San Martino di Castrozza – Lasa

Texto longo escrito dia 17 de julho, referente acontecimentos a partir de 5 de julho.

Meus amigos e seguidores, durante algum tempo, exatamente desde o dia 5 de julho, omiti alguns acontecimentos por motivos, na minha opinião, mais do que justificáveis. Neste dia sofri um acidente, uma daquelas coisas que você não encontra explicação e ao mesmo tempo encontra centenas de justificativas tão a gosto dos motociclistas. Prefiro assumir que, como sempre, a responsabilidade é de quem está conduzindo a moto. Estava no lugar errado, na hora errada e com a atenção desviada do foco principal. O fato é que um toque lateral com um automóvel é o suficiente para “comprarmos um lote”, como se diz na gíria de motoqueiros.

Segurei esta informação por vários motivos, no início pela impossibilidade de acesso à internet. Depois pelos meus filhos, eles deveriam ser os primeiros as saber e só quis comunica-los depois de definir o que iria fazer. Não sabia qual os danos da moto e nem mesmo os meus. No início (2 ou 3 primeiros dias) pensei em desistir, meu tornozelo (onde tenho um pino de platina) estava muito dolorido e inchado.

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No momento em que você cai ninguém deixa você se mexer, chamam resgate e toda a parafernália necessária. Tudo isso falando apenas inglês com um ciclista que era o único que falava qualquer coisa diferente de alemão e italiano. Levaram-me para um hospital em Silandro onde, sempre falando em inglês com a médica, fizeram chapas e tomografias e nada foi constatado. Me ralei muito, estava apenas de camisa polo e capacete aberto, uma estupidez que vou abandonar. Quando você cai a 80, 90 km/hora você não tem controle sobre o seu corpo, cheguei a ralar o queixo, supercílio, e os braços. Mas o pior era a dor no tornozelo e no tórax, que me impedia de respirar. Mantiveram-me no hospital até o dia 7 pela manhã.

Depois que voltei da sessão de radiografia, me colocaram em um quarto duplo, separado por uma cortina, de uma cama onde havia um cidadão de meia idade no soro. Fiquei olhando para o teto e pensando no que fazer. Telefonar para meus filhos só iria criar um clima de ansiedade e impotência. Eu não tinha respostas para nada e nem a quem recorrer. Nessas horas, não apenas nessas, mas principalmente nessas, conversar com aqueles que estão em outros planos, com a Senhora de Fátima, com as Forças do Bem, pedindo luz, pedindo forças para atravessar o momento é uma prática que sempre adotei e jamais me frustrei.

A atenção que médicas e enfermeiras me dedicaram foi extraordinária. Elas queriam saber onde eu estava hospedado na Europa. Quando falei que ficava pulando de hotel em hotel, creio ter despertado o sentimento maternal daquelas criaturas dedicadas e simpáticas. Minha calça (estava estreando) foi cortada para curativos nos arranhados da perna. Minha camisa foi igualmente cortada, estava apenas de cueca e pensando como sairia dali. Elas sempre diziam para não me incomodar pois encontrariam a solução. No dia seguinte vieram 3 delas com uma folha de papel onde havia um roteiro do que eu iria fazer quando saísse:

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1) Ir a Turbe (fronteira com a Suiça) na Carabinieri Station prestar declaração e pegar documentos (meus e da moto).
2) Ir a Oris, na oficina para onde a moto foi levada.

A esses dois itens eu teria de acrescentar um terceiro com urgência: conseguir um hotel para me instalar por, pelo menos, uma semana. Eu estava na rua, sem a moto e sem condições de andar. Tudo isso apenas com a roupa do corpo já que a bagagem estava junto com a moto na oficina.

A missão para mim se configurava impossível. Eu não andava, na realidade me arrastava com muita dificuldade por 10 a 20 metros. Teria que ir até a estação de trem a 4 km de distância, pegar o trem até Malles, descer e pegar um Yellow Bus que iria para a Suíça e descer em frente à Carabinieri Station. Depois, ônibus de volta, trem até Oris, etc. Mas meus anjos da guarda conseguiram que um taxi viesse me pegar às 8 horas para a estação. Ótimo, pensei (elas, preocupadas, ainda me perguntaram se eu tinha dinheiro para o taxi!). Meus sapatos elas encontraram, mas como escrever se meus óculos foram para o vinagre? O baixinho da cama ao lado, seu nome é Lupo, vendo minha tentativa de ler o bilhete, pegou seus óculos e falou para eu experimentar. Poxa, que alívio, consegui ler. Na mesma hora ele me disse: “-É seu, você vai precisar dele. Fique com ele”. Já vínhamos conversando antes, ele morava ali perto e trabalhava na Suíça, pilotando ônibus de turismo naqueles “Pass” perigosíssimos dos Alpes Suíços. O idioma daquela região da Itália é o alemão, italiano é ensinado como segunda língua. Toda a região do Tirol pertencia à Austria (fazia parte do Império Austro-Húngaro) e foi tomado pela Itália em 1918 na I Grande Guerra. O Lupo falava alemão, italiano, inglês, espanhol e um pouco de português (na Suíça tem muitos trabalhadores portugueses).

