Viagem de moto até o Deserto do Atacama, Chile

Um mágico passeio no Trem das Nuvens

A inclusão de Salta em nosso roteiro tinha um objetivo maior do que conhecer a mais bela cidade do noroeste argentino, por isso dos dois dias previstos naquela cidade programamos um dia inteiro dedicado a um passeio muito especial,
particularmente sonhado desde que havíamos tomado conhecimento do tão decantado “tren a las nubes” (ao pé da letra, trem para as nuvens), que sai de Salta e chega a San Antonio de los Cobres, a mais alta povoação da Argentina.

Como esse pacote tinha que ser adquirido com certa antecedência, foram inúmeras as complicações que tivemos. A princípio o grupo era formado por oito integrantes, sendo seis motos e um carro (dois amigos iriam num veículo de apoio – uma novidade em nossas incursões de moto pela América do Sul). Inovação que afinal acabou por não ocorrer, pois um desses integrantes acabou desistindo da viagem e o outro obviamente também desistiu, por que seria solitário e desgastante demais, dirigir por mais de 8.000 quilômetros, tentando seguir outros seis malucos de moto. Foram as duas primeiras baixas… Do grupo de motoqueiros, o meu genro Carlos, um dos mais entusiasmados com a viagem planejada há mais de um ano, teve uma “apendicite- surpresa” (não sei se existe outra forma disso) e sofreu uma intervenção cirúrgica a trinta dias da partida. Naturalmente foi vetado pelo departamento médico, afinal nenhum doutor arriscaria a liberá-lo do pós-operatório, para uma viagem tão longa e ainda por cima, de moto! Impreterivelmente nosso grupo estava reduzido a cinco “heróicos” integrantes. Ocorre que o pacote havia sido pago antecipadamente com cartão de crédito e o prazo de simples cancelamento tinha expirado, alguns dias antes do comunicado das baixas. Depois de muita negociação conseguimos reduzir a multa e a perda foi sensivelmente menor. O pacote tinha data e horário impreterivelmente marcado, e aí começava outra dificuldade, pois uma viagem longa de moto pode ter ocorrências indesejáveis. Antecipamos nossa saída em um dia, prevendo algum atraso e apesar das previsões meteorológicas nada animadoras, seja o que Deus quiser… E Ele quis chuva, muita chuva. Foram quase 800 quilômetros debaixo d’água, de Torre de Pedra (S.Paulo) até Campo Mourão (Paraná)! Chegamos ao final da tarde em Cascavel, onde pernoitamos, conforme nosso roteiro. No dia seguinte, seguimos para Foz do Iguaçu e a poucos quilômetros da divisa argentina, uma das motos acusou problemas graves na transmissão… Era domingo e não havia nenhuma concessionária ou mesmo alguma loja de peças aberta. Sem outra solução, deixamos a saída do país para o dia seguinte… Lá se foi nosso dia extra!

Nada mais poderia dar errado, agora só tínhamos minguados dois dias para chegar a Salta, apenas 1.500 quilômetros de estrada. Felizmente nada de pior ocorreu, a não ser com outra moto que teve a corrente estourada a 110 km por hora, por muita sorte sem qualquer travamento. ” Macaco velho” de estrada, meu irmão levava um elo de corrente extra para emergências desse tipo e o problema foi resolvido em pouco tempo. Como previsto, chegamos à noite em Corrientes, pura coincidência do nome (na verdade nossa corrente em espanhol é cadena…), mas foi ali que tivemos outro problema; enfrentamos um trânsito caótico no horário do rush e um dos integrantes perdeu-se do grupo, mas desta feita o tempo perdido foi mesmo de sono, pois tudo foi resolvido lá pela meia-noite.

No dia seguinte, após a substituição da “gambiarra” (corrente emendada) por uma novinha, seguimos viagem, agora pelo chaco argentino, talvez o trecho mais quente e enfadonho da viagem. Além de tudo, as placas indicativas não eram nada alentadoras, por exemplo: Rio Muerto, Pampa del Infierno, Monte Quemado, eram apenas algumas das localidades ao longo desse “agradável ” trecho da viagem. Prosseguimos até o final do dia, parando em Vicente Gonzalez para o pernoite…Salta estava a menos de 300 quilômetros, com alguma sorte no dia seguinte almoçaríamos em La Linda, o codinome plenamente justificável daquela cidade.

Chegamos a Salta no início da tarde, entusiasmados com o sucesso da empreitada, afinal só restava encontrar o hotel reservado e no dia seguinte finalmente o trem das nuvens!

