Susques
A tarde ainda era uma criança e ao que tudo indicava chegaríamos com folga de horário em Susques, apesar os diversos pontos turísticos imperdíveis que havia no trajeto.
As motos injetadas venciam galhardamente os acentuados aclives da Cuesta del Lipán, mesmo acima dos 3.000 metros, somente a Honda Falcon que chegou a sentir um pouco os problemas da baixa pressão atmosférica, uma prova que a injeção eletrônica realmente faz a diferença na altitude. E assim foi até alcançarmos o topo da serra, em Altos del Morado, onde uma placa destacava a marca dos 4.170 metros acima do nível do mar. Do mirante é que se pode ter a dimensão exata da sinuosidade extraordinária da estrada e da impactante beleza daquela paisagem; dali avista-se também o imponente Nevado del Chañi, uma montanha com 6.200 metros ostentando seu majestoso pico eternamente branco. Todas as fotos e vídeos que eu já havia visto daquela serra, não representavam nem de longe o seu esplendor naquela tarde. Tudo estava perfeito, a estrada, a paisagem e até a luz ideal para se fotografar.
Vencida a Cuesta del Lipán, outra imagem que nos surpreendeu mesmo ao longe, foi um gigantesco lençol branco cortado pela ruta 52… Era o impressionante salar denominado Salinas Grandes, onde o deserto vira sal literalmente. A visita é obrigatória para todo viajante que se aventura por aquelas paragens, principalmente aqueles que como nós, estávamos tendo o primeiro contato com um salar daquela magnitude.
Logo ao estacionar no local, antes mesmo de descer da moto, fui alertado pelos demais que a tampa de um dos maleiros laterais estava totalmente aberta e faltavam alguns pertences. Ainda tomado pela desagradável surpresa tive uma confirmação preocupante, havia perdido no último trecho da estrada um kit de primeiros socorros e uma bermuda. Nada excepcional não fosse pela lembrança, que em Salta, eu havia usado uma bermuda e estaria no bolso dela a reserva de dólares para todo o resto da viagem. Depois do impacto natural nesses casos, com mais calma abri uma bolsa de roupas e pude constatar que felizmente esse dinheiro estava numa outra bermuda, intocado desde aquela cidade. Ufa! Foi o balde de água fria que minha cabeça precisava…
Se a visão da gigantesca salina já impressionava ao longe, estar sobre ela então demonstrava ser uma experiência singular, dada a ilusão ótica que a brancura proporciona no imenso mosaico de formas geométricas, caprichosamente formado pela ação natural da decantação. Caminhar sobre aquele enorme quebra cabeças permite uma sensação surreal e intrigante. Como as Salinas Grandes constituem-se numa grande atração aos que por ali passam, foi praticamente normal nos encontrarmos com outros viajantes que havíamos encontrado ao longo da estrada, foi o caso das jovens Lau e Vicky, duas blogueiras argentinas, que haviam participado conosco de um passeio no Trem das Nuvens, três dias antes e tivemos ali a mútua surpresa do reencontro, com fotos e tudo mais… Esse é o tipo de empatia e relacionamento imediato que uma viagem de moto sempre proporciona.
A luz da tarde agora já era mais tênue, acentuando as nuances da estepe e o contorno das montanhas, emprestando um dourado admirável ao desolador cinza do deserto. Um momento de rara beleza, imperdível para nossas lentes.
Depois de uns poucos vilarejos e pequenas propriedades rurais perdidas no deserto, lá estava Susques, bem menor do que tínhamos imaginado. À primeira vista era praticamente mais uma vila de ruas estreitas e poeirentas, mas naquele fim de mundo era tudo que precisávamos.
Situada um pouco além da entrada da povoação, ao longe podíamos vislumbrar a beira da estrada, uma construção menos rudimentar que as demais. Ao nos aproximarmos pudemos constatar que se tratava de um hotel de construção recente, já comentado pelo nosso companheiro Barba e que seria uma excelente opção de pernoite. Como alegria quase sempre dura pouco, mal adentramos o pátio lá estava o aviso de lotação completa… O jeito então foi percorrer o povoado em busca de uma pousada ou mesmo algum albergue, pois naquele horário ali era a única opção que tínhamos.
Foi como entrarmos num túnel do tempo, as ruelas de terra e suas construções rústicas em adobe davam um ar de cidade fantasma do velho oeste. Uma ou outra hospedaria com improvisadas placas de identificação, não nos animava sequer a perguntar sobre disponibilidade de vaga e assim continuamos a percorrer o vilarejo em busca de abrigo, afinal estávamos a quase 4.000 metros de altitude e já dava prá sentir a queda da temperatura, mesmo antes do cair da noite. O “centro” de Susques resume-se a uma pequena avenida de pouco mais de 300 metros, também em terra batida e ali estava nossa última esperança de encontrar um lugar para comermos algo e para passar a noite.
Felizmente nossas preces foram ouvidas… Apesar da negativa inicial, talvez para valorizar o custo da última habitación disponível, o fato é que tínhamos finalmente onde dormir. Em que pese a quantia de “efes” tão habituais aos motoqueiros… Calma que vou explicar, como os goleiros que tem a fama de tão “amaldiçoados” que nem a grama cresce debaixo das traves do seu gol, assim são os motoqueiros quando chegam aos hotéis ou pousadas… Até desenvolvemos algumas técnicas de abordagem a esses estabelecimentos: somente um do grupo vai até a recepção, preferencialmente o mais velho (eu…), deixa o capacete, balaclava, luvas e a jaqueta de couro com os demais e com meio corpo protegido pelo balcão da recepção, apresenta-se como um hóspede normal (?), caso contrario os “efes” são inevitáveis… Ou seja, vão dizer que não há vaga ou quando se consegue acomodação é nos Fundos, geralmente Feia, vai ser o quarto mais Frio e ainda com muita sorte se não for Fedido…
Para não fugir à regra nossa acomodação foi classificada com 3 “efes” e ainda nossas motos ficariam na rua… Tudo bem, era o que tínhamos para aquela noite fria em Susques.
