Nos percebemos verdadeiramente apaixonados por motos quando nos damos conta de que elas fazem parte de praticamente todos nossos planos. Vejamos: se pensamos em dar uma simples voltinha pra espairecer, tal voltinha será planejada para ser executada em cima da moto; se o plano for um passeio mais elaborado, com mais tempo e maiores distâncias, já pensamos em lavar, abastecer e calibrar os pneus da motoca; quando vamos renovar ou aumentar o guarda roupa, com certeza constará em nossa lista de necessidades, vestuários para andar de moto. E por aí vai.
Eu tinha como uma das metas para 2019, realizar uma comunicação de artigo científico em evento internacional em uma Universidade e, para tanto, me esforcei em produzir o material e submetê-lo a avaliação do evento pretendido, no caso, o XIII Congresso de Linguagens, realizado pela Universidade Federal do Acre, na cidade de Rio Branco, capital daquele estado. Tendo o trabalho sido aceito, passei ao planejamento da viagem de minha cidade, Porto Velho, capital do estado de Rondônia, até a capital acreana.
Sendo entusiasta do motociclismo, como pré-anunciei no primeiro parágrafo e, certamente, como o faz todo aquele que, como eu, é louco por motos, planejei a concretização da meta estabelecida realizando o deslocamento entre as duas cidades de moto. E assim fiz.
Dias antes a ansiedade já me corroía. Fiz agendamento antecipado em hotel de Rio Branco – nem era preciso, estamos em baixa temporada e teríamos vagas sobrando – troquei o óleo e o filtro da motoca com duas semanas de antecedência, instalei os alforjes, separei capa de chuva, comprei um acento em gel para garantir o conforto da patroa – cuja companhia não abro mão nessas viagens – e depois de tudo pronto, “convidei-a” a seguir comigo até o Acre, ao que de pronto obtive um entusiasmado, “bora”. Acredito que minha esposa goste de nossas desconfortáveis viagens de moto, já pensei que ela possa o fazer só pra me agradar, mas prefiro acreditar que ela goste disso tanto quanto eu. Pensar assim me faz feliz.
Na véspera estava tudo pronto, as crianças já estavam comodamente aos cuidados da vovó, que torcia para que o dia da partida amanhecesse chovendo para que nós mudássemos os planos e fôssemos de carro – minha mãe não gosta que eu ande de moto, ela acha perigoso – e parecia que suas preces seriam atendidas, a noite foi de muita chuva. Mas às 5h da manhã o tempo havia limpado como que por encanto. Partimos.
Rápida passagem no posto de confiança, só pra verificar a calibragem dos pneus e colocar mais uns ml da gasolina de preferência e seguimos em direção à BR-364 sentido Acre. A BR 364 é a única ligação por terra para o estado do Acre, e a principal ligação de Rondônia com o restante do país. Digo a principal porque, teoricamente, os rondonienses poderiam fazê-lo via BR-319 para ligação com o Amazonas e BR-230, o que tornaria possível a conexão por terra com o restante do país. Todavia, é necessário enfatizar que a BR-319 só tem asfalto até a cidade amazonense de Humaitá e a BR-230 é a famosa Transamazônica, o que dispensa maiores comentários. Assim sendo, a BR-364 acaba por ser o único elo por terra com o restante do país.
Dez minutos depois já estávamos na rodovia federal. O vento frio da madrugada e o barulho do vento me provocaram os primeiros risos de alegria dentro do capacete, era a sensação da pura felicidade. Creio que você que me lê agora já tenha sentido algo semelhante.
Os sentidos se aguçam: os cheiros da floresta amazônica ainda úmida me faziam respirar melhor; a visão focada na estrada, mas sem perder os detalhes da bela paisagem da qual quem viaja de moto faz parte; a audição captava perfeitamente o som do motor em V saindo pelo escapamento semiaberto, o vento que soprava na velocidade de 120 km/h e a coletânea de rock clássico possível pelos fones de ouvido ligados ao celular. Não posso esquecer do sentido da pele, o tato, que me permitia sentir o vento frio, que era extremamente agradável e sobretudo o aconchego do abraço da esposa. Os sentidos humanos não poderiam me fazer mais confortável do que aquele momento.
