Quase meia-noite, você está em casa, aquela preguiça, friozinho e ainda chove. A campainha toca e a pizza chegou na hora. Foi um motoboy que trouxe. Para o nosso conforto, alguém trabalha muito duro. Deve ser esse mesmo motoboy, que para entregar a pizza, o remédio, o documento ou a encomenda, saiu rasgando as ruas das nossas cidades, custe o que custar. É o guidom que arrebenta o espelho ou arranha a pintura. O motoboy é a expressão máxima do nosso capitalismo acelerado, do sistema brasileiro de neuroses.
Mas motocicleta vai além do motoboy, acredite. Ando de moto há uns trinta anos – nem sou tão velho, comecei na adolescência – e nunca tive carro. Moro no Rio, aqui não chove muito, não tenho filhos, o que facilita um bocado. Não sei definir o grande prazer de pilotar uma motocicleta, que nada tem nada a ver com aquele clichê “vento no rosto”. Acho particularmente incômodo aquelas micropartículas batendo na cara e até o risco de uma lesão oftálmica, o que tornaria pior o que já não é bonito. Então reduzo as chances com um capacete fechado ou um com uma boa viseira.
Motocicleta é uma solução viável. É perigoso? Sim, mas já foi mais. Hoje há mais acidentes porque há muito mais motos em circulação, e a maior parte desses sinistros está apoiado no tripé desatenção, álcool e falta de capacete. O primo da empregada de um amigo (não é mentira) morreu num acidente de moto há duas semanas. Perguntei se ele estava de capacete. Ela respondeu que não e que ele vinha de uma “festa”. Poderia ser ainda pior: ele podia ter atropelado você ou a mim.
Mas, no dia-a-dia, motos e scooters são a solução. Simplesmente não há mais espaço nas cidades e cada vez que consigo chegar no horário em dois compromissos no mesmo dia ou achar uma vaga boa num shopping ou em qualquer lugar, em vez de circular horas procurando uma vaga, me vem um ditado que criei há muito tempo: “Este é mais um capítulo da série Porque eu Amo Motocicletas”. E tem outros momentos, de passear num dia de sol, de sentir a aceleração, das curvas bem feitas, de interagir com a paisagem e do universo motociclismo. Talvez o único senão seja mesmo a chuva, mas já escapei de situações tenebrosas porque estava de moto e não de carro. E as viagens de moto são um capítulo à parte. Não é apenas uma viagem. É uma viagem de moto.
Corre no nosso valoroso Congresso Nacional um projeto de lei que obriga – se aprovado – motocicletas a trafegarem no espaço de um carro e o fim das motos nos corredores. O autor dessa brilhante idéia não deve ser bom de matemática. Em São Paulo, segundo o Observatório Cidadão, em julho ultimo a cidade tinha cerca de 960 mil motos registradas, mais ou menos 200 mil delas com os motoboys. No horário comercial paulistano, rodam umas 500 mil motos, ou seja, de um dia pro outro, graças a uma canetada política, serão derramados meio milhão de carros de 8 às 18h. Uma moto atrás da outra, como um pesadelo lento e fumacento. A pizza vai chegar fria, se houver pizzaria.
Outro projeto prevê faixa para motos nas avenidas, outro que se proiba garupa (!) e outro que não circulem motos em certas horas da noite! No Rio, um coronel da PM sugeriu que se coloque coletes em todos os motociclistas com o numero da placa, como nas narco-capitais Medelin e Bogotá! Que propaganda boa pro Rio, hein! Ou seja, sr. coronel, os bandidos, além de roubar a moto, vão roubar os coletes, porque são mais visíveis e irão enganar as testemunhas. E, como a nossa polícia é adepta do atire-primeiro-pergunte-depois, as estatísticas de mortes por colete semelhante vão ser altas. O Brasil, às vezes, é a piada do marido que flagrou a esposa traindo no sofá da sala. Para salvar o casamento, ele jogou o sofá pela janela. Nenhuma dessas medidas vai solucionar nada, sabemos disso. A solução é a velha e boa Educação, no banco da escola ou na multa aplicada.
Existe jeito para o nosso trânsito? Sim, já está nas ruas e tem duas rodas. É simples, prático, rápido e cada vez mais seguro. Seguro? O trânsito ficou mais seguro, ficamos mais conscientes e os radares frearam as velocidades. E a Lei Seca é um benefício que veio para ficar e educar. Paris, Amsterdam, Madri e Roma são capitais movidas a duas rodas, a motor e a pedal e a metrô. A mobilidade nessas antigas e apertadas cidades prescinde do carro. Aqui entre nós, não tem bom senso em uma tonelada de metal, borracha e vidro transportando apenas uma pessoa . E a verdade: não cabem mais carros em lugar nenhum.
Se você tiver saúde e disposição, vale à pena tentar uma moto. E use capacete.
Texto publicado na Revista Época com opinião de um fotógrafo carioca sobre moto e o trânsito na cidade. Vale a pena uma lida.
* André Arruda, carioca, é fotógrafo. Fonte: www.revistaepoca.globo.com
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