Essa é uma história de um típico caso de paixão pelo motociclismo.
Tudo começou em 1988, quando tinha 9 anos e ví pela primeira vez em minha vida uma Yamaha Ténéré azul e amarela no trânsito de Belo Horizonte. Imponente, aquela máquina enorme, vista pelos olhos de uma criança, parecia uma nave espacial ou algo que só poderia ser pilotada por algum tipo de super-herói. Foi paixão à primeira vista. Nunca mais me esquecerei daquela cena na avenida de minha cidade.
O tempo passou, meu interesse por outras motos foi crescendo, mas sempre que ouvia um “tótótó” pelas ruas, logo identificava – “é uma Ténéré!”
Em 2007 tive a oportunidade de adquirir uma completamente em frangalhos… tudo enferrujado, motor vazando óleo por tudo que é lado, batendo biela, virabrequim empenado, rolamentos com folga, tanque amassado, farol adaptado de Brasília, enfim… um caco! Não sei porque, mas apesar de perceber todos aqueles defeitos a paixão falou mais alto e resolvi comprar aquele monte de ferro velho, para a alegria do antigo dono. Até hoje não sei como consegui chegar em casa, mas estava orgulhoso e satisfeito com a nova aquisição, mesmo sabendo que restaurar aquela moto não seria serviço de pouca monta. Dei a ela o nome de Lucrécia.
Negócio feito, iniciei a restauração da Lucrécia no final de semana seguinte, desmontando a moto completamente em minha garagem. Coloquei as peças dentro de uma caixa e fui feliz pintar o quadro, as canelas e balança da suspensão em uma indústria aqui da região metropolitana. A partir dali iniciou-se uma grande aventura, garimpando peças, substituindo parafusos, fazendo novos amigos. Posso dizer que durante dois anos me diverti muito e conheci muitos aficionados pela Yamaha XT 600z Ténéré.
Nesse período minha namorada quase terminou comigo, argumentava que eu passava mais tempo à moto do que com ela. No inicio era um fetiche, afinal, todo sujo de graxa eu era seu mecânico predileto, mas depois percebi que minha namorada estava ficando entediada com a situação. Foi aí que tive uma idéia: Propus a ela que, assim que terminasse a restauração da Lucrécia, iríamos fazer uma grande viagem pela América do sul. Acho que naquele momento nem eu e muito menos ela acreditou naquela história maluca de rodar pela América Latina em uma moto de 1990, que há dois anos atrás não passava de um caco velho. Amigos me diziam que eu era louco, que não fazia sentido arriscar tempo, grana e, principalmente, as nossas vidas em cima de uma moto antiga nas estradas de nossos países vizinhos. Escutava aquilo tudo calado e pensava comigo: “morre lentamente quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem ao menos uma vez na vida fugiu dos conselhos sensatos…” estas palavras do poeta Português Pablo Neruda ecoavam em minha mente e não me deixava abalar pelos “conselhos sensatos”
Em Setembro de 2009, montei os alforges na Lucrécia, amarrei algumas ferramentas no bagageiro, passei na casa de minha namorada, ela subiu na garupa e rumamos para o ponto mais austral do planeta, a última faixa de terra ao sul da América Latina onde é possível chegar de moto: Ushuaia! E só Ushuaia não bastava, teríamos que passar pela Ruta 40 na Argentina e pela Carretera Austral no Chile, ambas de rípio. Era um super desafio para nós e para a Lucrécia. Afinal, possuir uma moto com alma de Rally e andar só no asfalto não tinha graça nenhuma e, particularmente, acho que a Ténéré fica mais bonita quando está suja de terra.
Pois bem, após 48 dias de viagem, rodamos 13.850 quilômetros pela Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, tomamos chuva, tempestades de neve, sentimos frio, muito frio, ventos tão fortes que não era possível passar de 50 km/h com o motor 600 da Lucrécia. Passamos por regiões de inóspita beleza, com infinitas paisagens e onde ainda é possível apreciar intactas as obras da natureza.
Conhecemos maravilhosas pessoas com diferentes culturas, incríveis paisagens, uma natureza hostil que deve ser respeitada, principalmente para quem vai de moto, e uma gastronomia ímpar, com cordeiros patagônicos, frutos do mar, salmões e trutas regados a muito vinho. E que vinhos… Enfim, uma viagem que, desde o início da restauração da moto até o retorno para casa em segurança, deixará histórias para toda uma vida. Histórias para serem contadas para os netos. Emoções e sentimentos que só é possível viver em cima de uma moto. Histórias que só foram possíveis devido à paixão pelo motociclismo.
Viajar sobre duas rodas no sul da América latina foi uma experiência inesquecível. Dias na estrada e entre a estrada. As palavras nunca serão suficientes pra dizer, e graças a Deus que não são. Uma experiência solidária e solitária. Horas sem conversar, a moto não permite isso: é limitada. Já o pensamento: ilimitado. Eternas construções, uma espécie de “elaborações livres”, junto a cenários e nossas sombras, que às vezes eram as únicas companheiras. Frio, e um vento que nunca sentimos em nossa vida. O dia do tornado. O dia que nossas mãos e pés quase congelaram, a sensação de perder os movimentos. Cinco blusas no corpo. Bagagem reduzida. Moto que estragava, O calor dos corpos à noite. Anjos no caminho que nos acolheram. A diferença dos países. A língua dos povos. Baleias, muitas baleias, ali na nossa frente, bailando no mar. De onde elas vieram? Pra onde elas vão? Os pingüins – longe dos olhos. o que sabíamos era que as fêmeas estavam chegando de viagem. Guanacos, divertidos, bem humorados. Ovelhas, cavalos selvagens. A neve. O inverno que prolongou junto com a primavera que apontava doce. A solidão da ruta 40. Deserto. Pedras soltas. Refugio. Silêncio, vento, pôr do sol, que sutilmente aquecia. Medo de cair, de não estar protegido.
Isso foi sair do lugar comum porque o comum nos protege. Depois da longa distancia, chega o Chile. Carretera Austral, cheia de vida! Sem frio, sem vento. Rios, lagos, bichos, e cores. O verde toma espaço e despede do deserto e aos poucos da neve. Mas já dava saudade da força da Patagônia. As vilas e quem ali habita. Vivem de que? De que sofrem? Existe angustia? Vulcão em erupção. Digo que a Patagônia é linda. Existe mudança após patagônia? Não sei. Sei que vivemos após Patagônia. Pulsamos. E após o estradar, chegamos ao último ponto de terra do planeta, sozinhos. O ultimo ponto é o fim. E é isso. Ponto que nos aponta pra um belo ponto final.
(mas audaciosamente digo: continuemos (…))
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