À nossa esquerda começamos a perceber os primeiros raios solares daquela mágica manhã. A aurora amazônica na rodovia é majestosa, recomendo a experiência. O amanhecer na planície amazônica é uma mistura de aromas e sensações sem igual, nossas retas imensas nos provocam o desejo de enrolar os cabos, o que a moderação não nos permite. A neblina ora surge, ora se desfaz tornando a paisagem cinematográfica e isso nos faz perder a noção do tempo. E antes que me desse conta já havia rodado 100 km e estávamos no distrito de Jaci-Paraná, onde tomamos café da manhã – saltenha assada com café com leite -, reabastecemos – a Shadow fez 15,5 km/l – e tornamos à estrada.
Os clássicos do rock me faziam cantar sozinho dentro do capacete e, novamente sem me dar conta, já havia rodado outros 100 km e já estávamos na lanchonete Castelinho, ponto de referência para quem se desloca para Rio Branco ou para Guajará-Mirim, o município mais antigo de Rondônia, cuja ida até lá de moto, me rendeu o texto No traçado dos trilhos da Madeira-Mamoré.
No Castelinho, fizemos nossa segunda parada, dessa vez para água, banheiro e mais fotos e vídeos que imortalizam o momento.
A partir daí nem tudo foi alegria. A rodovia daquele ponto em diante está em total abandono, buracos são a regra e cada um maior e mais profundo que o outro. Parece que foram produzidos para se superarem mutuamente. Eis que em um deles sofri meu primeiro impacto, doeu até a alma sentir a moto bater com violência naquela maldita cratera, produto da ineficácia do poder público. Bem verdade que se deu por certa imprudência minha, que me preparava para ultrapassar uma carreta e me aproximei demais dela, momento em que vejo surgir entre seus pneus o miserável buraco do qual não tive como escapar. A dó da moto se misturava com a preocupação de ter provocado um dano mais grave a ela, que se mesclava com a raiva por ter cometido a estupidez de me aproximar tanto da carreta, que se juntava à vontade de tirar os fones do ouvido e me livrar do rock que até então me era tão agradável. Parei no acostamento.
No mix de sentimentos que descrevi acima, fui parando e tirando o capacete que trouxe consigo os óculos e os fones, o que só me aperreou ainda mais a paciência, provocando uma vontade de xingar. Mas a quem? O DNIT? O Buraco? A carreta? A mim mesmo? Me ver naquele lugar e lembrar que estava concretizando duas metas, me acalmou, perguntei à patroa se estava tudo bem, me recompus e vistoriei a moto. Percebi que a placa havia se soltado, coisa que corrigi rapidamente e logo estávamos novamente na estrada, desviando com mais cautela dos buracos que se aumentavam aos milhares.
Poucos quilômetros mais adiante, com a moral já restabelecida, percebia a diminuição dos buracos, o pior deve ter passado – inferi – me senti confiante para voltar acelerar um pouco mais, ultrapasso a carreta do evento do buraco, mais uma e na terceira a confiança me trai e no momento da ultrapassagem acerto outro buraco, esse provocado pela tentativa de manutenção, aqueles buracos quadrados que servem para recortar o buraco provocado pelo desgaste, só que aquele que fatidicamente acertei deve ter sido feito na hora do almoço dos responsáveis pela manutenção, só pode ter sido isso para que eles o deixassem aberto. Novamente reacendem todos os sentimentos do primeiro buraco, ando desconsolado por mais uns dois quilômetros e novamente paro e vistorio a moto. A placa solta novamente, só que dessa vez quando fui coloca-la pela segunda vez no lugar percebi a falta do alforje do lado esquerdo. Sem demora faço retorno em busca de encontrar o alforje que continha minhas roupas para passar os três dias fora de casa. Logo me veio à cabeça ter que fazer a comunicação na UFAC com as roupas com que estava vestido. Imaginei a gafe de me reportar ante à academia sujo e descomposto, o que não me provocaria incômodo na rodovia.
