Ignace

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A jornada deste segundo dia de estradas canadenses era de 927 km. Levantei cedo. No café do hotel, aquelas máquinas que deixam a gente constrangido de mexer. Você quer apenas umas salsichas quentes, mas deve abrir um compartimento na parte de cima de uma maquineta,
aí ela vai rolando numas esteiras e depois de um tempo, com sorte, sai grelhada lá na parte de baixo. Outras pessoas podem fazer fila atrás de você, e é chato quando isso demora. Há um sistema especial para pegar cereais, tem a máquina do leite, a do café, a de suco, uma geladeirinha com vários tipos de embalagem. As garrafinhas de leite parecem de agrotóxico. Tudo bem diferente. As frutas não dá vontade de comer, pois são maçãs verdes e bananas nanicas verdolengas, de cascas perfeitas que parecem de plástico. Se quiser panquecas então, boa sorte! As massas já estão separadas em copinhos de isopor, e você tem que por isso também numa máquina! Aí gruda tudo, faz aquela meleca, e você tenta fazer cara de brisa passando o maior carão perante os demais hóspedes. Eu tentava observar o que os outros faziam, mas muitos deles também se atrapalhavam. Em resumo, dada a ansiedade de cada partida, as dificuldades com esse nível de automatização e a comida não muito convidativa, preferia pegar pouca coisa, o mais simples e óbvio.

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Nos demais dias, enquanto estive por Canadá e Estados Unidos, a alimentação era sempre difícil. Não tinha fome de comer esse tal “breakfast”, de ovos, bacons, salsichas, tudo que costumamos comer no almoço, nem vontade de tomar o café ralo mas enorme. Nas demais refeições, principalmente nas estradas, só tinha fast-food. Eram sanduíches prontos, para esquentar no micro-ondas, bolachas, chocolate, refrigerantes, sucos artificiais ou isotônicos. À noite o cardápio quase sempre levava batata frita. No Canadá, acredito que por um hábito importado dos ingleses, um prato muito apreciado é o fish and chips. É peixe empanado frito e batatas fritas. Tudo frito. Às vezes vêm umas ervilhas em conserva para acompanhar. Vegetables! Ora, um horror.

O Tim Hortons é uma parada comum. Como se fosse um Mc Donald’s dos cafés. Também não me apetecia. Sempre tinha pimenta.

Com essa alimentação apimentada e sem fibras, em pouco tempo a gente começa a sentir uma ardência quando vai ao banheiro, sendo que o produto obtido não guarda mais qualquer forma definida. Assim foi por muitos dias. Dava medo de ficar doente com essa alimentação precária.

Uma coisa que tinha muito, em toda parada, era o chocolate Kit-kat. Isso eu adorava. Quando não tinha vontade de comer nada, comia esse chocolate com um copão daquele “chafé”, e aí saía renovado, torcendo para encontrar um bom restaurante no meu destino final do dia.

Bem, mas voltando a Ignace, naquele dia eu saí para um longo trecho beirando o Lago Superior. Como sabem, o Lago Superior junto com mais outros quatro lagos são o que chamamos de Grandes Lagos, divididos entre Canadá e Estados Unidos. São eles: Superior, Michigan, Huron, Eriê e Ontário. Suas águas vão ao Atlântico através do Rio São Lourenço, que, por sinal, foi a porta de entrada de colonizadores europeus, interessados sobretudo no comércio de peles de animais. Eu tinha passado pelo Huron no dia anterior, para Sault Ste. Marie, e agora passaria por todo o Superior até as proximidades de Thunder Bay, onde começaria a me afastar dos lagos no sentido para Ignace, sempre pela Trans-Canadá.

Em vários trechos se avista o Lago Superior que, surpreendentemente, não me pareceu tão bonito. Estava numa névoa, muito cinzento. Tinha algo de melancólico, ou de um filme de terror. Chovia bastante neste dia também. Entretanto, o Canadá é um país de lagos, e praticamente todos dão fotos de cartão postal, como pude perceber nos dias que se seguiram.

Essa região dos Grandes Lagos é uma área densamente habitada para os padrões do Canadá, concentrando 40% da população. Até Ignace eu estaria sempre rodando dentro do Estado de Ontário, que, das dez províncias canadenses, é a mais populosa.

Portanto, nesses dias pude ver um tráfego até bastante intenso, com caminhões também. Nada que pudesse ser comparado ao Brasil, entretanto. O Canadá é o segundo maior país do mundo em extensão territorial, perdendo apenas para a Rússia, mas tem apenas 34 milhões de habitantes, a grande maioria situada em estreita faixa junto à fronteira com os Estados Unidos. De tal maneira que, seguramente, à medida que me afastasse em direção a noroeste, muita diferença eu perceberia.

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Depois de Thunder Bay, faltavam apenas 247 km para Ignace. Mais distante dos Lagos, o tempo foi mudando para melhor. Há um clima muito particular próximo daquela imensidão de água doce, de modo que, ao me afastar, peguei tempo seco e firme.

Sempre na Trans-Canadá (Rota 17), a paisagem passou a incluir coníferas e rios caudalosos, sob uma claridade intensa do sol de verão naquela latitude, até que, com uma luminosidade de fim de tarde, cheguei à minúscula Ignace.

Nada mais que umas casas, hoteizinhos e comércio em poucas quadras pegadas à estrada. A cidade tem em torno de 1.200 habitantes. É tudo muito simples, mas não há pobreza. Tampouco o fato de ser cortada pela Trans-Canadá produz algum tipo de conturbação visível no ritmo da cidade. Acho que é porque o tráfego na estrada é realmente pequeno.

