Já de posse da camioneta locada no dia anterior, compramos alguns litros de água, uns lanches naturais e rumamos para o Paso San Francisco. Ainda com dores, a solução
para não sofrer com os solavancos da estrada era pressionar fortemente as costas contra o banco. Tudo que não havia fotografado na primeira oportunidade, agora de carro foi registrado avidamente. Parece brincadeira, mas a concentração nas fotos ajudava a esquecer as dores nas costas e assim o tempo também passava mais rápido.
A estrada agora já parecia até familiar, sabia de pronto o que viria depois de cada curva, pelo menos um alento de que minha memória não havia sido afetada… Em poucas horas já estávamos cruzando a Cuesta Codoceo e logo mais podíamos vislumbrar as instalações do complexo fronteiriço do Paso San Francisco.
A vontade de rever minha XT e saber dos meus pertences, obrigatoriamente deixados junto com a moto no pátio da empresa povoava minha mente. À medida que nos aproximávamos da aduana, um turbilhão de dúvidas me assolava… Além do valor econômico desses pertences, a idéia de perder irremediavelmente mais de 1.000 imagens fotográficas da viagem, atormentava ainda mais meus pensamentos.
Logo na chegada fui ao encontro com os paramédicos Ricardo e Oscar, que me deram o primeiro atendimento. Depois de agradecê-los, pedi desculpas pelos xingamentos que fiz durante o trajeto e acabamos rindo muito, quando ambos confessaram que em contrapartida mentiam o tempo todo, dizendo que faltavam poucos quilômetros… Em seguida ambos me presentearam com uma mini bandeira chilena e uma lembrança da principal atividade da região, um pequeno pedaço de minério encimada com a miniatura de um capacete e uma pá. Antes de nos despedirmos, registramos uma foto e trocamos nossos e-mails.
Em seguida fomos ver a moto e os pertences deixados nela, aí veio uma desagradável surpresa… Havia desaparecido uma mochila com minhas roupas, assim como outra menor com o macacão de chuva, um par de botas de trekking e tudo que estava numa das malas laterais que se partiu com o impacto, incluindo peças sobressalentes, lâmpadas e cabos extras, uma pasta com cópias de documentos, roteiros, etc. Felizmente, o bauleto central com todo equipamento fotográfico, celulares, rádio, cartões de memória, carregadores e os documentos mais importantes estava intacto por que foi deixado na sala do encarregado do acampamento. Por outro lado a minha moto estava em melhor estado do que eu havia imaginado, inclusive havia retornado rodando, desde o local do acidente apesar de ter sido danificado o painel e o módulo do computador, farol, alguns cabos elétricos e parte da “roupa”. O que restava fazer era carregá-la na caçamba da camioneta, fixar bem com os tirantes próprios e retornar à cidade.
Apesar dos quase duzentos quilos da moto, a tarefa foi relativamente fácil… Pelo menos prá mim que só pude ficar assistindo! Improvisaram uma rampa e com ajuda de dois operários em poucos minutos ela estava na caçamba. Agradecimentos, despedidas e ameaçamos sair… Pneu dianteiro totalmente arreado, e não era só furo, estava irremediavelmente perdido, rasgado por uma pedra do caminho. Tudo começava de novo, por que nossa camioneta, uma Ranger não desce o estepe com a tampa traseira baixada como estava, suportando parte da moto. De novo a rampa improvisada, tira a moto, desce o estepe, troca a roda, carrega a moto e lá vamos nós… Negativo, o único pneu sobressalente estava murcho. O humor da dupla estava em baixa, nem dava prá fazer piadinha, quase dava prá ver a fumacinha saindo da cabeça do meu filho!
Apelamos aos carabineiros chilenos para alguma forma de ajuda possível naquele fim de mundo e eles foram muito legais. Aguardamos meia hora e lá vinha nossa salvação, um enorme caminhão foi parado pelos militares e bastou uma conversa, estava disponível o ar comprimido necessário para encher o estepe. Agradecemos nossos novos amigos e nos despedimos novamente, partindo para uma nova aventura, viajar cerca de 200 quilômetros por estrada de terra e pedras, sem um pneu sobressalente.
Não deu outra… Conseguimos percorrer uma distância de 60 quilômetros da aduana e o estepe não suportou, estávamos realmente encrencados, agora no meio do nada e quando me refiro a nada, é nada mesmo! Mais de meia hora e não passava ninguém, nenhum sinal de vida, um mísero lagarto, nadinha. Foi aí que meu filho decidiu seguir pela estrada para tentar ajuda, numa mineradora que estava a 14 quilômetros dali, segundo indicava logo adiante uma solitária plaqueta improvisada e eu ficaria ali aguardando ajuda de algum veículo.
Nessa situação caminhar por 14 quilômetros até pode parecer viável, mas considerando o fator da altitude, algo em torno dos 3.000 metros, o sol inclemente do deserto em plena tarde, certamente uns 40 graus centígrados, somado ao sedentarismo de um corretor de imóveis… Mesmo contra minha vontade ele foi e ainda precisei insistir para que usasse o boné e levasse uma das garrafas de água. Bastante apreensivo acompanhei visualmente até ele desaparecer na última curva da estrada e aí começava outro dilema que ia além dos problemas concretos que estava vivenciando… A dúvida, os pensamentos negativos que insistiam em povoar minha mente. Tentei afastar tudo isso, procurando algo para fazer, porém o máximo que consegui foi juntar e empilhar pedras, tentando demarcar na estrada uma sinalização que pudesse chamar a atenção de algum motorista e ao mesmo tempo proteger o veículo de algum abalroamento. Depois disso passei a observar ao longe uma mancha escura à beira do caminho, novamente me atormentava a dúvida, o que seria aquilo, estaria se movimentando, poderia ser um corpo? Apanhei minha câmera e com a teleobjetiva no máximo passei a fotografar, confirmava aproximando no zoom digital e nada, até que uma lufada mais forte do vento levantou o plástico preto que estava caído naquele local.
