Patagônia de vento em popa

Nossa tão sonhada viagem pela Patagônia está chegando ao fim. Estamos voltando pra casa. Já percorremos 8 mil quilômetros desde que partimos rumo ao Ushuaia, temos ainda 5 mil pela frente, até a garagem de casa.

Rumo ao norte pela Ruta 40, vamos deixando a Patagônia pra trás, experiências inesquecíveis que ficarão na memória para sempre.

A paisagem vai se modificando, o relevo muda trazendo curvas, que há bom tempo não víamos. A temperatura sobe, o amarelo dá lugar ao verde e o vento já parece mais sossegado.

A Patagônia é mesmo surpreendente, em especial para quem viaja de moto, sem a proteção de uma couraça de aço.

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São muitos os motivos que tornam essa experiência única. Poderia falar por horas da natureza exuberante, da emoção de alcançar o extremo sul do continente (de moto!), ou do companheirismo e amizade, mas quero falar do vento. Ele é a marca registrada da Patagônia. Famosos e temíveis ventos.

São os ventos que fazem da Ruta 3 e da sua irmã Ruta 40 estradas míticas. Ambas cortam a Argentina de norte a sul, a primeira pela costa e a segunda pelo interior, com trechos magníficos aos pés dos Andes. A primeira está em ótimo estado, já a segunda tem trechos precários, sem falar dos 70 km de rípio que têm feito muitas vítimas entre os motociclistas.

Alguns o chamam de ‘monstro da Patagônia’, outros simplesmente de ‘assustador’. Fato é que o vento não dá trégua, salvo quando assim deseja. Com velocidade média de 25 km/h e rajadas de até 200 km/h, eles são mesmo um grande desafio para o motociclista. Mudam de direção e intensidade ao seu bel prazer, fazendo a moto dançar na pista. Malevolente, aplica bofetadas certeiras, ganchos de esquerda seguidos de violentos diretos de direita, como que tentando arrancar o capacete do motociclista. Haja pescoço pra suportar.

Viagem de moto patagonia ushuaia

Pilotar na Patagônia é uma questão de resistência, mas também de Física. É preciso dominar a arte de pilotar com a moto inclinada, como em uma curva infinita. A inclinação é o próprio vento que determina, ele é o senhor por aqui. É assim que outra força da natureza, a gravidade, ajuda o motociclista a estabilizar a direção. Inclinação certa e precisa, nem mais nem menos, e voilá, tem-se o perfeito equilíbrio de forças. Até que o vento mude.

O vento também tem seu lado magnânimo, ele se encarrega de ensinar os truques ao piloto.

O vento lateral é o mais perigoso e também o mais comum nessa região, onde sopra preferencialmente de oeste para leste. Então não importa por onde você rode, ele estará sempre te empurrando.

Controlar a velocidade é fundamental, o desgaste do piloto aumenta muito com a velocidade. Nessas circunstâncias a moto faz esforço monumental para vencer o arraste aerodinâmico, ela protesta por mais gasolina, segue rugindo como um leão, chega a dobrar o consumo, mas a fabulosa R1200GS não se faz de rogada.

Quando você pensa que o vento cessou aí é que ele vem com mais força ainda, é preciso seguir, tentando manter a direção e ansiando por um posto YPF onde encontrar gasolina de qualidade (a essa altura o tanque estará seco), um bom café e deliciosas medialunas. Abrigados do vento, temos a impressão que o vencemos. Ledo engano. Ele apenas foi magnânimo mais uma vez ao nos permitir alcançar um objetivo.

Viagem de moto patagonia ushuaia

Os ventos frios e secos moldam a paisagem da Patagônia. Trazem umidade do Pacífico, que precipita na forma de neve quando se choca com a parede dos Andes. Em El Calafate neva 300 dias por ano, nos disse a guia que nos apresentou o glaciar Perito Moreno, diga-se, de tirar o fôlego. É essa neve que alimenta os glaciares, ela nos ensina. Bendito o vento!
É ainda a abrasão do vento que produz minúsculas partículas de poeira que deixam a água dos lagos com uma linda coloração azul turquesa. Graças ao vento!

Que dizer das planícies patagônicas, tão vastas que se pode prever o tempo. São assim totalmente expostas aos ventos, que não encontram obstáculo, mas campo aberto para desenhar caprichosamente a paisagem por onde passa.

Deixa em seu rastro uma terra árida, onde vicejam pequenos arbustos que, agitados, produzem uma frutinha saborosa chamada calafate. Os guanacos são as únicas testemunhas em centenas de quilômetros da arte e do caos produzidos pelo vento.

Vento no rosto é sinônimo de liberdade, mas o vento patagônico ignora tal conceito. Por aqui ele é senhor absoluto e para deixar isso bem claro faz troça, como se fôssemos marionetes. Ao motociclista resta bailar ao sabor do vento e seguir adiante, com todo respeito pelo senhor da estrada.

Pilotar uma moto é estar imerso na natureza, é embarcar em aventuras destinadas àqueles que não se contentam com limites. Por aqui, a trilha sonora está mais para ‘Rock You Like a Hurricane’ do que ‘Born to be Wild’.

O vento é mesmo terrível, ainda traz consigo duas companheiras: o frio e a chuva. Frio congelante, perto de zero (no verão patagônico) e chuvas intensas na Ruta 3.

Viagem de moto patagonia ushuaia

Mas tudo isso é só o tempero da aventura, que garante histórias pra contar aos amigos, filhos e netos.

Exuberante, surpreendente e majestosa, assim é a Patagônia. E inigualável o prazer de pilotar por suas estradas.

Em alguns dias Romero, Ariane e eu estaremos bem longe, mas certamente jamais vamos nos esquecer desse céu maravilhoso, emoldurado pelos Andes com seus picos cobertos de neve, dos lagos cor de turquesa e dos magníficos glaciares. ‘Tierra del Fuego’, Estreito de Magalhães, Cerro Fitz Roy, Torres del Paine, glaciar Perito Moreno… nomes que têm outro significado a partir de agora. Visões comoventes da mãe natureza.

Tampouco jamais esqueceremos ‘del viento patagónico’.

Enquanto escrevo, ouço o vento sibilando lá fora, com rajadas ora bruscas ora suaves, em diferentes tons, como uma sinfonia. Será Deus soprando sua ‘zampoña’?

Minha homenagem ao senhor das estradas patagônicas e a todos os motociclistas que ousaram adentrar seus domínios.

Ivan Montenegro


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