Nessa semana que passou, dentre outros tantos, dois episódios tiveram grande ressonância dentro da minha “caixa encéfalo habitada” e que processa este nosso complexo mundo.
O primeiro deles, adveio de um hoje comum acontecimento do cotidiano, quando câmeras captaram, a partir da colisão de uma motocicleta com um carro, o desesperador cenário destes num crescente e quase certo trágico incêndio, estando o desfalecido motociclista aprisionado embaixo do “conjunto da obra em chamas”. Um primeiro cidadão socorrista (sic) se aproxima, localizando-o. A seguir um segundo aparece e depois um terceiro. Vem a vez da primeira tentativa em vão de alguns poucos pra levantar o carro. Desistência e refugo pelo risco de uma eminente explosão. Novo incentivo, com mais alguns e muita coragem, até que o carro é levantado pela lateral direita e o motociclista vivo consegue ser puxado.
Momentos de emoção, pra quem viveu a cena ou foi um dos seus expectadores, mesmo em vídeo.
Outro episódio, experimentado na leitura de uma notícia sobre uma história bem recente, que ainda está em curso, de alguns cidadãos japoneses seniores, que tem em comum serem experientes engenheiros com idade acima de 70 anos. Estes nobres cidadãos deram um exemplo de cidadania que maior não há, quando voluntariamente resolveram se oferecer para substituir os jovens engenheiros no rescaldo da Usina Nuclear de Fukushima, cujos níveis de radiação desde do acidente são muito altos, e que mesmo com toda a prevenção, a chance de provocarem alguma sequela é praticamente certa.
A coragem e honradez do ato, cerne da decisão desses senhores, se baseia na “matemática da vida”, pois como a expectativa dela com a plenitude de todas as suas faculdades físicas e mentais seria de mais 15 a 20 anos, e tendo em contraponto que uma pessoa exposta a tais níveis de radiação estaria sujeita a adquirir câncer depois de 20 anos, em tese o prejuízo seria nulo. Verdade, em parte, mas de uma realidade de arrepiar.
A beleza desse gesto deixou o governo Japonês em saia justa, pois a aprovação de tal ato passa por questões éticas, que sob alguns aspectos, podem sobrepujar a lógica desses corajosos senhores.
De fato, tanto um episódio como o outro, vai na contramão do individualismo, muito presente na sociedade atual, dita tecnológica e evoluída, e principal ponto da nossa discussão.
É incrível, mas vivemos num mundo onde as maravilhas da tecnologia misturam-se cada vez mais com os horrores da miséria e outras desgraças. Ela não está a servir uma justa qualidade de vida pra todos, está a servir a perpetuidade do máximo de conforto e prazeres da vida pra alguns, em diversos graus de “necessidades” e abrangência.
Embora estejamos vivendo num mundo cada dia mais interconectado, de oposição às velhas regras de opressão e manipulação, os ventos desta mudança não trazem somente a brisa refrescante, trazem também caos, dor e confusão, decorrente do nosso desencanto e raiva por uma permanente sensação de insaciabilidade, de uma voracidade consumista não satisfeita.
Vide a recente eclosão de revoltas nas principais capitais no mundo, que muito acima de qualquer ideal de coletividade e igualdade de direitos, tiveram os maiores e primeiros saques em lojas de marcas de grife e de equipamentos eletrônicos entre celulares, computadores, TVs de plasma e outros.
Não são revoltas arquitetadas por revolucionários, são motins promovidos por consumidores excluídos e frustrados. Pois é nisso que nos tornamos, nos deixando influenciar por essa avalanche desumana de publicidade todos os dias, fomentando o individualismo e o consumismo, em detrimento à solidariedade e cidadania.
Neste mundo mercantilizado, somos reconhecidos pelo “cara da R1 vermelha”, pelo “dono da Pajero Preta”, pelo “cara que ganha muito bem numa grande empresa”, enfim, somos reconhecidos pelo que exibimos, pelo que parecemos ser ou ter, não pelo que somos realmente.
Por conta disso nos exibimos, nos fazemos parecer ser ou ter, e em muitos casos, bem mais do que realmente somos ou temos.
Pra que meu Deus?
Os dois episódios citados nos trazem grandes lições de seus protagonistas, a principal delas com respeito a vivermos de modo que saibamos cultivar a ética, a fraternidade, a cooperação, a solidariedade e o respeito à vida, mesmo com algum risco à nossa, pois afinal, um determinado risco de morte pode ser a maior razão da nossa vida. Como certamente muitos dos protagonistas destes episódios estão sentindo no seu íntimo.
Os ventos são de mudanças.
Enquanto alguns cavam cavernas profundas pra se isolarem e esconderem deles, outros içam velas pra superar o mar revolto e alcançar o desconhecido.
Como riders e desbravadores, devemos ir em busca da felicidade, desatrelada a indicadores de riqueza e poder, em busca de um espírito comunitário desatrelado da competição e egoísmo.
Afinal, como um pensamento do filósofo alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831), a definição de “mestre” determina que seja alguém desapegado da vida a ponto de enfrentar a morte, de correr riscos, de provocar mudanças, enquanto o “servo”, seja um escravo do desejo de continuar vivo, obedecendo rigidamente as regras que garantam a sua sobrevida, se possível, por toda eternidade, a qualquer custo, dando sentido, por consequência, a nulidade da sua capacidade de transformar o mundo e a si mesmo.
Influenciados por esse consumismo, corremos o risco de sermos escravos até as últimas consequências, defendendo muito mais o conforto e prazeres da vida do que aquilo de bem e verdadeiro que podemos fazer por nós e pelos outros em cada momento dela.
Pois então, como aproveitarás os ventos de mudança?
Serás mestre ou servo?
“Mudar é difícil mas é possível.” Paulo Freire (1921 – 1997)
Deixe um comentário