não conhecemos barreiras e estamos dispostos a tomar o mundo nas mãos. Ao nosso lado cresceram também nossos companheiros de infância, que como nós, sentiram as fragilidades de um corpo pequeno e incapaz e de um cérebro em treinamento básico para comunicar-se com o mundo exterior. Mas isso já é passado e aquele tempo de infância que parecia passar moroso, agora está ficando distante. Junto a nossos companheiros formamos o exército do futuro, que rapidamente aprende e domina as novas tecnologias e que tem a certeza da invencibilidade! Esse exército muitas vezes adota bandeiras, segundo suas inclinações esportivas, musicais, culturais ou artísticas. Somos skatistas, surfistas, roqueiros, flamenguistas, evangélicos, petistas, skin heads, manos. Sim, somos manos e aliás, temos muito mais em comum com nossa “galera” que com nossos consangüíneos. Vivemos em bando, respiramos o mesmo ar e temos que sentir a afirmação do bando para sabermos que estamos no caminho que nós mesmos traçamos, eheheh!

O tempo novamente prega uma peça, só que desta vez passa tão rápido que em pouco tempo nossas conquistas nos envolvem em compromissos e obrigações, projeções futuras, estudos preparatórios para um progresso que parece inevitável

Então somos jovens e não temos tempo a perder, afinal, tempo é dinheiro e a competição é ferrenha. Há muita gente boa ombreando conosco e aqueles companheiros de infância e adolescência agora são nossos rivais no mundo adulto que queremos conquistar. Já aprendemos que o tempo pode passar mais rápido do que esperamos e temos que terminar o curso superior, a pós-graduação, o doutorado. Temos que conquistar a chefia, abrir nosso próprio negócio, pagar o carro.

Talvez fosse melhor estar casado, compartilhar despesas e tarefas domésticas. Aliás, ter sexo seguro e garantido também seria uma forma bem racional de economizar nas baladas, roupas e desgaste físico. Filhos? Lógico que todo mundo pensa em tê-los e não podemos ser surpreendidos com trinta anos. Depois dos trinta anos, ou você é, ou jamais será…

Temos pressa. Temos trinta. Trinta e poucos, é verdade, mas ainda na casa dos trinta e afinal percebemos ser preconceituosa aquela velha frase: “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”. Pura bobagem… agora sim é que as coisas estão acontecendo em nossas vidas. Ganhamos mais, gastamos mais, adquirimos mais e não perdemos nada. Na verdade ganhamos também uns quilinhos e uns cabelos brancos que até nos deram charme e uma aparência mais respeitável. Ah, Como queremos ser respeitados! Você sabe com quem está falando? Não é com nenhum moleque recém formado, não. É com um pai de família que paga impostos. Temos dinheiro até pra comprar essa espelunca e não vamos ficar aqui perdendo mais tempo. Precisamos é de férias…

Podíamos chamar os irmãos e sobrinhos pra passar uns dias na casa da praia, pois já faz muito tempo que estamos falando em nos reencontrar e nunca aparece oportunidade, desde aquela encrenca, dois anos atrás.

Férias na casa da praia só com as crianças seriam bem legais, mas aquilo está tão bagunçado, despenderia tanto esforço e as crianças nem parecem tão animadas. Na verdade, dizem que já têm idade suficiente pra fazer aquele acampamento de férias com “a galera”. É, eles já têm “galera”, eheheh. Nem podemos culpá-los, afinal, passar as férias sozinhos na casa da praia foi um saco. Só limpando e cozinhando e consertando e organizando. Nossa! Fazia anos que não trabalhávamos tanto. As mãos cheias de bolhas e as costas doridas estão aí pra comprovar, mas, também nem faz tanta diferença, pois agora os negócios estão todos delegados e a presença física não é mais imprescindível…

Assim eles chegaram aos quarenta e cinco. Senhores de si, pararam e olharam pra trás. O mundo parecia conquistado. Sabiam tudo, podiam tudo e faziam o que bem lhes aprouvesse. Sim, fariam qualquer coisa que lhes desse prazer, se soubessem o que.

Durante anos se acostumaram à companhia um do outro, como uma parelha de bois que puxa a carroça, sabendo que ambos estão sob a mesma canga. Não havia necessidade de olhar ao lado pra ver se o companheiro estava lá. Ele sempre estava. Nem um, nem outro perceberam as mudanças. Continuavam acreditando que aquela pessoa ao lado ainda era exatamente a mesma de vinte e cinco anos antes. Mas não era.

Foi naquelas férias em casal que se deram conta de que não mais se conheciam. Sequer imaginavam como passar tempo livre juntos, que música ouvir ou que tipo de passeio fazer. Na volta da praia o silêncio se mantinha no carro. O calor parecia mais insuportável que o normal e uma parada no bom posto de abastecimento poderia oferecer o refresco necessário e a distração também. Estacionaram o carro.

