Foi na Via Anhanguera, em São Paulo, em um início de tarde, há alguns anos. Dom Guina chegou com sua moto Teneré 600 roncadora, super-suja e personalizada. Chamou a atenção de frentistas e pessoas presentes por seu jaquetão preto e visual pitoresco: cabelos longos, barba no mesmo estilo e óculos Rayban. A fala mansa agradou os frentistas. Deixou a velha amiga abastecendo e foi ele mesmo se abastecer na churrascaria.
Quando saiu, uma hora depois, palitando os dentes e satisfeito pelo repasto, o frentista que o atendeu surgiu sorrindo. “Ô meu amigo, veja o grande favor que lhe fiz…”, disse, apontando para a moto. Estava até brilhando de tão limpa. “Não! Essa moto não é a minha…”, disse Dom Guina.
Ao perceber que de fato era a sua velha companheira, o motoqueiro não sabia se arrancava cabelos e barba de desespero ou se acertava um cruzado de direita no queixo do frentista. “Pô, cara! Você não podia ter feito isso… Nunca! A minha moto tem de ser suja. Eu não a lavo”, explodiu. Mas, diante do riso amarelo do frentista, Dom Guina arrefeceu a ira. “Fazer o quê, né? Já estava limpa mesmo…”
Mas qual o motivo para esse apego com a sujeira? Por acaso seria a moto parente do Cascão, personagem sujinho do Maurício de Sousa? Nada! “Cara, o maior legal é a moto bem suja. Daí sei dizer que essa terra daqui é do Tocantins, aquela lama ali é do Mato Grosso, aquele pedaço de capim é do Pará, aquela poeira é do México. Saca?”, indaga. Mas é claro que a pergunta é retórica. Ele não se importa com a opinião asseada dos outros. Afinal de contas, a moto é dele mesmo.
Na lógica de Dom Guina, quando o frentista paulista enxerido lavou a moto, acabou mandando pelo ralo, literalmente, muita história física expressa em sujeira adquirida em milhares de quilômetros rodados. Coincidentemente, na semana passada, novamente a moto teve sua história apagada. Numa viagem de 4 mil quilômetros entre agosto e setembro, passando por São Paulo e Rio de Janeiro, a moto sangrou. Jogou óleo até no óculos de Dom Guina.
De volta a Goiânia, o motoqueiro levou a amiga para a manutenção. Quando o mecânico viu o estado da moto, ficou mais arrepiado do que gato brigando. Mas nem se a vaca tossisse o mecânico iria colocar as suas mãos engraxadas e calejadas na máquina. Afinal, estava na situação que não se sabia o que era: lataria, óleo ou terra. Foi com uma dor no coração que Dom Guina lavou a moto. “Só porque não tinha outro jeito mesmo”, lamentou, sinceramente.
O caso de amor de Agnelo Paes Landim Neto, nome de batismo de Dom Guina, hoje com 53 anos, com as máquinas motorizadas de duas rodas começou na adolescência, quando ele não tinha ainda idade para pilotar e nem dinheiro para comprar moto. Nascido em Itumbiara, ele morava em Vitória (ES) quando foi trabalhar numa oficina de motos. Entre correntes, carenagens, pneus e peças, ele se apaixonou. A sua primeira namorada mecânica foi uma Yamaha 100 cilindradas.
Conforme o tempo foi passando, ele foi evoluindo nas cilindradas, até chegar à atual 600 cc e ao triciclo de 1.600 cc (motor de Fusca). Dom Guina já foi bancário e comerciante e há 32 anos ouviu o canto da sereia e ele vinha da estrada. Não parou mais. Já rodou por todo o Brasil, América do Sul e chegou ao México. Somente na Teneré 1988, ele calcula já ter rodado mais de 600 mil quilômetros. E a aposentadoria está chegando. Da moto, não do motoqueiro. “Vou fazer mais três viagens e colocar a moto num pedestal aqui no bar. Não vendo e não troco. É muita história que a gente viveu junto”, explica.
Por falar em bar, há seis anos Dom Guina mantém um na Vila Redenção, onde estacionou depois de morar no Espírito Santo e Minas. O pub nasceu como um ponto de apoio para amigos motoqueiros. “O pessoal chegava e pedia algo para beber. Daí decidi juntar as duas coisas”. O ponto fica fechado 60 dias por ano para as viagens do dono.
A decoração do pub tem referências das viagens de Dom Guina. Tem cabeça de búfalo do Pará, cabeças de bois de cidades goianas e matogrossenses, chapéus mexicanos, estatuetas, carrancas e outras quinquilharias. No cardápio musical só são permitidos jazz, blues e rock´n´roll. Nas paredes externas e internas do pub, uma mostra real, expressa em vinis dependurados: Jimmy Hendrix, Bob Dylan, Led Zeppelin e Pink Floyd. As músicas dos bolachões já foram devidamente masterizadas em CDs por ele.
O pub é o ganha-pão, mas só para alimentar a fome de estrada. Afinal, mal termina uma viagem, Dom Guina já fica a pensar na próxima e na próxima… Mas ele pensa no sentido de desejar e não de planejar. O motivo? “O mais legal da viagem é quando a gente joga o mapa fora e segue sem destino…” É precisa dizer algo mais?
Almiro Marcos
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