No traçado dos trilhos da Madeira-Mamoré

Recém iniciado no mundo do motociclismo, tenho tentado no menor espaço de tempo realizar as aventuras que embalaram meus sonhos de biker. A ideia outrora juvenil era possuir uma moto custom e com ela me aventurar com a mulher amada os longínquos destinos amazônicos.

Mais de dez anos separam o sonho do início de sua realização. A Honda Shadow 750 Spirit foi adquirida há um ano e, de lá pra cá, possibilitou realizar algumas curtas viagens pelas terras de Rondon.

A mais recente foi a viagem até a chamada “Pérola do Mamoré”, cidade de Guajará-Mirim, a 328 km da capital rondoniense, Porto Velho, onde resido. O planejamento foi relativamente rápido, apenas duas semanas antes do deslocamento, pra permitir conciliar agenda e convidar alguns poucos amigos motociclistas para comprar conosco a aventura. Maior que o planejamento é a mobilização do pessoal: sempre tem os motoqueiros de WhatsApp, né?

Pois bem, tudo combinado, os mais entusiasmados toparam a aventura e convenceram suas esposas a se unirem a nós. No sábado, dia 14 de abril de 2018, às 6h da manhã, nos reunimos no antigo trevo do Roque, na cidade de Porto Velho, hoje é o entroncamento da BR-364 com BR-319. Chovia desde às 5h, mas isso em nada nos desanimou, afinal por estas bandas do país chove um dia sim e o outro também.

Iniciamos a tão sonhada viagem. Sempre nutri a vontade de percorrer a BR-364 no histórico traçado dos trilhos da Madeira-Mamoré. Dos trilhos pouco restou, mas a rica história da ferrovia do Diabo, impulsionada pelos tempos áureos da exploração da borracha na Amazônia sempre me encantaram e continuarão a encantar.

Estávamos em 7 motocicletas, todas customs e acompanhados de nossas respectivas esposas e namoradas. Pra mim, foi um momento de realização.

O deslocamento pela BR-364 sentido Rio Branco (AC) foi todo de alegria e companheirismo. A estrada se encontra em perfeitas condições, diferentemente do que se percebia há pouco mais de quatro anos, quando sofremos com a histórica cheia dos rios Mamoré e Madeira. A cidade de Guajará Mirim e o estado do Acre ficaram isolados do restante do Brasil, haja vista que a única passagem por terra para esses lugares é a rodovia federal BR-364. Até a década de 1990 as condições da estrada eram ainda piores. Ouvem-se relatos de que se levava até um dia inteiro para percorrer os 328 km que separam essas importantes cidades rondonienses.

Desta vez não, a rodovia foi nosso “céu de brigadeiro” os primeiros 100 km até o distrito de Jaci-Paraná, foram percorridos em pouco mais de uma hora. Tomamos café da manhã em um tradicional ponto de encontro de motociclistas, um restaurante simples dentro de um posto de combustíveis. Sem atrativos, é bem verdade, mas serve como destino durante os “Bate Volta” que muitos motociclistas porto-velhenses fazem aos finais de semana.

O entusiasmo nos fez fazer ali nosso primeiro check de viagem. Reabastecer para calcular quantos km por litro é praxe: minha moto até me surpreendeu, fez 20 km/l. Acredito ser uma média boa, afinal, dificilmente passamos dos 110 km/h, tudo muito controlado e seguro, e não poderia ser diferente, a cada esticada recebia um leve beliscão da patroa, advertindo que a velocidade era demasiada. Tudo dentro da normalidade.

Devidamente abastecidos, as máquinas e o corpo, prosseguimos viagem. A estrada continuava uma maravilha. A chuva havia há muito nos abandonado. Era o cenário perfeito para os registros fotográficos e filmagens que não podem faltar nesses momentos. O primeiro local de fotografia é, sem dúvida, a ponte sobre o rio Jaci. Nessa época do ano o rio ainda está cheio e ver a antiga ponte por onde a Maria Fumaça percorria os trilhos da EFMM é extremamente emocionante, sobretudo praqueles que, como eu, amam nossa terra e sua história.

