De volta à Patagônia! Um ano depois da expedição a Ushuaia, aqui estamos outra vez, agora do lado Chileno. A mesma trupe: Romero, Ariane e eu, as mesmas motocicletas, duas R1200GS já bem rodadas, percorrendo a Carretera Austral entre Puerto Montt e Puerto Río Tranquilo.
Com 1242 km ao todo, a mítica Carretera Austral se estende desde Puerto Montt até Villa O’Higgins. Apenas 30% é pavimentada e o restante, de rípio. Alguns trechos em manutenção e outros em condição bastante precária, por isso a distância aqui se mede em horas, não em quilômetros. Sem falar da travessia de Hornopirén a Caleta Gonzalo, que leva 5 horas por balsa.
As paisagens são de tirar o fôlego. De um lado, a Cordilheira dos Andes, do outro o Oceano Pacífico. Lagos azul turquesa, rios de águas cristalinas e corredeiras, vegetação exuberante, incontáveis fiordes e picos nevados. Dá vontade de fotografar tudo. Mais um motivo pelo qual aqui o relógio anda mais devagar.
Nomes indígenas contracenam com espanhóis. De um lado pequenas comunas ou localidades, tão aconchegantes como Puyuhuapi, Coyhaique e Hornopirén. Do outro, Puerto Ibanéz, Río Tranquilo e Chile Chico, não menos aprazíveis.
No caminho encontramos Chaitén, cidade ainda abatida pela erupção do vulcão de mesmo nome que arrasou a cidade em 2008. Boa parte da população jamais retornou para suas casas.
Mas vamos voltar um pouco no tempo, quando povos indígenas dominavam essa região. Chegamos a Puerto Montt por terras Mapuche, o maior grupo indígena à época em que Pedro de Valdivia aportou por aqui. Muitos chilenos descendem ou se identificam como mapuche. São mais de 1,5 milhão deles,10% da população chilena.
Mais ao sul nos encontramos em terras Tehuelche, assim chamados pelos mapuches. Os navegadores espanhóis, por sua vez, chamavam os tehuelches de ‘patagones’ (pé grande), vem daí o nome Patagônia. Daí também vem a ideia da Patagônia como uma terra mítica, habitada por gigantes.
Uma das criaturas míticas veneradas pelos mapuches era a malévola serpente Cai Cai. Foi ela quem provocou o dilúvio, por causa da ingratidão dos humanos. As Torres del Paine (que visitamos ano passado) são as almas de guerreiros mapuches petrificadas por Cai Cai.
Ten Ten, outra serpente mítica, protetora dos humanos, ordenou à terra que se enrugasse, criando uma sucessão de montanhas, os Andes, para que os humanos pudessem escapar da ira de Cai Cai se refugiando em terras altas.
Encontramos Cai Cai em sua forma moderna, a de um monstro de metal, com 10 enormes patas que revolviam o rípio da estrada, lançava fogo pelas narinas e uma densa nuvem de poeira sobre todos que ousavam tentar sobrepujá-lo. Qual cavaleiro montado em seu corcel negro, vestido com sua cota de poliéster, na cabeça o elmo de carbono, não me intimidei, mas tenho que reconhecer que foi uma peleja duríssima.
Montanhas eram moradas de deuses, titãs e heróis tribais. Eram adoradas, podiam ter virtudes e defeitos, se casar, ter ciúmes e entrar em guerra com outras montanhas rivais. Cuspir lava e fumaça era uma forma de mostrar superioridade, enquanto cumes aplainados, sinal de respeito daqueles que foram subjugados.
Tronador era uma montanha venerada pelos tehuelches. Uma guerra entre Linco Nahuel e o rei dos pigmeus, aos pés da montanha, terminou com grande derramamento de sangue. O deus da montanha ficou tão indignado que congelou ambos, Linco Nahuel e o rei dos pigmeus, transformando-os em duas pequenas pirâmides, que se assentam cada uma de um lado do pico Tronador. Diz a lenda que eles estão lá até hoje e que o pássaro Furrufuhue, uma personificação do vento, é o único ser capaz de comunicar-se com eles.
Impossível não ficar extasiado com a imponência dos Andes. Percorrer a Carretera de moto, serpenteando as montanhas, vales e altiplanos é entregar-se a um emaranhado de sensações, histórias, admiração e espanto. Espinha dorsal de 7 países, a Cordilheira tem, no sul do Chile, altitudes relativamente modestas, mas abriga vulcões e glaciares nada modestos.
O Parque Nacional Queulat foi uma dessas surpresas, com seu Bosque Encantado e o fascinante glaciar Ventisquero Colgante, que se debruça sobre as montanhas, formando uma linda cascata e dando nome ao parque; Queulat significa ‘som de cascata’ na língua nativa.
Chegando a Puerto Río Tranquilo, chama atenção o contraste do rípio esbranquiçado com o amarelo das encostas e o azul turquesa do Lago General Carrero, ou Lago Buenos Aires para os argentinos, ou Chelenko para os tehuelches, que significa ‘lago de temporais’.
As Capelas de Mármore são um espetáculo difícil de descrever. Cavernas banhadas pelas águas geladas do Chelenko, esculpidas por milhões de anos em pequenas formas arredondadas, como amêndoas, com tonalidades do amarelo ao rosa. A explicação científica para tudo isso é extensa e complexa, mas tem a ver com a erosão do carbonato de cálcio pela água e com a pressão do gelo, mas outra explicação mais simples pode ser oferecida.
Quem sabe esse lugar não foi adornado por Elal, herói Tehuelche e iniciador da linhagem, filho do diabólico gigante Noshtex (filho da Escuridão) e Teo (uma nuvem), quando se escondia do próprio pai, que queria comê-lo.
Quanto a nós, temos sido muito afortunados. Fomos agraciados com um tempo maravilhoso, céu azul e temperaturas amenas. A Carretera é obra das máquinas pesadas dos homens, mas a Cordilheira, com toda a sua beleza e terror, é obra de Kóoch, o deus supremo Tehuelche.
Referências Bibliográficas:
Echevarría, Evelino. Legends of the High Andes.
Dhalleine, Timothy. The Folklore of the Tehuelche. Disponível em www.cascada.travel.
La Nación. La Carretera Austral, el gran viaje de la Patagonia Chilena. Disponível em www.lanacion.com.ar.
Britannica. Araucanian People. Disponível em www.britannica.
Cai Cai Vilu e Ten Tem Vilu. Disponível em http://portal-dos-mitos.blogspot.com
Native Peoples, Mapuche. Disponível em http://chileprecolombino.cl
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