Texto sobre viagem de moto até Ushuaia

Voando na tempestade – mais uma lição

A fim de extirpar o agravante emocional provocado pela sequência de situações semelhantes de intensidades progressivas a que fomos submetidos com as nossas 6 Ultras com garupas e bagagem sobre o tourpac, naquele início de novembro de 2016, quando transitávamos pelas grandes retas entre Buenos Aires, Santa Rosa, Neuquén e San Carlos de Bariloche, que exacerbou nossas impressões sobre as velocidades das motos e dos ventos, tenho procurado me amparar em dados e fatos para poder, além de respaldar a técnica de superação utilizada, avaliar a real dimensão do que aconteceu naqueles dias de viagem, até então, com destino a Ushuaia.

Para isso, conversei com os pilotos Sérgio Nemer (BMW), Walter Urtado (HD Road King) e Marcos Mello (VStrom), companheiros de Ushuaia em 2006, assim como com Romeu Béze & Patrícia (HD Ultra), Roberto Coré & Carminha (HD Ultra), Afonso Radelsberg & Carol (HD Ultra), Silas Nerdy (HD Ultra) e Elias Mello & Magnólia (HD Ultra), companheiros da Expedição Ushuaia 2016, a fim de confirmar as impressões de cada um e verificar se possuíam mais algumas informações precisas e relevantes, visando entender e racionalizar a importante lição vivida.

Retroagindo a 2006, quando fui a Ushuaia com os amigos citados, de acordo com as experiências vivenciadas por todos, para avançarmos com nossas motos contra o vento e as rajadas laterais, foi suficiente aumentarmos a velocidade até uns 120 km/h e apenas inclinar a moto contra o vento lateral, o que nos possibilitava manter as motos na nossa faixa de rolamento, sem grandes dificuldades. Na oportunidade, eu pilotava também uma Ultra e estávamos sem garupa e com pouca bagagem. A técnica utilizada por nós, que foi recomendada por alguns motoviajeros experientes, de acelerar para aliviar o esforço de inclinação contra o vento lateral se justificava cientificamente, pela resultante das forças que atuavam no movimento da motocicleta. Ou seja, com o aumento progressivo da velocidade da moto, a força longitudinal de resistência ao avanço crescia no para-brisa. Consequentemente, a soma vetorial da força crescente no para-brisa com a força do vento lateral, criava uma força resultante, que tendia da lateral cada vez mais para a frente da moto, como consequência do aumento da velocidade. Essa técnica possibilitava manter a moto menos inclinada nas grandes retas e era a mesma utilizada nas práticas náuticas, conforme comentado pelos velejadores Nemer e Ricardo Frishtack, que também participou da viagem em 2006.

Nesse episódio mais recente, na Patagônia, nos dois dias de viagem entre Buenos Aires, Santa Rosa e Neuquén, quando eu estava com a Cláudia na garupa, tivemos ventos e rajadas laterais bem fortes e percebemos que a técnica citada anteriormente não estava resultando na eficiência necessária. O problema era que a intensidade das rajadas de vento lateral era tão forte que a inclinação contra o vento pura e simples era muito difícil e não conseguíamos nos manter na nossa faixa de rolamento com facilidade. Então, resolvemos além de acelerar, contraesterçar, inclinando a moto contra o vento para responder com mais eficácia e rapidez ao impacto das fortes rajadas. E deu certo, pois o esforço de inclinar a moto contra as rajadas de vento foi minimizado com a manobra de contraesterço como acontece nas curvas, contra o efeito giroscópico, em alta velocidade.

Comparando essa última experiência com os ventos de 2006, concluí que todos os pilotos da Expedição Ushuaia 2016 já estavam habilitados a superar as rajadas de vento nos caminhos para Ushuaia. Fiquei feliz, orgulhoso e aliviado com a demonstração de excelente habilidade demonstrada no vento pelos meus amigos, pois até então não sabia como responderiam a esse desafio.