Instalados no hotel, aproveitamos o pouco do dia que restava para conhecer a cidade; infelizmente isso se resumiu às praças centrais e suas seculares catedrais e mosteiros, um jantar numa pizzaria que servia pizza por metro e cerveja por litro, afinal no dia seguinte a estrada seria de ferro e as motos também teriam um descanso merecido.

O sono foi curto, às 5 horas da manhã, após um rápido café no hotel, nos encaminhamos à estação ferroviária para o tão aguardado passeio. O local estava apinhado de turistas estrangeiros, num burburinho que mais parecia a torre de Babel…Havia inclusive uma equipe de TV chinesa já em ação, fazendo a cobertura dos preliminares da viagem. Lá fora o vai e vem frenético dos taxis, dava a idéia de como seria concorrido o embarque, assim como nosso retorno, previsto para as 23:30 horas daquele mesmo dia.

Deixamos Salta logo após o dia clarear e depois de cruzar os vilarejos periféricos da cidade e algumas propriedades rurais, adentramos na paisagem única, que mescla a aridez desértica das estepes, planícies vales e montanhas com uma particular combinação de cores e climas. A paisagem alternava-se incrivelmente na travessia do Valle de Lerma para a Quebrada Del Toro até chegar até a Puna, onde a altitude acima dos 4.200 metros, mostra seus efeitos, notadamente naqueles estreantes nessa experiência. São 217 quilômetros somente de ida, cruzando 21 túneis, 29 pontes, 13 viadutos, além dos patamares em ziguezague, interessante manobra para vencer os trechos mais íngremes, sem uso de cremalheiras, mais comuns nas ferrovias de alta montanha. O trajeto é um tanto quanto cansativo pela baixa velocidade da composição, em torno de 35 km por hora, mas é plenamente compensado pela beleza das paisagens que se descortinam ao longo do caminho, o qual segundo os guias da ferrovia, há séculos já era utilizado pelos incas através da cordilheira andina.

A partir dos 2.500 metros de altitude intensificam-se os efeitos também conhecidos como mal das montanhas, o sorochi, é o momento em que os guias do trem, servem o tradicional chá de coca e boa parte dos passageiros começam a mascar as folhas de coca, adquiridas livremente na própria estação de embarque e ambos comumente utilizados para amenizar os sintomas, apesar dos olhares desconfiados dos passageiros de primeira viagem, como nós naturalmente… Nos casos mais críticos tem ainda uma enfermaria dotada de um cilindro de oxigênio, que eu mesmo acabei utilizando quando passamos dos 4.000 metros e garanto que não foi por curiosidade.

Finalmente chegamos à última etapa, aos 4.220 metros cruzamos o famoso viaduto La Polvorilla, uma excepcional obra da engenharia datada do século passado, com seus 224 metros de comprimento e 63 metros de altura. A sensação é incrível quando a composição pára no viaduto, cruzando um grande vale, já na chegada de San Antonio de los Cobres, na divisa com o Chile. Uma concorrida feira de artesanato passa a ser a atração dos turistas afoitos por lembranças e fotos das lhamas, vicunhas e outros animais e moradores da Puna, em seus trajes típicos multicoloridos. Logo depois se inicia a viagem de volta, que completa 437 km e chega a Salta já com noite alta. Se pensam que a viagem de volta é muito cansativa e enfadonha, ledo engano… A paisagem ganha novos atrativos com o cair da tarde, quando acentuam-se as nuances e contornos das montanhas e um dourado incrível domina a estepe.

No limiar da noite uma extensa faixa alaranjada ainda insistia em permanecer emoldurando o horizonte crispado da cordilheira, proporcionando um crepúsculo extasiante. Quando a sonolência ameaça se implantar no trem, a tripulação inicia uma série de atividades com os passageiros que começa com a entrega de diplomas a todos os participantes, uma espécie de batismo da experiência de altitude. Feitas as apresentações individuais, pudemos constatar a diversidade de origem dos passageiros; alguns demonstram sua capacidade artística, recitando poesias ou mesmo cantando músicas de sua terra ou simplesmente falando das suas impressões daquela experiência. A noite cai e quando se pensa que tudo chegou ao seu final, um conjunto musical percorre os vagões apresentando animadas melodias saltenhas, com destaque especial de duas belas cantoras, vestidas a caráter que foram sem dúvida, o centro das atenções.


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