De Jaci-Paraná até o núcleo urbano mais próximo são 17 km. Trata-se da localidade Nova Mutum, vila construída pelo consórcio das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. Lugar pequeno, mas muito agradável, sua construção fora planejada e, consequentemente, percebe-se ali uma maior organização do que em outras cidades bem maiores de Rondônia. Passamos ao largo da cidade. Desta vez não paramos porque seria a motivação para um próximo passeio, então seguimos viagem.

56 km à frente paramos para contemplar a beleza do imponente Rio Madeira. Da margem da rodovia visualizamos a ilha de Mutum-Paraná. Ali percebemos a presença de dragas que ainda exploram ouro na região. Fizemos o registro fotográfico e a beleza do local aumenta nossa vontade de seguir sempre mais a dentro da floresta Amazônica.

O próximo ponto é o famoso restaurante Amarelinho. Distante 34 km do ponto anterior, é parada obrigatória pra quem se desloca até GM City (apelido sofisticado que batizei Guajará-Mirim) ou Rio Branco (AC), mais fotos. E tome foto…. A equipe se hidrata, confabula sobre as belezas de nossa valiosa Amazônia e seguimos viagem.

Dali mais 3,7 km chegamos ao trevo entre a BR-365 e BR-425, os viajantes que optarem por se dirigir às terras acreanas devem continuar reto na BR-364. Como nosso destino é a Pérola do Mamoré, pegamos a esquerda. Até meados de 2016 a BR-425 era a imagem da superfície lunar na Terra: mais crateras, impossível. Agora é diferente, não encontramos nenhum buraco pra contar a história. Pela BR-425 foram mais 130 km até chegarmos ao nosso destino final, a bela e histórica GM City.

Durante maior parte do trajeto pela BR-425 contemplamos à nossa direita o caudaloso rio Mamoré, que serve como linha limítrofe entre o Brasil e a Bolívia. Em sua margem direita estamos nós, brasileiros. Mais à frente nos deparamos com a ponte sobre o igarapé Araras. Essa ponte ainda é a mesma sobre a qual passavam as locomotivas com seus vagões carregados de pelas de borracha.

Do trevo ao local onde reabastecemos, são 38 km. O posto de combustível está localizado na localidade de Araras, curiosamente ponto de encontro de cachorros. Nunca vi tantos cães em um posto de gasolina.

A segunda maior cidade da BR-425 é Nova Mamoré, a 43 km de Araras. Cidade pequena, mantida com atividade madeireira e pecuária, não apresenta atrativos turísticos, mas sua entrada é bem organizada e conta com 6 postos de gasolina, todos ao longo da rodovia. Haja concorrência.

Nosso destino está a 48 km da pequena Nova Mamoré. Chegamos a GM City às 11h40min. Levemente doloridos e cansados, mas só alegria nos olhares. Pra mim, era o momento auge de minha vida motoqueira. Eu sei que pra muitos, 328 km é bem ali, mas pra mim, que estou na primeira moto e com tão pouca experiência, foi o ápice. Até hoje, claro.

Nada de descanso! Paramos no famoso restaurante Periquito, na entrada da cidade, e nos deliciamos com o prato chefe da casa, a carne de sol na chapa. Depois de abastecidos, fomos recepcionados por alguns motociclistas da cidade que, ao nos verem em grupo, não se fizeram de rogados e nos acolheram como verdadeiros amigos e irmãos de estradas, inclusive nos indicaram a pousada Alpha, que pertence a um motociclista da cidade, onde nos hospedamos.

Devidamente alojados e com banho tomado, nada de descanso. Nos dirigimos até o porto, onde fizemos travessia até La banda, como se referem nossos patrícios do lado de lá da fronteira. Pagamos $8 temers para realizar a travessia entre Brasil e Bolívia pelo rio Mamoré nas famosas voadeiras¸ como são conhecidas essas embarcações por aqui.