Nem haviam fechado as portas do veículo quando um ruído de baixa freqüência se fez notar, transformando-se rapidamente no estrondoso ronco combinado de várias motos imensas, cheias de metal cromado e impressionante robustês, que se aproximavam em formação para estacionar. Era impossível deter a curiosidade e deixar de observar aquele espetáculo e seus protagonistas…

Os anos haviam sido gentis com eles. Seus rostos vibrantes e seus corpos enérgicos não demonstravam a longa estrada que trilharam até chegarem ali. Como eram admiráveis!

As motos iam se emparelhando transversalmente ao meio-fio ante o olhar atônito de muitos transeuntes, alguns dos quais, mais afoitos ousavam aproximar-se.

Nem bem silenciavam-se os motores, os ocupantes das extraordinárias máquinas apeavam, tiravam seus capacetes e começavam a se cumprimentar, falando alto e sem cerimônia, como numa festa de família italiana. Todos exibiam brasões ou insígnias bordados em suas jaquetas e coletes de couro que os identificavam como pertencentes do mesmo grupo. Não tardou e outro grupo de motos ruidosas se acomodou ao lado do primeiro, também vestidos em couro preto, porém com brasões diferentes bordados. Foram recebidos com cordialidade, mas não euforia e discretamente uns começavam a “inspecionar” as motos dos outros.

Havia muitos casais e logo as mulheres se agregavam num grupo tagarela e colorido enquanto os homens em outro, posudo e truculento, majoritariamente grisalho.

Qualquer um que se aproximasse e demonstrasse curiosidades, logo era amplamente instruído sobre detalhes técnicos e diferenças peculiares das motos, o que parecia ser um dos passatempos prediletos de todos ali. Capacidades volumétricas de motores e tanques de combustíveis, potência, sistemas de arrefecimento, suspensões, lubrificação, periodicidade de manutenção, possibilidades de alterações técnicas ou estéticas, condições de pilotagem e conforto, enfim, tudo era assunto a ser conhecido e debatido calorosamente.

Um terceiro grupo, formado por motos mais compactas e coloridas chegou. Seus motores soavam mais agressivos e estridentes. Não havia garupas. Acostaram-se mais distantes e foram ignorados. Também não mostraram interesse. Eram muito mais jovens e menos efusivos a ponto de sequer parecerem companheiros entre si. Era evidente que pertenciam a outra “tribo”

Alguns minutos mais e alguém sugeriu a partida, que logo começou a ser organizada. Parecia que os dois primeiros grupos haviam se fundido e resolvido participar da mesma viagem. Seguiriam juntos até uma pitoresca cidadezinha a alguns quilômetros dali, onde havia uma feira de artesanatos ou algo assim. As motos começaram a ser ligadas e quando todos sinalizaram positivamente o novo grupo formado saiu ordeira e ruidosamente rumo à alça de acesso da rodovia.

Juno e Marta, que já haviam tomado seu refresco, movidos sabe-se lá por o que, também não viram nada mais a fazer ali, senão seguir em frente. Pensaram que jamais tornariam a ver o tal grupo, pois aquelas máquinas pareciam muito potentes e estariam em velocidade muito superior àquela que eles mesmos pretendiam imprimir em sua volta ao lar. Mas não foi assim.

Poucos quilômetros à frente, inicia-se um lento processo de ultrapassagem daquelas belas motos cromadas que eram pilotadas alegre e distraidamente em velocidade tranqüila. O casal de dentro do carro pôde observar detalhadamente a conduta e o companheirismo do grupo, onde cada membro buscava proteger os demais, comunicando seus movimentos e mantendo a formação. Como pássaros migratórios escolhendo um abrigo seguro para o próximo pernoite, nada parecia importar-lhes senão aquele momento, aquele grupo, aquelas máquinas e aquele destino escolhido e para o qual seguiam seu líder. Foi inquietante imaginar que aquela sensação de liberdade poderia estar ao seu alcance como estava ao alcance daquele grupo que não parecia ser formado por pessoas tão diferentes deles mesmos. O que os distinguia . 

Marta sacou sua máquina fotográfica e começou a registrar tudo, surpresa de que os componentes do grupo, vaidosos, faziam pose e acenavam. Mesmo após ultrapassado o líder, Juno manteve uma velocidade que permitia observar as motos, até que numa saída da rodovia elas saíram. O casal sentiu-se um pouco abandonado ali.

Enquanto Juno imaginava quão caras poderia ser as Harley-Davidson fazendo lá suas contas, Marta devaneava com o prazer que seria pertencer àquele venturoso grupo.

Não se aperceberam, mas agora era apenas questão de tempo…

Caetano De Genaro Junior


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