Acontece que os canadenses fizeram uma ferrovia, que é a Canadian Pacific Railway, e que corta todo o país de leste a oeste. Construída a partir de 1881, tem 22.500 km de trilhos, ligando Montreal, no leste, a Vancouver, já no Oceano Pacífico. Portanto, a maior parte da carga a ser transportada vai por ferrovia, deixando a principal rodovia do país, aquela em que eu vinha dirigindo, com um tráfego bastante modesto e, como conseqüência, bastante seguro também.

Não sou de ficar escolhendo muito hotel, e, ao avistar um motelzinho com uma cara simpática, resolvi que seria este para aquela noite. É que tinha também uma Ténéré parada na frente de um dos quartos e isto me atraiu. Era o Westwood Motel.

Logo ao parar a moto um senhor saiu do quarto situado em frente à Super Ténéré 1200 cc estacionada e puxou conversa. Muitas perguntas sobre a minha viagem. Ficou admirado de saber que eu era brasileiro e que estava vindo desde São Paulo com a moto. De fato, a partir desse segundo dia, já cruzando terras bem menos habitadas, a moto e a viagem chamavam bastante a atenção. Quando ele me deixou respirar, eu perguntei se ele era o dono do motel e qual era seu nome. Era o Steve (63), e ele era hóspede recém-chegado, vindo de Yellowknife, nos Territórios de Noroeste, mais ou menos perto de onde eu iria passar dali a alguns dias.

Foi logo me convidando para jantar e tirou algumas fotos de mim com a moto. Muito simpático, me deixou até constrangido. Não estou acostumado a fazer sucesso assim e, depois que acostumo a ficar sozinho, me sinto confortável no meu invólucro invisível, principalmente após 1.000 km dirigindo, quando estou bem cansado para forçar a cabeça a buscar palavras e frases em inglês. Neste caso, ele não me deixava alternativa. Só pedi para que me desse um tempo de concentrar nas minhas coisas, rearrumar as malas, tomar um banho e trocar de roupa. Eu precisava urgente de uma cerveja, como sempre.

A pé, encontramos um restaurante bem próximo. Era, aliás, do mesmo dono do motel. Não tinha cerveja, mas pedi um sanduíche e o Steve, como bom canadense, comeu com gosto um bem servido prato de fish and chips. Conversamos sobre viagens e família, sobre as motos, ele me mostrou seu roteiro num mapa do Noroeste do Canadá e Alaska, que depois me fez de presente, e ainda o tenho aqui comigo. A viagem dele era “só” por Canadá e EUA, 13.000 km, e incluía visitar o filho em Edmonton, na província de Alberta, Canadá, bem como encontrar lá sua esposa, que tinha ido de avião e dali ir para Yellowknife, nos Territórios de Noroeste, vizinhos do Yukon, que era minha rota. A leste desses assim chamados Territórios fica o território de Nunavut. São alguns dos lugares habitados pelas Primeiras Nações, os povos indígenas de lá. O Steve já estava voltando. Mais poucos dias e estaria em sua Halifax, na Nova Escócia, bem a leste. Estávamos, pois, àquela altura, na mesma rota, mas em sentidos opostos, eu indo e ele já regressando, o que de certa maneira me pareceu uma metáfora das nossas vidas.

Terminado o jantar, desta vez eu o convidei para a cerveja. Fomos ao Ignace Tavern, o único lugar aberto que vendia cerveja, e estava vazio. Sentamos e pedimos Bud(weiser) Light, bem comum lá. O Steve me contou que tinha sido piloto de avião a serviço do governo canadense, embora não fosse militar, e que recentemente se aposentara. Eu disse a ele que o meu trabalho, na área jurídica, era bem menos interessante. Mas ele falou que já estava cansado de ser piloto, e que não tinha nada demais ficar indo e voltando, subindo e descendo, sempre as mesmas rotas. É, parece que a felicidade está sempre mais longe um pouco mesmo … Se até um piloto de avião acha seu trabalho aborrecido, eu vou dizer do meu então o seguinte: … Ah, deixa pra lá.

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Nisso chegaram uns caras bêbados, com umas garotas, para jogar bilhar. Cismaram com a nossa cara e se aproximaram convidando para o jogo. Eu fiquei desconfiado, achando que poderia haver confusão. A turma fazia barulho e tinham grande desenvoltura ali, que pelo visto era o lugar deles. O Steve falou pra não se preocupar, que no Canadá não tinha isso não. Um dos caras se apresentou, e era o Andrew. Gente boa. Queria saber de nós, de onde éramos, das motos, e logo acabou sabendo que eu vinha de moto do Brasil e estava em direção ao Alaska. Meu Deus! O cara enlouqueceu. Um monte de perguntas e começaram a me tratar como celebridade. Já estávamos todos animados pela bebida, eles principalmente, e foi bem engraçado. Eu tinha me tornado “o cara”. Queriam fazer uma foto nossa com eles em posição de me reverenciar. Vê se pode. Mas era tudo na maior brincadeira. Eu não deixei, claro. No final, o cara anotou para mim o e-mail dele e escreveu uma mensagem assim, bem espontânea, de um bêbado camarada:

“Keep your jorney’s sacred to yourself, cause in the end that’s who they matter most to. Good luck”.

Acho que quer dizer: “Mantenha sua jornada sagrada para você, porque no final é pra você que ela mais importa. Boa sorte”.

Estava certo. Era um grande momento para mim mesmo.

Fui dormir feliz, com mais muitos milhares de quilômetros à frente, sonhando com o Alaska.

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