Estou em Apiaí, na barriga da Serpente, quando recebo a mensagem do amigo Karl Berger perguntando: ‘Ivan, você não vai escrever um poema sobre a viagem’? Foi o incentivo que faltava. Bem, Karl, não chega a ser um poema, apenas algumas escrevinhanças para jamais esquecer as experiências vividas, e para inspirar os amigos motociclistas, como você.
Levanto bem cedo de manhã, aferrado à ideia de dar a partida precisamente às 6h e iniciar a jornada de 900 km que separam Apiaí (SP) da minha casa em Nova Lima (MG). Romero e Ariane, companheiros de estrada de longa data, surgem paramentados em suas capas de chuva; eu ainda resisto, mas não por muito tempo. A chuva torrencial começa no exato momento em que minha roda dianteira toca a rua. O céu parece particularmente irado, mais escuro que a noite, anunciando que não daria trégua. A neblina densa exige cautela redobrada, enquanto os pingos onipotentes penetram as minúsculas frestas do capacete.
Lembro de Tehom, rainha das águas, como se estivesse a dizer ‘Quem são esses que ousam me desafiar’? Lembro que Jeová voou sobre as asas do vento montado em um querubim, se lançou contra as rajadas de granizo, raios e trovoadas, e despedaçou a cabeça (ou melhor, as cabeças) do monstro marinho Leviatã, uma espécie de comparsa de Tehom. Nós seguimos montados em querubins mecânicos, determinados a vencer o nosso Leviatã.1
Afinal, estamos no Rastro da Serpente, 260 km de curvas intermináveis, desenhadas entre o norte do Paraná e o sul de São Paulo. Alguém contou, são 1.200 curvas e algumas poucas retas. Às vezes parece que a serpente conseguiu dar um nó em si mesma, outras vezes parece ter mordido o próprio rabo. Percorrer o Rastro da Serpente é alucinante e apaixonante, não só pelo desenho da estrada, mas pelo belo visual do Vale do Ribeira, tão exuberante que foi declarado Patrimônio Natural da Humanidade em 1999.
Para chegar ao Rastro da Serpente demos uma ‘pequena’ volta, passando por Bonito (MS), Foz do Iguaçu (PR), Derrubadas (RS) e Urubici (SC). Ao todo foram 5.300 km em 9 dias, mas confesso que o ideal seriam mais 9, para poder aproveitar um pouco mais. Vamos voltar o relógio e dar uma espiada em alguns desses destinos.
Se Tehom nos recebeu com tamanha sanha, o Corvo Branco nos presenteou com um dia lindo. Na verdade, o Corvo Branco não é um corvo, mas o urubu-rei, ave de plumagem branca e cabeça colorida, sendo saprófaga se encarrega da limpeza da serra que leva o seu nome. A estrada estreita e sinuosa é talhada em arenito e no basalto que se formou do resfriamento de lava incandescente há 160 milhões de anos. A garganta, com seus paredões de 90 m de altura, é apenas o cartão de visitas para o deslumbrante visual que se descortina. Infelizmente é difícil ver um urubu-rei na região hoje em dia, eles são cada vez mais raros.
Urubici fica no Planalto Serrano Catarinense, a região mais fria do Brasil, é uma cidadezinha charmosa e aconchegante. É dela o recorde de temperatura negativa do país, fácil entender porque a Serra Catarinense ganhou a alcunha de Caminhos da Neve. Há exatos 5 anos cruzamos pela não menos icônica Serra do Rio do Rastro, que fica no extremo oposto do Parque Nacional de São Joaquim.
Em Derrubadas, nos apressamos para conhecer o Salto do Yucumã. O que dizer, senão que é algo sem igual, que nos deixou extasiados. A maior queda d’agua longitudinal do mundo, diz a placa logo à entrada. O Yucumã é uma garganta entalhada nas rochas, com 1,8 km de extensão e 110 metros de profundidade, que faz com que as águas do rio Uruguai ganhem uma viveza especial. Pena que seja tão pouco conhecido, ao contrário das Cataratas do Iguaçu, que atrai multidões com sua forma de ferradura e uma megaestrutura turística.
Em Foz do Iguaçu aproveitamos para fazer compras de ‘itens essencias’ para moto aventura em Ciudad del Este. Mesmo com o dólar nas alturas os preços ainda são bastante convidativos. Nada convidativo foi o dono da loja, um brasileiro chamado Mário, que fez questão de dizer que não era meu ‘amigo’, mas que ainda assim faria um ‘desconto’.
