A preocupação com o sucesso da nossa empreitada tinha em particular um peso extra por ser minha a decisão do roteiro a ser seguido. Foram meses de pesquisa sobre essa rota, garimpando na internet as informações não encontradas nos mapas convencionais que dispunha.
Até mesmo no Google Maps, as informações eram incompletas… Não era suficientemente precisa na distância a ser percorrida em terra, o que por si já comprometia o percurso total. Restou-me então buscar informações em blogs de internautas que haviam percorrido esse caminho. Isso acabou também não sendo fácil, porque os relatos eram incompletos ou superficiais e na maioria eram travessias com carros, e não havia a mesma preocupação com o combustível, algo essencial para nossas motos, na sua maioria com baixa capacidade dos tanques. Porém era imprescindível seguir por aquele caminho, por que além de encurtar o percurso do retorno, as paisagens intocadas daquela região do Atacama seriam imperdíveis, entre elas: a Cuesta Codoceo, o Salar de Maricunga, a Laguna Verde e entre tantos vulcões lá estaria o maior do planeta, o Ojos del Salado, com seus incríveis 6.893 metros de altura, que detém ainda a marca de segunda maior montanha da América do Sul. Sua base está na divisa do Chile com a Argentina distante 280 km de Copiapó pela própria ruta 31; é considerado um vulcão inativo, apesar de sua cratera apresentar vários pontos de fumarolas e diversas fontes termais no seu entorno.
Como se não bastasse tudo isso, no lado argentino, a mesma estrada, porém pavimentada (Ruta 60), nos levaria às deslumbrantes paisagens da Ruta de los 6 Miles. Essa rota de viagem é considerada uma das mais espetaculares da Argentina, pela beleza natural que proporciona esgueirando-se por uma cadeia de montanhas com a incrível sucessão de 14 picos, todos com altitude acima dos 6.000 metros, daí sua denominação. Um panorama cinematográfico que habitava meus sonhos, desde a primeira vez que vi as fotos de um amigo flickeriano.
Daí fica fácil imaginar com que emoção deixei a cidade de Copiapó, naquela manhã fria e nebulosa como meus pensamentos, certamente por sentir alguma insegurança pelo desconhecido e preocupação com a precariedade da estrada para um motociclista de asfalto como eu.
Para o aproveitamento total do espaço nos tanques, reabastecemos as motos no último posto de serviço disponível, algo em torno de 1,5 litros em cada tanque e carga total nas bombas extras. Percorremos os últimos quilômetros pavimentados e dali em diante, adeus civilização!
O movimento frenético das camionetas foi se reduzindo aos poucos, à medida que deixávamos para trás as grandes mineradoras e ao mesmo tempo a confiança nos caminhos de terra foi se afirmando gradativamente, até que chegamos a um grande trecho surpreendentemente regular. O piso era tão seguro quanto um pavimento e no acompanhamento automático aos demais, quando me dei conta estava a mais de 120 km por hora… Foi então que resolvi conter o entusiasmo, até porque não sabia até onde iria aquela “auto-estrada”, mais tarde numa breve parada, melhor identificada como sendo resultado da compactação de terra e sal (muito comum no deserto). Infelizmente isso não durou mais que uns 20 quilômetros e a partir daí o cuidado teve que ser retomado.
A ruta ganhou um primeiro trecho de serra, e o piso inspirava maiores cuidados, além da maior atenção nas curvas, alguns setores estreitados por penhascos com proteção mínima de defensas, reduziam drasticamente a segurança e nos obrigava a rodar a baixa velocidade. Entramos a seguir numa grande planície que era contornada por pequenos cerros e cortada por raros cursos de água. Isso permitia a sobrevivência de umas poucas e rústicas propriedades rurais, que aparentemente se dedicavam à criação de muares, essa foi a única presença humana que pudemos constatar em todo trecho percorrido. Mais uma parada para matar a sede e esticar as canelas, aproveitando ainda para registrar mais algumas fotos. O céu agora estava limpo e o sol indicava que teríamos mais um dia quente… O lugar era de uma paz celestial, até que isso foi quebrado pela buzina intermitente de uma Palio Weekend, eram os dois casais argentinos que conhecemos na pousada de Susques e que dias depois reencontramos nas Salinas Grandes; eles passaram acenando como doidos ao nos reconhecer e sumiram na poeira da estrada.
Na nova etapa que iniciamos, passamos por diferentes tipos de piso, inclusive por trechos cascalhados, porém nada que merecesse algum cuidado maior, salvo em curvas mais fechadas, evitando frenagens bruscas, principalmente. Mais algumas dezenas de quilômetros e visualizamos a tão aguardada Cuesta Codoceo; antes de iniciarmos a subida dessa serra paramos para mais um “pipi-stop” num local que aparentava ter sido uma antiga mineradora. Alguns equipamentos e edificações tinham sinais claros de abandono, mas o que mais impressionava eram as diferentes texturas e cores do solo, que evidenciavam a presença de vários minerais à flor da terra. Encontramos ali uma velha mina e não resistimos a uma rápida visita e fotos do local. Ali aproveitamos baixar a pressão dos pneus, para garantir maior estabilidade e iniciamos a subida em espiral da serra, que mesclava trechos de rípios, terra e aqueles setores com muito pó acumulado, que havia nos alertado o argentino da Varadero, alias essa foi até aquele instante a pior passagem que tivemos.