Tendo sido no passado um importante centro minerador do Atacama, Susques justifica sua conturbada história como pivô de batalhas diplomáticas e até mesmo campais ao longo dos anos. Existem relatos históricos de que a nação atacamenha Likan Antai foi precursora da ocupação indígena naquela região, cuja cultura permaneceu mesmo após ser suplantada pelo Império Inca em 1.475. Mais tarde, já no século XVI vieram os espanhóis e apesar de não se instalarem em função do clima extremo e das adversidades do deserto, incrementaram a exploração mineradora. Nos séculos seguintes o local voltou a ser palco de batalhas, disputadas pela Bolívia, Chile e Peru.
Hoje apesar da estagnação no crescimento, Susques continua importante pela sua estratégica localização naquela região de fronteira, como a última povoação argentina da ruta 52. No entanto só mesmo nos detendo nas particularidades daquela localidade, percorrendo suas ruas de terra batida, atentando às suas moradias simples sem buscar comparação com cidades maiores ou modernas e principalmente buscando entender na alma atacamenha do seu povo, o porquê da permanência num local onde a natureza é tão hostil. Só assim começaremos a vê-la de maneira diferenciada. Por exemplo, conversando com o dono da hospedaria, fui surpreendido quando sua mãe, uma senhora aparentando uns 70 anos, descendente de aymará, tão humilde quanto os demais moradores, dirigiu-se a nós falando fluentemente o português e demonstrando uma alegria quase infantil, pela oportunidade de nos ouvir. O mais interessante é que ela nunca havia saído daquele lugar e nos confessou que sempre gostou muito da língua portuguesa, chegando a fazer um curso do aprendizado por correspondência. A nossa conversa rolava solta, até que adentrou na pequena sala da recepção, um grupo de senhoras e algumas crianças que vieram ali para a aula de alfabetização que ela ministrava graciosamente para aquela comunidade.
O jantar oferecido e único disponível era bem simples, na verdade uma sopa a base de milho e outros vegetais mais algum tipo de alga que não pudemos identificar, acompanhada de um picadinho de carne de lhama e de um pão caseiro de massa escura. E depois uma sobremesa de aparência meio estranha, cujo nome era de origem indígena, completou nossa aventura gastronômica.
Ao sairmos da hospedagem parecia estarmos entrando numa geladeira, o melhor foi deixarmos as motos e seguir a pé em busca de um locutório, para tentar um contato telefônico com a família. Nossos celulares e o rádio da Nextel eram apenas enfeites naquelas paragens, alias só serviram mesmo para tentar iluminar o caminho, porque fora daquela pequena avenida não havia qualquer ponto de luz. Convém lembrar que mesmo a parca iluminação da avenida principal, provinha do gerador central, que logo mais seria desligado. Então procuramos andar mais rápido, pois havia o risco de não encontrarmos mais nosso hotel de meia estrela. Em compensação nunca havia visto tantas estrelas na minha vida, a via láctea parecia até congestionada, uma imagem formidável que ficou na retina.
Ao retornarmos ao nosso “cafôfo” pudemos confirmar que a noite de Susques parecia não conhecer o verão, pois no meio dessa estação fazia uns 2 graus negativos… Apressamos o passo, porém sem exagerar, pois na tentativa de correr, a altitude já havia mostrado seus efeitos. Fomos direto para nosso quarto, totalmente ocupado por um beliche, duas camas de solteiro e um colchão entre elas, no chão mesmo… Lembrando ainda que, toda nossa tralha de viagem dividia o mesmo espaço. Uma vez dispostas as camas, já não era mais possível abrir a porta do quarto e também o acesso ao banheiro, passava sobre uma das camas. A primeira coisa a combinar então foi que todos deveriam usar o banheiro antes de dormir…
Apesar da manhã gelada fui o primeiro a acordar e com minha câmera a tiracolo explorei um pouco mais os arredores. Foi a melhor idéia que eu poderia ter, pois entre tantos cenários curiosos do cotidiano, acabei encontrando uma verdadeira jóia histórica, a igreja de Nossa Senhora de Belém, uma interessante relíquia datada do século XVI, período da colonização espanhola. Sua construção unicamente em adobe e o telhado de palha chamam a atenção pela singularidade e incrível conservação, facilmente explicada pela ausência de chuva no Atacama. Aquele templo foi consagrado em 1598 e é considerado o mais antigo santuário cristão da província de Jujuy. Seu interior é também marcado pela simplicidade e delicadeza, possui uma singela decoração em suas paredes, com figuras sacras emolduradas por pinturas de pássaros e flores regionais, um estilo reconhecido como Cuzco, felizmente muito bem preservado. De volta à hospedagem, depois de um rápido café dedicamos um tempo às motos… Nenhuma delas funcionou afetada pelo intenso frio da madrugada, na verdade o combustível em baixa temperatura dificultava a explosão e os motores “congelaram”, só voltando ao normal, depois de um banho de sol de quase uma hora.
Após abastecermos as máquinas no único “posto de serviço” local, seguimos em direção ao Paso de Jama, num dos pontos mais altos da cordilheira que alcançamos durante a viagem, onde nosso precioso tempo agora seria dividido entre novas paisagens cinematográficas e os tramites burocráticos da sempre movimentada aduana argentina.
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