Percorro mais 500 metros e vejo um veículo vermelho a sinalizar com os faróis e o passageiro acenar com as mãos para que eu parasse, imediatamente intuo que aquelas “almas abençoadas” encontraram meu alforje e o devolveriam a mim. Encostamos e corro até o carro, com um sorriso no rosto motorista assevera: “Eu sei o que você tá procurando”, ao que respondo com sorrisos e agradecimentos aliviados, porém ao vistoriar o alforje percebo que suas tiras de sustentação haviam arrebentado com o impacto, o que impossibilitaria recoloca-lo no lugar. Sem demora os ocupantes do carro se oferecem para leva-lo até Rio Branco. Novamente agradeço e me vejo aliviado. Seguimos em direção ao rio Madeira, onde faríamos a travessia por uma balsa.
Minutos mais tarde, já chegando a Abunã, um distrito de Porto Velho, novamente as crateras surgem e ali você deve escolher em qual delas cair. Escolho a menor e sinto uma pancada mais seca do que o normal. Paro novamente e inspeciono a moto. Percebo a placa novamente fora do lugar e, ao recoloca-la pela terceira vez, vejo as mãos sujas de óleo, aflição! Imediatamente inspeciono o cárter, mas me tranquilizo ao constata-lo intacto. Verifico o cardã, não consigo ter certeza que venha dali o óleo. Caso fosse, a viagem estaria cancelada. Decido ir até o único posto de combustível de Abunã, reabasteço, peço ao frentista que me permita lavar a área suja de óleo para tentar identificar o local do vazamento, momento em que vejo que o óleo saia pelo amortecedor esquerdo. Tinha estourado com as pancadas nos buracos. Triste com o prejuízo que não estava nos planos, mas mais tranquilo por saber que poderia seguir viagem, sigo em frente.
A fila de carretas para embarcar na balsa me permite ainda fazê-lo primeiro que o carro das pessoas que levavam meu alforje. Motos não precisam enfrentar a fila. Paguei cinco reais pela travessia e embarquei. Já na balsa, nossa linda moto chama a atenção das pessoas que ali se encontravam, o que se reforça por nossas roupas a caráter e sobretudo por não ser tão comum encontrar motociclistas fazendo aquela viagem, me sinto meio celebridade ante a tantos olhares.
Durante a travessia sobre o rio Madeira, contemplamos a ponte que está sendo construída e logo não será mais necessário o uso da balsa. A ponte está quase concluída faltam apenas suas cabeceiras e a inauguração está prevista para janeiro de 2020. Enquanto fazemos as fotos, vêm até nós as pessoas que traziam nosso alforje, que admirados, nos perguntam de onde somos, e por que fazemos a viagem de moto. Mesmo que nós, apaixonados por motos, nos esforcemos por explicar, aqueles que não partilham da mesma paixão não entenderão. Mas já estamos acostumados com as expressões de reprovação que nos avaliam como loucos.
Concluída a travessia, novamente saímos na frente de carros e carretas, mas desta vez com a atenção redobrada. A velocidade variando entre 60 e 80 km/h, somos rapidamente ultrapassados por nossos socorristas, que ao fazê-lo, acenam alegremente com a promessa de nos encontrarmos mais a diante.
Vinte minutos depois, estávamos a 50 km do distrito mais próximo, Extrema. O asfalto era bom. De repente, sinto a moto pesar na subida, não tive dúvidas, pneu furado, encosto e penso em minha mãe tentando me dissuadir da tal “loucura”. Não é bom não seguir conselho de mãe, pensei. Eram apenas dez e meia da manhã, mas o sol brilhava como se fosse meio dia. A primeira ação que me ocorre é encostar a moto em uma sombra para depois buscar ajuda, divido a ideia com a esposa, que comtempla o horizonte e indaga onde encontraríamos tal sombra. Constato que até perder de vista só tínhamos pastos ao longo da rodovia. Em meio à floresta amazônica, ironicamente não haveria uma única árvore pelos próximos 50 km.
Meio desalentado pela observação da esposa, tento não desanimar e começo a empurrar a moto, ao que constato não ser possível. São 245 kg, fora a barragem. Ligo o motor, engato a primeira e vou seguindo como posso, seguido pela companheira que não demonstra abatimento e se mostra firme.
Passados não mais que três minutos, vejo ao longe uma camionete parar no acostamento. De início penso que seja algum fazendeiro que parou para verificar a cerca ou algo assim, mas percebo que a camionete vem de marcha à ré ao meu encontro, e a dez metros de mim desembarcam o motorista e mais dois homens, o motorista, de forma espirituosa, brinca: “acho que oceis tão precisano de ajuda aí” ao que concordo com um sorriso meio amarelo esboçado só por educação.