A paisagem era realmente impressionante e a subida acima dos 4.500 metros foi alucinante, mesmo em pleno verão chegamos bem próximos à neve. O panorama que se descortinava no alto da Cuesta Codoceo era fantástico, podia-se observar ao longe, na enorme planície, o grande lençol branco do Salar de Maricunga e acima da cadeia de montanhas, a silhueta inconfundível do vulcão Ojos del Salado com seus quase 7 mil metros, mesmo estando a cerca de 80 quilômetros de distância… Mas o Atacama é assim mesmo, por isso é chamado de terra dos grandes horizontes.
Ali a tomada de fotos foi mais uma vez decidida por unanimidade e acabamos nos demorando um pouco mais que o previsto, esquecendo que tínhamos que seguir num longo descenso em ziguezague, passar pelos tramites da aduana chilena do Paso San Francisco e mais uns 100 quilômetros em terra até a aduana argentina de mesmo nome e ainda mais uns 190 quilômetros em asfalto para chegar a Tinogasta, a primeira povoação argentina.
Alcançamos a aduana chilena do Paso San Francisco, próximo das 11 horas da manhã e os tramites foram bem mais rápidos do que havíamos imaginado. A grande culpada desse pensamento negativo foi sem dúvida a nefasta experiência no posto aduaneiro de San Pedro de Atacama… Ali, ao contrário, não havia nenhuma burocracia e os funcionários foram rápidos e simpáticos, talvez por conta solidão que habita aquele lugar tão remoto. Cumprido o protocolo de saída do território chileno, voltamos nossas atenções às motos, aproveitando para transferir o combustível extra para os tanques e assim nos livrarmos das incômodas bombas plásticas. Nossa surpresa foi a transformação sofrida no formato desses recipientes, originalmente com cantos vivos e formato quadrangular, estavam simplesmente esféricos, por conta da mudança da pressão atmosférica naquela altitude. Na verdade eu já tinha ouvido histórias de embalagens de xampu ou protetor solar que simplesmente estouraram na bagagem por esses mesmos efeitos, mas não dei muita importância, porém vendo aquilo, dei graças a Deus, pelos nossos recipientes terem suportado a pressão. Nem daria prá imaginar as conseqüências de um banho de combustível com as motos super aquecidas e ainda na melhor das hipóteses, a simples perda dessa gasolina que era essencial para concluirmos a travessia.
Com os tanques cheios novamente partimos para mais uma etapa da jornada, não sem antes nos divertirmos com um inesperado tombo do companheiro Barba. Depois de empurrar a moto por alguns metros, ele simplesmente desabou… Um efeito da altitude que pode ocorrer por algum esforço físico.
Como sempre o Alysson com a KTM-990 e meu filho Hudson com a XT-660-R dispararam na frente, seguidos do meu irmão Gerson e o Barba, costumeiramente mais maneiros seguiam à minha frente. Um pouco afastado do grupo, por mais uma parada para fotos do magnífico Salar de Maricunga, que margeávamos desde a aduana, tratei de acelerar um pouco mais para alcançá-los com a intenção de permanecer na costumeira posição intermediária, entre os dois mais rápidos e os demais. E assim passei pela dupla e segui numa média de uns 70 km por hora. Afastei-me deles cerca de 3 ou 4 quilômetros e logo após vencer uma colina suave, fui direto para uma “panela” na estrada, um buraco raso, porém cheio de rípios, o efeito shimmy foi imediato, o guidão oscilava como louco e a minha primeira reação foi acelerar para tentar retomar a frente da moto. Na verdade a melhor opção teria sido ficar em pé nas pedaleiras para baixar o centro de gravidade, porém confesso que apesar de costumeiramente fazer isso em terrenos irregulares, naquele momento achei que o resultado seria ainda pior… Naquela fração de segundo a moto deu um RL jamais imaginado, não sei se involuntariamente acabei acionando forte o freio dianteiro ou se a roda da frente travou em algum obstáculo, só sei a traseira se levantou e lançou-me como uma catapulta.