Porém, o auge progressivo da nossa experiência com o vento aconteceu no dia 3 de novembro e iniciou em um lugar após Villa Llanquin, cerca de 35 km antes de chegar a Bariloche, quando perdemos a proteção das montanhas, coladas a nossa direita, e começamos a perceber que o vento estava bem mais forte. Por volta das 15h, percorrendo a Ruta 237, adentramos um vale descampado, onde predomina o grande lago Nahuel Huapui, na direção sudeste, formando um imenso corredor afunilado entre montanhas; excelente para convergir as massas de ar em movimento e aumentar a sua velocidade.

Cerca de 3 km antes de atingir o través da margem do lago, atravessamos uma pequena ponte sobre o leito de um rio seco, quando o vento e as rajadas se mostravam bem mais fortes, e através da viseira percebi uma estranha nevoa branca, que cobria todo o horizonte, prenunciando algo de ruim, quando ouvi pelo rádio uma voz preocupada perguntando: “o que é aquilo?” Nossos olhos devem ter arregalado vendo as nuvens se movimentarem sobre a estrada, porque já estávamos dentro da pista de dança e não tinha mais como recusar o convite da dama da tempestade para dançar. Após uma curva suave à direita e na reta subsequente começou o Rock’n’Roll Heavy Metal, e o clímax do vendaval infernal aconteceu; as Ultras carregadas eram inclinadas pelos impactos das rajadas de vento mais intensas e forçadas a curvar para a faixa de mão contrária, quase atingindo o acostamento de terra batida. Então, comecei a gritar continuamente pelo rádio; “Acelera! Acelera! Contraesterça! Lutem! Lutem!”.

Rugindo como um louco para motivar a rapaziada a não arrefecer, simultaneamente lutava para tirar a minha Ultra da contramão e levar para a mão correta, conjugando a manobra de resposta às rajadas de vento com a ultrapassagem de um ou outro caminhão, que vinha na mão contrária. Além disso, para dificultar a nossa passagem, logo à frente estava o cruzamento 237 y 231 (Print Screen Google Maps), que tinha uma pequena “ilha de taxas” balizadoras do contorno, que rouba parte do espaço, já exíguo, no meio da estrada. O vento parecia querer nos arrancar das motos, fazendo com que as garupas se fundissem com os pilotos em um só corpo. O ruído ensurdecedor do vento enchia os capacetes e o tempo parecia uma eternidade. A sensação era a de que o vento parecia querer parar as motos, quando éramos obrigados a reduzir a marcha para continuar mantendo a máxima velocidade.

Após mais uns 3 km de luta insana e inacreditável para não irmos ou voltarmos da contra-mão, veio uma suave curva à direita, que penetra em uma área de grandes árvores junto ao rio Limay, que desemboca no lago Nahuel Huapui. Inacreditável, tinha conseguido superar o desafio mais difícil da minha vida de motociclista. Parei minha moto entre as árvores e em alguns segundos comecei a contagem de motos mais angustiante e difícil da minha vida, enquanto os amigos chegavam um a um. Estacionando suas motos, ao tirar os capacetes mostravam o assombro e a incredulidade na face. Um dos comentários que fizemos é que se alguém num carro tivesse filmado o voo das Ultras na tempestade, outra pessoa que não estava lá, mesmo vendo o filme, não acreditaria.

Um senhor que trabalhava em um restaurante rústico escondido entre as árvores trouxe água para bebermos e comentou que o vendaval atípico que estava acontecendo destelhou construções e derrubou postes, impedindo a comunicação com Bariloche.

No contato que o Romeu fez no posto policial local, a fim de conseguir um rádio para pedir 2 taxis para as nossas esposas, que já tinham demonstrado suficiente grande coragem e parceria durante a luta, lhe foi informado que se alguma moto tivesse caído, o socorro somente poderia ser enviado mais tarde, após a tempestade. Para se ter uma ideia de como as manobras das Ultras na luta com o vento foram radicais, uma delas chegou a raspar o suporte de ferro que é fixo no chassis, onde é articulada a pedaleira dianteira (foto).