São mais três anjos colocados em nosso caminho. Se oferecem para colocar a moto na caçamba da camionete e levar até Extrema. Inicialmente fico temeroso, receio que a moto caia, momento em que me é informado que tem corda para amarra-la e transportá-la em segurança. Nós quatro colocamos a moto na camionete e seguimos até Extrema, precisamente 46 km à frente. Os tais anjos nos levaram a uma oficina de motos, afinal não é qualquer borracheiro que tira a roda traseira da Shadow por conta do cardã. O primeiro mecânico afirma não conseguir tal façanha. Fomos a outra oficina, onde o proprietário e único mecânico é um paulista que veio parar ali durante a construção da usina hidroelétrica de Girau. Casou e acabou ficando por lá. Ele me confidenciou que nunca havia trabalhado em uma Shadow, mas como era mecânico, daria um jeito. Eu o orientei e a missão foi concluída com sucesso. O mecânico paulista ficou mais feliz do que eu ao retirar a roda. Ele alardeava aos curiosos que ali se aproximaram para ver a moto e aquelas pessoas vestidas de preto com jaqueta de couro naquele calor, que o outro mecânico, seu concorrente, não conseguira realizar a proeza que acabara de fazer. Seu sorriso era contagiante. Ao lado da oficina tem uma borracharia que pertence a um boliviano que fez o remendo tão logo a energia elétrica voltou.
Almoçamos em Extrema, restaurante de madeira à beira da BR, frequentado por trabalhadores rurais de todo ofício e caminhoneiros, servia comida caseira em meio a um silêncio sepulcral. Quando ali entramos, todos os olhares se voltaram para nós. Ficamos pouco à vontade com a situação que nos lembrou aqueles filmes de terror, onde viajantes entram em bares cujos frequentadores ou são xenófobos assassinos que não toleram forasteiros ou vampiros sedentos por sangue novo. Terminamos rapidamente a refeição e pegamos a estrada às 14 horas.
Foi colocarmos o pneu dianteiro na estrada e o céu começou a desabar virado em água, chuva reservada para o final de semana inteiro, resolveu cair naquele momento. Aí juntou-se o medo dos buracos com a pouca visibilidade. O certo seria parar em um lugar abrigado, justamente o que não existia por ali. Assim seguimos, a 30 km/h até chegar a Nova Califórnia, outro distrito de Porto Velho.
Nessa pegada de desmotivação provocada pela chuva, pelo pneu furado, pelo alforje arrebentado e o amortecedor estourado, seguimos até a divisa entre Rondônia e Acre. Eis que, ao avistarmos o posto de controle entre os dois estados, a chuva que ainda se precipitava sobre nós no lado rondoniense, esmaecia por completo no lado acreano e pudemos avistar ao longe céu azul e ensolarado. Se a imagem que a entrada no restaurante em Extrema nos remetia a filmes de terror, a entrada no estado do Acre nos fez lembrar filmes de tormentas marítimas cujo o final é de superação, onde o protagonista é sempre brindado com um a amistoso e furtivo céu claro e feliz.
Assim entramos em terras de Plácido de Castro. A diferença positiva não ficou apenas no tempo atmosférico, a rodovia ali estava em bem melhor estado de conservação e a manutenção estava a todo vapor naquele momento. Consegui reimprimir a velocidade de 110 km/h e logo nos vimos cruzando a ponte sobre o rio Acre, entrando no centro da cidade de Rio Branco onde nos hospedamos no mesmo hotel onde estivemos há dois anos, lugar muito bom e de preço honesto, diga-se de passagem, que foi o melhor café da manhã que já comi em hotéis, talvez seja pela deliciosa baixaria que servem, um prato típico acreano.
Chegando ao hotel, a reserva já estava confirmada. Subimos ao quarto e fiz contato telefônico com as pessoas que trouxeram meu alforje, que rapidamente fizeram a gentileza de levar até o hotel. Fiz mais uma vez os devidos agradecimentos e, quando sugeri uma recompensa, fui avidamente repreendido pelos novos amigos acreanos, que afirmaram terem-me feito o favor pelo fato de “vivermos no mesmo mundo”, ainda recebi essa aula grátis.