Meu irmão Gerson e o Barba disseram-me mais tarde que viram uma poeira que se levantou ao longe na estrada e pensaram que fosse algum veículo vindo no sentido contrário, continuaram e nada surgiu, até que me encontraram desmaiado ao lado da ruta, uns 10 metros adiante da moto. Caído de costas, só me lembro que ao abrir os olhos, deparei com aquele céu azul infinito e mais nada… Cheguei a pensar que tinha ido prá ele, de capacete e tudo! Depois disso tudo que lembro é que estava falando palavras desconexas tentando me comunicar com o motorista de uma camioneta vermelha, ele estava me levando até o acampamento da construtora encarregada daquela obra, instalada vizinha da aduana, que havíamos deixado há meia hora. Lá fui atendido por dois paramédicos e transferido para uma ambulância que se dirigiu imediatamente para Copiapó, a uns 200 quilômetros dali. Pelo rádio eles comunicaram o SAMU daquela cidade e decidiram agilizar o atendimento, combinando um encontro das viaturas na ruta, pois o resgate do SAMU oferecia maiores recursos. Aí começou meu verdadeiro martírio, os caras deviam ter feito alguma aposta de quem chegaria primeiro ao ponto de encontro, pois aquilo mais parecia uma corrida maluca… Com minhas costas em frangalhos e um dolorido “galo” na nuca, deitado e amarrado naquela maca de madeira, sacolejando a mais de 100 km por hora, numa estrada de terra cheia de buracos e pedras… Juro que cheguei a preferir outro tombo!
Enquanto isso meu irmão Gerson, o Alysson e o Barba tratavam de trazer minha moto até o acampamento. Na estrada meu filho Hudson, desesperado, seguia de moto comendo pó, perseguindo a ambulância até o ponto de encontro com o resgate do SAMU, pois sendo o último a retornar, até então só tinha visto o estrago na moto e mal sabia do meu real estado.
Quando finalmente as ambulâncias se encontraram, o pequeno intervalo da mudança foi um alívio e também deixei mais aliviado meu filho, que estava com uma cara assustada, como nunca havia visto. O novo veículo de resgate era top, tinha ar condicionado, monitores e equipamento completo de pronto atendimento. Passei por um novo e detalhado exame, a maca era um pouco mais macia e o veículo também. Voltamos para a estrada e seguimos para o hospital de Copiapó. Logo adiante reconheci aquele trecho de terra e sal compactado, pois a viatura devia estar a uns 130 km por hora. Mais um pouco e chegamos ao asfalto e lá estava a cidade, que nunca havia imaginado rever tão cedo.
Apesar de bem dotada no suporte médico-hospitalar, fui encaminhado a um concorrido pronto atendimento, que em nada perdia para a grande maioria dos PAs brasileiros… Pacientes prá todo quanto é canto, macas nos corredores, reclamações de atraso no atendimento, etc, etc; pode ter sido até algum delírio, mas poderia jurar que vi um cachorro circulando pelos corredores! Na verdade uma observação totalmente sem propósito, afinal o que poderia exigir naquela situação, ainda mais sujo de pó e ridículo como estava, de minhocão de lã, camisa cortada de cima abaixo e de barriga prá fora, mostrando um hematoma gigantesco no lado direito. Depois de horas de espera, raio-x de todo lado, coleta e análise do meu sangue… Depois vim saber que se houvesse algum indício de álcool ou droga eu estaria mais “ferrado” ainda, a lei chilena é bem mais dura. Para ter uma idéia, enquanto estive no hospital fui acompanhado de perto por um policial e no dia seguinte meu filho teve que comparecer a uma audiência judicial, munido além do B.O, de um documento médico que constatava os procedimentos recebidos e os resultados obtidos no exame de sangue. Isso porque se houvesse sido acusada a presença de álcool ou droga no exame, poderia ser processado, além de arcar com as despesas hospitalares e até do transporte emergencial utilizado.
Minha alta foi obtida quase à meia-noite e não foi constatada qualquer fratura, porém as dores eram terríveis em qualquer posição que ficasse. Voltei ao mesmo hotel do dia anterior, onde os três outros companheiros de viagem se preparavam para partir na manhã seguinte, optando agora pela ruta Panamericana. Aguardando minha recuperação, eu e meu filho permaneceríamos na cidade, até podermos resgatar a moto que ficou no deserto. A idéia era descansar por dois dias e no final de semana alugar uma camioneta para o resgate no Paso San Francisco. A primeira e irrevogável decisão era retornarmos de avião ao Brasil, mas antes deveríamos enviar as duas motos até Santiago, distante cerca de 800 quilômetros, de onde seria mais fácil encontrar uma transportadora para despachá-las ao Brasil, uma vez que não havia qualquer conexão de Copiapó com nosso país.
Enquanto eu permanecia de “molho” no hotel, meu filho acertou com a concessionária Yamaha local, o transporte até Santiago, por um caminhão que chegaria segunda-feira, trazendo motos novas e retornaria vazio no mesmo dia à capital chilena. Essa seria a maneira mais rápida e econômica para a primeira etapa do despacho das motos.
No sábado eu já havia sentido certa melhora, suficiente para circular pelo centro da cidade, aproveitando para comprar nossas passagens aéreas para Santiago no vôo noturno da segunda-feira, e efetuar a reserva num pequeno hotel na capital chilena, uma vez que deveríamos chegar por lá, tarde da noite.
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