Deadhorse – Fairbanks – 51º dia

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América do Norte, Alaska, USA

Deadhorse – Fairbanks (Parcial = 844 Km / Total = 24.012 Km)

Preocupado com o clima, acordei à meia-noite para ver o céu; estava coberto de nuvens pesadas e o dia não tinha anoitecido; continuava claro como o fim do entardecer. Aqui é a terra do Sol da Meia-Noite e é verão (frio pra caraca!).

 

Levantei às 06:00 h e mesmo com a fartura de comida no refeitório do hotel, não comi nada. Estava preocupado com o que eu teria de enfrentar com o meu pneu traseiro quase careca, que eu deveria ter trocado em Fairbanks.

 

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Arrumei na Electra a pouca bagagem e às 07:00 h o TwinCan rugiu grave e infalível no North Slope Borough, a região mais extrema do Alaska, junto ao Ártico.

Com toda roupa de frio disponível no corpo e capa de chuva por cima, lentamente, soltei a embreagem. Em Deadhorse, o motociclista já parte sobre a brita – que é o piso das ruas – para esquentar. Entro na Dalton Highway e continua a brita na estrada até perder de vista. Mais a frente, o piso é algo parecido com saibro e lá descendo a elevação – surpresa! – é uma Patrol na estrada, que vem alisando a terra. Está sozinha porque a chuva fez as vezes do caminhão. Acho que esqueceram de avisar ao cara que hoje é domingo.

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Mais a frente, entro em um forte nevoeiro e logo depois, vem o sol. Infelizmente, a parte sul do horizonte – o meu destino – estava coberta de nuvens. Próximo a cidade de Deadhorse e o campo de Prudhoe Bay, a estrada corta a paisagem constituída por uma planície coberta de vegetação bem verde e rasteira; a tundra do ártico.

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Depois de 100 km de retas e raras curvas, começam a surgir pequenos montes, quebrando a monotonia da paisagem. Surgem pisos melhores e a velocidade já chega a cem por hora. A estrada vai serpenteando por entre, subindo e descendo montes e no horizonte, dominando a cena, começa a crescer imponte a Brooks Range Mountains, que novamente vou atravessar. A estrada ruma para as montanhas e o visual vai ficando cada vez mais impressionante.

Passam-se o tempo e os quilômetros e as montanhas já estão em ambos os lados; estava entrando no Antigun Pass.

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No ápice da passagem, resolvi parar para fazer um desjejum especial: água e um chocolate Snickers, em um lugar de sonhos. Emocionado com a beleza soberba da paisagem da Terra, no topo da passagem e mais perto do céu fiz a minha oração de agradecimento a Deus por tudo estar transcorrendo bem na viagem. Pois a solidão já tinha resolvido cumprimentando os raros motoristas. Porém, o medo de uma pane ou uma queda na lama continuavam comigo; nem tanto pelo frio ou a demora do socorro, mas principalmente pelos ursos, porque eu estava invadindo o seu território. Por isso, pedia ao Grande Arquiteto do Universo uma proteção especial. Contemplando as escarpas milenares, me perguntava qual é o limite entre a loucura e a coragem. Concluí que eu estava transitando no limiar entre uma e outra, porque se ocorresse uma queda ou uma pane, teria que contar com muita sorte para me safar. Ainda não era totalmente loucura, porque para alcançar qualquer descoberta é essencial se ariscar. Inclusive, sobre nós mesmos. Creio que esse espírito é inerente a todo motociclista estradeiro, porque curte mais as emoções de andar com o corpo exposto ao tempo, sobre duas rodas, do que viajar com o conforto de estar mais protegido de tudo, isolado dentro de um carro, navio, ou avião.

Satisfeito com o argumento que justificava a minha sanidade, tirei umas fotos, subi na Harley e segui no rumo austral. Até ali, tudo tranquilo, pois os diferentes “pisos” de estrada, mesmo molhados, já não me impressionam mais. Para pilotar uma Harley, nestas condições de estrada, mais do que a técnica, o importante é a predisposição mental: antecipação, concentração e paciência. Antecipação para identificar a melhor trilha no piso irregular; concentração para não sair da trilha nem um milímetro; e paciência para esperar a estrada melhorar. Putz! Haja paciência.

Às 12:30 h, cheguei a Coldfoot para abastecer, usando a gasolina dos galões de reserva, pois nas melhores oportunidades, mantive um ritmo mais intenso do que na ida.