Banho tomado e roupa trocada, apesar do cansaço e dores pelo corpo, concordamos em ir à UFAC para fazer o credenciamento no evento. Aventamos a possibilidade de fazê-lo acionando um carro por aplicativo, mas nos auto repreendemos, afinal que tipo de motoviajante seriamos nós? Fomos na Shadow suja mesmo.
No caminho até a UFAC a beleza e limpeza da cidade nos surpreendia. Próximo à universidade, uma rotatória nos chamava a atenção pela beleza das flores multicoloridas. Chegando ao campus e qual foi nossa surpresa: a entrada era simplesmente a mais bela que já havia visto, margeada por um lago lindo. O portal de entrada era muito bem iluminado e ornamentado por um telão de Led que dava informações. Dentro do campus não era diferente. A arquitetura era padronizada e ornava com a vegetação, tudo realçado pela iluminação multicolorida que tornava tudo ainda mais lindo. Fizemos o credenciamento no evento, assistimos o início da primeira palestra, mas a fome e o cansaço não nos permitiram ficar até o fim, por isso saímos para comer algo. Chegamos ao restaurante universitário, onde mais uma vez ficamos admirados: o prédio de dois andares, com fachada de vidro e climatizado, possuía escada, rampa e elevador, além de uma mega sala de estar com banheiros limpos. O restaurante comporta 500 pessoas e, pasmem, a refeição custa ao estudante R$ 1,00 e para a comunidade R$ 10,00. E não é regrado não, self serviçe com direito a fruta e suco natural. Jantamos, descansamos alguns minutos na sala de estar e depois seguimos para o hotel. No caminho de volta ao hotel, confirmamos aquele que inferimos na ida, ou seja, os motociclistas de Rio Branco não são adeptos a fazer corredor, eles se mantêm atrás dos veículos, pasmei.
Após uma bela noite de sono, acordamos com as forças devidamente restauradas, tomamos o maravilhoso café da manhã ali servido, exageramos na baixaria e seguimos à UFAC. No período da manhã assistimos à algumas comunicações e depois fomos turistar pelo lindo campus. Aquilo que achamos belo durante a noite se realçou com a luz do dia. Fomos até o lago que é margeado por um gramado bem cuidado e devidamente visitado por acadêmicos e turistas. No gramado do lago, pastavam tranquilamente algumas capivaras, que, para nosso espanto, não se incomodavam com a presença de pessoas e, sobretudo, de um jacaré que jiboiava na beira do lago. Isso mesmo, caro leitor, capivaras, jacarés e pessoas conviviam perfeitamente!
No almoço, mais uma vez aproveitamos a refeição do restaurante universitário e seguimos para a minha comunicação. Devidamente ansioso, iniciei minha apresentação com os cumprimentos de praxe às autoridades intelectuais presentes, mas deixei por último os cumprimentos a minha esposa por ter me acompanhado nessa aventura, ao que obtivemos sonoros aplausos, bem maiores inclusive, do que os que obtive pela apresentação do trabalho. Creio que a média com a patroa ficou garantida.
Já era noite quando nos despedimos da UFAC, retornamos ao hotel para descansar e dar um trato no visual para curtimos um pouco da noite de Rio Branco. Como estávamos hospedados no centro da cidade, decidimos ir a pé até a Gameleira, que é um ponto turístico à margem do rio Acre, que fora totalmente revitalizado. O lugar manteve a arquitetura da época áurea da borracha, o que dá um charme ao local. Além disso, tem uma passarela espraiada que liga as margens do rio Acre, possibilitando uma refrescante caminhada por sobre o rio. Ali jantamos. Na verdade, fomos petiscando alguns pratos dos quais destaco a saltenha com jambú e o tacacá, pratos tipicamente amazônicos. Saciados, retornamos ao hotel passando por duas praças, pelo museu, memorial dos autonomistas e pela biblioteca estadual que funciona até tarde da noite, inclusive nos finais de semana.
Na manhã seguinte tomamos o café acompanhados de algumas amigas, que também foram ao evento e estavam hospedadas no mesmo hotel. Pedimos a elas que trouxessem o lado do alforje que havia arrebentado, o que não teve rejeição. Nos despedimos e pegamos a BR sentido Porto Velho.