De Bonito devo dizer que é realmente um paraíso na terra, seus rios provavelmente são os que mais se assemelham aos rios do mitológico Jardim do Éden. Inesquecível flutuar nas águas cristalinas dos rios Olho D’água e Prata, ao sabor da correnteza, em companhia de piraputangas, dourados, curimbatás, piaus, e outras espécies de peixes do Pantanal. As Araras-vermelhas oferecem um show à parte, são cerca de 120 que vivem ou frequentam o Buraco das Araras, uma das maiores dolinas do mundo. Nesse trecho contamos com a agradável companhia do Flávio e do recém-chegado Marcus.
A viagem ao Sul termina aqui, ou melhor, em Apiaí. Agora me dirijo ao Nordeste, onde encontro algumas maravilhas do sertão. A viagem, na verdade, ocorreu semanas antes, um passeio solo para me despedir da moto que me levou por terras longínquas nos últimos 4 anos. Comecei por Alto Paraiso de Goiás (GO), depois Carolina (MA), então Teresina e São Raimundo Nonato (PI). Foram 5.300 km em 10 dias, coincidência ou não.
As Chapadas brasileiras são altiplanos encontrados principalmente nas regiões Nordeste e Centro Oeste do país, são terras elevadas, planas, de grandes dimensões, que abrigam belas formações, cavernas, muita água e ricos biomas como o cerrado e a caatinga. Na Chapada dos Veadeiros, difícil é escolher por onde começar, tantas são as opções. Acabo por escolher a Trilha dos Saltos, que leva ao cartão postal do Parque, os incríveis Saltos de 80 e 120 metros. O resto de ‘perna’ que tinha é consumido na Trilha dos Cânions, 23 km de caminhada ao todo, ufa!
Chego em Carolina cheio de expectativa para conhecer a Chapada das Mesas, e logo me dou conta de que ela é absolutamente surpreendente. Não é tão famosa quanto a dos Veadeiros, ou a Chapada Diamantina (BA), mas é de tirar o fôlego. Me sinto um verdadeiro deus, servido de um banquete celestial, ao derredor estão centenas de mesas gigantescas esculpidas em arenito vermelho, em meio a florestas de buritizais, cânions, cavernas e cachoeiras de águas cristalinas. Ali bem perto está o majestoso rio Tocantins.
Saio bem cedo para conhecer o complexo da Pedra Caída, onde fica a Cachoeira do Santuário, que deixa o viageiro mesmerizado com sua aura divina. Vale beber um gole da Fonte da Juventude, vai que funciona! Para encerrar o dia, nada como uma foto clássica na Pedra Furada, o cartão postal da Chapada das Mesas.
Deixo Carolina já com o dia avançado, planejando rodar cerca de 400 km até Barra do Corda, para chegar em Teresina no dia seguinte, onde tinha programado uma troca de pneu. Mas no meio do caminho tinha uma pedra, ou melhor um buraco, que quase me custou a viagem. Entusiasmado com o tapete era a BR-226 até então, e já caindo a noite, não me dei conta da cratera que surgiu de repente à minha frente, logo depois de um lugarejo chamado Sabonete. Dali para frente começa a reserva dos índios Guajajaras, me disse uma boa alma, que me ajudou a amenizar a situação das rodas. A traseira perdeu 15 raios, a dianteira menos. Dali para frente era só buraco, aparentemente a estrada não fora recuperada por desentendimento com os índios. Consegui fazer um reparo suficiente para rodar cerca de 10 km até Alto Brasil, dali para Teresina foi de caminhão. Felizmente encontrei os raios para comprar na BMW de Teresina, encontrei também Conrado, que salvou minha pele com sua bem-montada oficina, foi graças a ele que consegui seguir viagem.
Aproveitei o fim de semana sem moto em Paranaíba; em seguida o reencontro com a moto e a chegada à Serra da Capivara em São Raimundo Nonato, uma verdadeira joia encravada em meio à exuberante caatinga, parte de um gigantesco corredor ecológico. Há muito que queria conhecer esse belíssimo lugar e seus sítios arqueológicos impressionantes, são mais de mil deles, repletos de vestígios do homem pré-histórico. As datações revelam que são os mais antigos do continente americano. Por um instante sou arrebatado no presente, sou um pequeno desenho entre as inscrições rupestres enigmáticas.
Voltarei, com certeza, muito ficou por conhecer.
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