Passaram-se umas duas horas e surgiu um veículo vindo provavelmente do acampamento, saí para o meio da estrada e comecei a sinalizar quase desesperado. Ao se aproximarem do local, já podia ver meu filho no banco de trás, só assim finalmente pude respirar aliviado. Três chilenos vindos de Copiapó o haviam encontrado sentado à beira da estrada, a uns 6 quilômetros dali, certamente muito cansado. Sugeriram que seria mais viável ir até o acampamento vizinho da aduana de onde saímos, pois lá havia várias camionetas, sendo mais fácil de encontrar ajuda naquele local e ainda era a direção que eles seguiam. Assim se foram me deixando novamente em plena solidão.
Depois de mais duas horas sem ver viva alma, eis que surge um micro ônibus com trabalhadores da construtora que se dirigiam a Copiapó, porém sem qualquer chance de um estepe compatível para a camioneta. De posse de um cartão da locadora, só me restou pedir a eles que tentassem uma comunicação com a empresa, informando sobre o ocorrido. Mais algumas horas de espera e nada do retorno do meu filho, isso me preocupava demais e voltavam os pensamentos nefastos, quem seriam os caras que lhe deram carona… Qual seria a real intenção deles? Essa preocupação começou a se transformar em desespero, quando ao entardecer o sol desaparecia por trás da extensa cordilheira. A luz do dia ainda durou por algum tempo, o suficiente para vislumbrar uma poeira e algumas luzes ao longe, eram dois veículos que se aproximavam, vindos provavelmente do Paso San Francisco. Era um caminhão de uma mineradora carregando uma espécie de sonda muito grande, acompanhado de uma camioneta e mesmo antes do meu sinal já foram estacionando. Ali chegava o anjo da guarda que havia pedido em minhas orações… Chamava-se Marcelo Ogalde, era o engenheiro da empresa mineradora e imediatamente após uma rápida e tranqüilizadora conversa comigo, ordenou aos funcionários que trocassem meu pneu ou o que havia restado dele pelo estepe bem maior da sua camioneta. Não se incomodou com a diferença no tamanho da roda, instalaram assim mesmo e garantiu que daria para chegar tranquilamente em Copiapó.
Dali fomos até a mineradora “Mantos de Oro”, aquela da plaquinha de 14 quilômetros, e de lá Marcelo comunicou-se por rádio com a aduana, para saber do meu filho. Os carabineiros informaram que a camioneta com um estepe extra, havia saído com ele a menos de 30 minutos e em pouco tempo estariam passando pela mineradora. A essa altura já havia escurecido e tudo ficava mais difícil… Mais de 40 minutos se passaram e nada deles, meu novo amigo notando a angústia que voltava a tomar conta de mim, sugeriu então que fôssemos ao encontro do veículo. Assim deixamos a Ranger a beira da estrada, com os homens do caminhão e retornamos até o Paso San Francisco, um trecho de uns 70 quilômetros, que passava pela Cuesta Codoceo, então muito mais perigosa na escuridão. Não havia uma explicação plausível para tudo aquilo, afinal se ele havia saído da aduana há mais de 1 hora, porque não nos encontrávamos… Minha preocupação começou a beirar a desesperança quando passei a notar o Marcelo, olhando disfarçadamente para os abismos daquela serra, procurando algum indício de acidente. Embora intimamente eu negasse a todo instante essa possibilidade, aquela parecia ser a única explicação para o desaparecimento do veículo.
Logo após avistarmos a aduana, identificada pelo único ponto de luz naquela negritude, acabamos cruzando com os três chilenos subindo a serra retornando a Copiapó. Conversamos e confirmaram que ao passar pela aduana souberam que uma camioneta havia saído em nosso socorro. A partir dali resolveram nos acompanhar no retorno ao “Mantos de Oro”. No alto da serra, encontramos ainda outro veículo com um casal de franceses fotografando a cordilheira, que ostentava uma grande faixa luminosa alaranjada em todo seu contorno, um espetáculo natural, que permanecia apesar do céu totalmente escuro. Em outra situação certamente eu me juntaria a eles para registrar aquele raro momento.
A partir da mineradora seguimos viagem em comboio, inclusive com os chilenos, até que surpreendentemente meu celular tocou, estava tão concentrado na estrada que cheguei a me assustar e também nem havia notado qualquer torre que teria captado aquele sinal… Maior surpresa ainda foi ouvir a voz do meu filho, falando do hotel em Copiapó. Aí vieram as elucidações de todo o enigma, ele havia passado pela mineradora, no momento em que o engenheiro se comunicava com os carabineiros e não pode visualizar a nossa camioneta no local, isso teria ocorrido por volta das 19:00 horas, o que aconteceu foi um erro na informação do tempo exato em que ele já havia saído da aduana. Alívio geral e então segui viagem até a cidade, juntamente com meus novos amigos, que fizeram questão de me acompanhar até a porta do hotel. Passava da meia-noite e pelo adiantado da hora, combinei com meu “anjo da guarda” a devolução do seu estepe no dia seguinte, enquanto os outros três chilenos gozadores me perguntavam… – E aí não vai sair nem um pisco pra comemorar?
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