Como havíamos abastecido na noite anterior, somente completamos o tanque na saída do Acre, coisa de vinte quilômetros antes do posto de controle entre os dois estados. Depois somente reabasteceríamos em Nova Califórnia, último distrito portovelhense, na famosa Ponta do Abunã. Naquele distrito, novamente fomos alvo de olhares curiosos por conta do estilo da moto e das roupas. Todos os presentes no posto de gasolina durante o reabastecimento nos olhavam e conversavam entre si. De início esse comportamento nos deixava encabulados, mas com o tempo passamos a nos divertir com a situação.
Passando por Extrema, o distrito onde fizemos o remendo do pneu na ida ao Acre, ficamos de passar na oficina do paulista que sacou a roda traseira da Shadow e na borracharia do boliviano que fez o remendo, mas a ansiedade por retornar ao lar e abraçar os filhos não nos permitiu fazer essa parada. Continuamos viagem. Dali uns trinta quilômetros, consegui avistar uma única árvore à margem da rodovia, fiz questão de parar à sua sombra para registrar a solitária árvore que havia sido poupada pela pecuária. Ali também fiz o registro em vídeo explicando minha tristeza pela devastação indiscriminada da floresta e aproveitamos para esticar as pernas e nos hidratar.
Já era quase meio dia quando chegamos à balsa para fazer a travessia de volta por sobre o rio Madeira. Antes de seguir em direção à bilheteria, fiz o registro fotográfico das obras de conclusão da cabeceira à margem esquerda do rio Madeira. Já na balsa, percebemos movimentação atípica. O condutor da embarcação teve que esperar em meio ao rio até que a balsa na outra margem estivesse cheia para então poder sair do ancoradouro e pudéssemos atracar para fazer o desembarque. Esperamos por quarenta minutos. Saindo da balsa novamente, nos deparamos com as crateras que tanta raiva nos fizeram na vinda. Nada havia sido feito, o poder público em Rondônia ainda jazia em sua letargia de sempre. Agora mais experientes, não tivemos o infortúnio de acertar nem mais um buraco, todavia a velocidade média era de 50 km/h.
Coisa de 100 quilômetros à frente, enquanto nos deleitávamos com a paisagem do rio Igarapé – isso mesmo, o nome do igarapé é Igarapé, é o que consta na placa – não percebi o desnível entre a rodovia e a ponte sobre o Igarapé, e a pancada foi grande. Tivemos os corpos projetados para cima e ao retornar à moto a pancada nas costas foi bem incômoda. Novamente a rotina que nos habituamos na vinda, a placa sai do lugar e tenho que parar para recolocá-la. Desta vez, quando minha mulher desceu da moto, o alforje que até então havia resistido bravamente, também se soltou, desespero! De imediato imaginamos ter que levar o alforje nos braços pelos 150 km que ainda restavam até em casa.
Por sorte havia levado alguns enforca gato que me possibilitaram bancar o Magaiver e sanar a pane com os meios de fortuna que tínhamos às mãos. Placa e alforje no lugar, retornamos à BR. Minha mulher visivelmente cansada e eu com o coração partido, com dó da moto.
Trinta quilômetros de Jaci-Paraná vejo ascender a luz da reserva. Não comento com a esposa para não deixa-la aflita, pois com a fome e o cansaço que estávamos, imaginar ficar sem gasolina, debaixo do sol escaldante que fazia seria um abalo aos ânimos. Reduzi a velocidade e mantive a fé que seria possível chegar a Jaci. Chegamos. Almoçamos no mesmo restaurante que havíamos tomado café da manhã no primeiro dia de viagem. Comida ruim e cara, mas como a fome era grande… Abasteci e a moto pegou 14 litros, dos 14,5 possíveis, não tive pane seca por meio litro.
De jaci a Porto Velho, tudo muito sereno, não houve grande entusiasmo, a paisagem já nos é comum e o percurso conhecido, só a velocidade é que aumentou um pouco mais e em coisa de uma hora estávamos em casa, ao descer da moto e olhar a vizinhança senti-me envaidecido. Pensei comigo: quantos dali já haviam feito o que nós acabamos de concluir? Essa sensação nos encorajou a planejar outras aventuras, maiores que esta que tanta experiência e satisfação nos trouxe e, certamente, quando também as concluir, mais um texto será escrito.
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