Já em terras bolivianas, começamos a turistar. Não era a primeira vez de nenhum de nós em Guayara-Mirim, situada no Departamento do Beni, na Bolívia, mas aquela foi a primeira vez que chegamos ali em cima de nossas máquinas prediletas e isso nos causou um sentimento diferente, nunca percebido nas visitas anteriores. As esposas e namoradas se empolgaram com os preços dos produtos importados, livres das pesadas cargas tributárias brasileiras. Tudo muito atrativo e algumas extrapolaram nas compras. Mas tá valendo, afinal nós fomos de moto.

A macharada preferiu ficar esperando as aguerridas companheiras de aventura estradeira na mesa do bar boliviano, apreciando a cerveja que, em minha humilde opinião de apreciador, é a melhor do mundo. Trata-se da famosa e deliciosa Paceña. Pesquise aí no Google e coloque no seu menu de bebidas premiuns a serem degustadas.

Na travessia de volta, apesar de levemente borracho, porque a abençoada da Paceña tem teor alcoólico próprio pra bebedor raiz, tivemos condições de fazermos cálculos matemáticos e fazer câmbio na beira do rio. Comprando Peso boliviano só gastamos $5 temers na travessia de volta.

Novamente em terras guajaramirenses, estávamos a imagem da felicidade. Logicamente, parte dessa alegria toda era proveniente da Paceña, mas certamente a maior parte se devia ao fato de sabermos que chegamos naquela cidade história conduzindo nossas amadas motocas. É quase uma tradição rondoniense ao retornar da Bolívia se dirigir o turista a um famoso importador de perfumes e assim fizemos. Ainda sob efeito do álcool boliviano, fiz questão de presentear minha esposa, Dona Marilene, com um Carolina Herrera 212 Vip Rose. Decorei o nome do perfume porque depois que passou o efeito da Paceña percebi o tamanho da extravagância. Tô pagando até hoje.

No final da tarde, separados do grupo que decidiu voltar ao hotel para descansar, eu e Marilene fomos até a catedral Nossa Senhora do Seringueiro. Igreja antiga, mas muitíssimo bem conservada, sua história se confunde com a de Guajará-Mirim. Decorada de forma temática, a catedral com seus adornos relata o período de colonização e povoamento de GM city, que se deu pela exploração do látex da seringueira. O mundo motociclista é tão encantador que nos proporciona momentos únicos. Na catedral, fomos abordados por uma senhora, Dona Cláudia, que vendo minha linda Shadow, veio até nós e se apresentou como irmã de motociclista, disse que seu irmão tem uma moto igual à minha e, pra minha surpresa, quando ela revelou o apelido do tal irmão, de imediato lembrei que o conhecia. Somos mesmo uma irmandade.

Retornamos ao hotel. De lá, novamente em grupo, fomos ao Restaurante Pit Stop, pertencente ao famoso PQD, presidente do moto grupo da cidade, onde fomos recebidos como celebridades. O proprietário fez registro fotográfico e nos presenteou com um troféu de seu último evento de aniversário do moto grupo. O cardápio que optamos foi a tradicional salteña boliviana, um salgado com recheio de batata e frango, muito apreciado no norte do país. O som era ao vivo, o melhor rock acústico que já ouvi na vida.

Depois de sabe-se lá quantas salteñas e o mesmo número de cervejas, apesar do maravilhoso rock, o cansaço finalmente se abateu sobre os entusiasmados motoqueiros. Passava da meia noite quando retornamos ao hotel para o merecido descanso.

No domingo, após o farto café da manhã, o plano era subir a Serra dos Parecis, mas fomos informados de que a estrada que conduzia até lá estava interditada. Foi a única frustração da aventura. Isso fez com que decidíssemos adiantar nosso retorno a PVH.

A volta foi a mesma tranquilidade da ida. Almoçamos no mesmo restaurante em que tomamos café da manhã na vinda, em Jaci-Paraná. Às 15h já estávamos em casa.

O cansaço estava estampado em nossos rostos, mas não escondia em absoluto nossa alegria. A sensação de sonho realizado e dever cumprido permanece até hoje, e o desejo por novas aventuras só aumentou. Até o próximo.


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