A primeira conclusão sobre a técnica de aumentar a velocidade da moto é que, além de forçar a resultante das forças a migrar da lateral para o para-brisa, possibilitando que a moto avance na estrada reta de maneira menos inclinada, o aumento da velocidade também intensifica o efeito giroscópico sobre os eixos das rodas das motos, mais determinantemente, sendo utilizado para resistir ao fortíssimo impacto do vento lateral e das rajadas de vento. Ou seja, conforme divulgado em muitos sites sobre ciências físicas, o efeito giroscópico atua imobilizando a posição do eixo de uma roda que gira, com uma força de estabilização proporcional ao raio da roda e à sua velocidade de rotação. Assim, quanto maior a velocidade da moto, mais difícil é inclinar os eixos das rodas, ou o garfo, ou a própria motocicleta. Por isso, utilizando uma mesma curva, fazendo-se várias passagens e aumentando-se progressivamente a velocidade a cada passagem, chega-se a um limite ou batente de velocidade tal que é impossível fazer a curva apenas inclinando a motocicleta. E como é explicado nos módulos de pilotagem defensiva avançada, realizados na Rio HD, a solução para atenuar essa força que impede a manutenção do traçado da curva é o contraesterço.

Com a mesma finalidade de atenuar a força estabilizadora que atua nos eixos das rodas da moto, a fim de fazer a curva em alta velocidade, a técnica do contraesterço foi utilizada para reagir à força de impacto instantâneo das rajadas de vento, possibilitando a manutenção da faixa de rolamento correta ou o retorno das motos da faixa de mão contrária, para onde foram forçadas, para a faixa correta de tráfego. Assim, podemos concluir que a velocidade indicada para a moto evoluir no vento deve ser aquela que seja suficiente para desinclinar a moto na reta e atenuar o impacto das rajadas de vento, possibilitando que a moto seja mantida na mão correta da estrada.

Um detalhe muito importante, que foi observado pelo Silas, é que a sua Ultra não chegou a ser empurrada pelas rajadas de vento para a contramão porque estava sem garupa e bagagem sobre o tourpac. Ou seja, estava com menor área de arrasto ou resistência ao vento. Por isso, mesmo inclinado e contraesterçando na reta, ele conseguia se manter na faixa correta de rolagem.

Quanto aos módulos precisos da velocidade do vento e da velocidade das rajadas de vento, os registros que temos do site Windguru, que passamos a acompanhar durante a viagem, mostram apenas uma estimativa do que poderia ocorrer com o clima e os ventos em termos de direção e velocidade e não os dados precisos do que aconteceu de fato. Assim, vou me valer da internacional Escala de Beaufort, que estabelece padrões para a velocidade do vento com base em seus efeitos provocados sobre a superfície da terra: levando-se em conta que os ventos destelharam prédios, arrancaram postes e fizeram uma Ultra (+/-700 kg) deitar sobre o suporte de ferro da pedaleira para não ser empurrada para fora da estrada, os ventos estavam na Escala, entre 9 e 10, que equivale a ventos com velocidade entre 81 e 95 km/h.

Assim, convertemos “o limão em limonada” ao abandonarmos o rumo convulsionado de Ushuaia, a partir de Esquel, e retornado por San Martim de Los Andes, Puerto Varas, Pucon, Santiago, Cordilheira dos Andes, Mendoza e Buenos Aires, concluindo uma memorável viagem em excelente companhia. Porém, em meu coração ficou um resquício de lamento por não ter tido tempo para esperar a tempestade passar e poder ter participado do IX Encuentro Internacional de Moto Viajeros em el Fin del Mundo (Agrupación Latitud 54 Sur), que ocorre em novembro. Sem dúvida, em um próximo novembro estarei lá.


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