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O problema agora eram as calças. As enfermeiras conseguiram uma calça de pijama (aquele material parecido com TNT) e era o que eu tinha de melhor. Quando o Lupo me viu vestido de pijama de TNT, colete de couro sem mangas, mas com ambos os braços enfaixados e o cabelo desgrenhado, ele riu e falou que iriam me prender. Imediatamente ele foi ao seu armário, pegou sua calça jeans e me ajudou a experimenta-la. Claro que ficou muito melhor e ele mandou que eu a levasse também. Não adiantou eu falar nada. “- Brasiliano, você é meu amigo, você precisa da calça. Vai dar tudo certo, fique tranquilo”.

Antes de sair, fiz uma oração pedindo que, se possível, as pessoas com que eu me encontrasse hoje tivessem paciência comigo e simpatia pelo meu caso.

Bem agora era por minha conta. Com o roteiro escrito pelas enfermeiras, saí do hospital procurando o taxi. Nada de taxi, as pessoas falando em alemão olhavam para aquela figura patética e viravam a cara. Uma sensação de desânimo começou a querer me dominar, quando ví um jovem, mais ou menos da idade de Breno (meu filho mais novo), com um garotinho pela mão. Ele me olhou e falou: “-Rodrigues?” Sim, respondi. Ele então me disse que era o “carabinieri” que atendeu ao meu acidente e que sabia que eu tinha que ir a Turbe. Confirmei e disse que estava esperando um taxi para a estação de trem. “Não precisa ir de taxi, eu tenho que ir a Turbe e convido você para ir no meu carro. É só deixar meu filho em casa”. Meu Deus, o que poderia ser melhor do que isso? Deixamos o garoto em casa e ele, sempre muito formal, conversava comigo explicando o procedimento que eu teria de cumprir, por sinal bem simples, apenas uma declaração de próprio punho que, juntada à da motorista alemã, seria enviada para as seguradoras, já que ambos os veículos tinham seguro. Depois disso ele passaria comigo, na volta, em Oris, onde estava a moto, para eu decidir o que fazer. A essas alturas, pensei em perguntar a ele por que estava fazendo aquilo por mim, mas não o fiz, receei não usar as palavras corretas. Ele, parecendo adivinhar o que se passava em minha cabeça apenas perguntou: “-Você é de 42, certo ?” Fiquei meio confuso e ele completou: “-Nato em 42 ?” Ah, claro, nasci em 1942 respondi. Ele então completou de uma só vez: “-Meu pai também era de 42, ele também era apaixonado por viagens e motos grandes. Ele morreu pilotando uma Moto Guzzi quando eu tinha 2 anos de idade”. O que dizer, o que pensar? O nó na garganta só permitiu que eu fizesse uma oração agradecendo ao velho apaixonado pelas Moto Guzzi, pelo filho que tem.

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Quando chegamos a Turbe, na Carabinieri Station, outra surpresa. O oficial que nos atendeu era a cópia fiel de um amigo dileto, o Erikson TL, mas de bem com a vida. Alegre, sempre sorrindo com aqueles gestos largos típicos de italianos, mandou-nos entrar e foi logo perguntando: “- Como stai brasiliano, questo dollore molto? Stare tranquilli con la procedura”. E logo me falou que eu poderia fazer a declaração em português mesmo, em 4 ou 5 linhas, mas antes ele iria fazer um café spresso “brasiliano” para nós. Pronto, mais fácil não poderia ser.

Peguei os documentos e, novamente no carro do carabinieri, fomos para a oficina em Oris. De lá liguei para a Yamaha e relatei o ocorrido. Eles ficaram de entrar em contato com a seguradora que iria decidir o que fazer. Achei melhor ficar por perto até definir o destino da Brigitte. Mais uma vez o carabinieri me levou para uma pequena cidade ao lado (Lasa) e conseguiu acomodação para mim em um hotelzinho excelente, com restaurante. Na hora que ele foi embora, ainda falei sobre o gasto com gasolina pelo menos e ele me respondeu: “- É o meu trabalho. Eu me sinto bem ajudando as pessoas, não se preocupe”.

Mais uma vez, orei agradecendo ao velho motard apaixonado pelas Moto Guzzi.

Sempre me emociono ao lembrar deste episódio, é um sentimento de gratidão e profundo carinho por uma pessoa que não conheci neste plano, mas com quem um dia, certamente, formarei uma dupla nas estradas infinitas do horizonte eterno.

Daí para a frente, a cada dia uma pequena melhora, o tempo passando e a Seguradora sem contactar a oficina onde estava a moto. Tomei coragem e fui ver a moto. Tanque amassado, para-brisas inutilizado, handle-bar um pouco torto, mas nada que a impedisse de andar. Liguei-a, funcionou bem, embreagem e cambio ok. Dei uma volta por perto, soltei as mãos do guidom, ela se manteve impecavelmente equilibrada e decidimos, eu e ela, com cicatrizes no corpo e na alma, voltar juntos. Afinal o que começa em Paris merece terminar em Paris.

O mais interessante é que quando ia saindo da oficina quase que ouço a voz do André Ramon : “- Se eu não desço antes para tirar água do joelho…”

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