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Pedi no restaurante a sopa de salmão, recomendada pelos irmãos de Santa Catarina, que estiveram por estas bandas no ano passado. Como não tinha, achei uma delícia a temperatura da sopa de frango.

Quando estava me preparando para partir, chega uma KTM e ficamos conversando um pouco sobre as condições da estrada. O novo amigo americano Ryan Jones sonha um dia viajar de moto a Ushuaia e pretende passar pelo Rio de Janeiro. Como a Big Trail (KTM) anda mais que a Custom (Harley), nesse tipo de estrada, não o esperei abastecer, me despedi e segui em frente.

Assim que parti de Cooldfoot, começou a chover na estrada, que já estava molhada. Não tinha importância por que o pavimento estava bom. Mas um pouco a frente viria o que eu já esperava; barro. Muito tempo no barro. Depois de uma elevação a estrada se transformou. Reduzi rapidamente a velocidade e entrei no barro com marcha mais alta e bem devagar, 20 a 30 hm/h, a fim de minimizar a tração. As acelerações eram mínimas tanto para avançar, reduzir e fazer curva, que geralmente procurava retificar, visando derrapar menos, lateralmente. Frenagem, nem pensar.

O tempo passava lentamente e o barro parecia que nunca iria acabar. Para piorar, vez por outra surgiam subidas e descidas íngremes, que o meu pneu traseiro superava creio que apenas pela intensidade da minha fé. Em algumas situações, devia ter um anjo de asas fortes mantendo a Harley em pé, porque era certo eu cair. Para amenizar o estresse, sonhava com a minha parada em Yukon River Camp para abastecer, drenar o xixi e comer algo quente, 200 km após Deadhorse.

A chuva dá uma folga e surge uma placa discreta informando que eu já iria parar. Ufa! Venci mais uma etapa. Faltam apenas mais 200 km; 100 para terminar a Dalton Hwy e os 100 finais são asfaltados até Fairbanks. Não consegui frear até a entrada, mas entrei na saída de Yukon River Camp e estanquei, decepcionado. Para chegar a bomba e ao restaurante o lamaçal estava mais melado e profundo do que na estrada; intransitável para uma H-D, mesmo auxiliada pelo meu amigo alado. Como ainda tinha gasolina nos galões de reserva, fui lutando para conseguir me equilibrar e voltar a estrada para seguir em frente para Fairbanks. O barro começou a secar e as trilhas de pneus ficaram mais seguras.

Segui mais tranquilo, quando numa grande reta percebi algo estranho que se mexia, parado na beira da estrada. Seguia devagar, a uns 40 km/h e logo já deu para perceber a coisa me olhando: era um urso adulto negro. Enquanto pensava em como reagir, não fiz nada. A Harley foi de aproximando e o bicho continuava a me olhar. Nem me mexia na moto e quando passei na frente dele, saltou assustado para trás e entrou na mata. Se eu pudesse, também saltaria para a frente e continuei algum tempo sem me mexer. Ainda bem que ele ouviu o som do meu motor, desde longe. Se ele se assustasse, repentinamente, a reação poderia não ser a mesma.

Continuei sob um céu nublado, variando o piso entre barro mais sólido e lama. Por fim, cheguei ao final do barro e do Loose Gravel. Ufa! Que felicidade. Tinha sobrevivido a Daltom Highway, com uma Electra Glide e sem cair nenhuma vez.

Parei a moto estrategicamente e tirei uma foto daquela encruzilhada. Com certeza a experiência equivaleu a um doutorado sobre pilotar, em terreno irregular, uma H-D.

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Já extremamente cansado, parei para comer alguma coisa na loja Wildwood General Store do John, que vende lembranças do Círculo Polar Ártico. Ele comentou que se lembrava de uns brasileiros que passaram por lá no ano passado e me mostrou o adesivo da Expedição Alaska do PHD Chico afixado em uma tora de madeira, onde constavam outras recordações. Também falou que, normalmente, os ursos não apresentam perigo, são até amistoso e se aproximam apenas para ver se conseguem algo para comer. Olhei para ele e disse, brincando, que isso já era o suficiente para eu me afastar. Rimos bastante, nos despedimos e peguei a estrada.

Cheguei a Fairbanks, às 21:45 h e fui direto para o lava-a-jato automático para tirar o excesso de lama da Harley e da minha capa de chuva. Enquanto aspergia água na Harley, lembrei-me do Ryan Jones que também vinha para Fairbanks e não me passou na estrada. Espero que tenha resolvido ficar em Coldfoot. Naquela hora, tudo o que eu queria na vida; era apenas descansar.

 

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