Milagres (BA)

Às 6h o dia já estava claro e eles prontos para partir. Não precisaram arrumar a bagagem na moto porque, tendo ficado junto a eles durante a noite, no posto Maracanã, estava pronta para iniciar a viagem. Agradeceram ao pessoal do posto pelo pernoite e partiram para Jequié.

A chuva forte deu uma trégua, mas continuava chovendo fino. O lamaçal continuava terrível, por isso poucos estavam atrevendo transitar pela estrada, por haver trechos soterrados por barreiras (locais onde somente eles atravessavam por estarem de motocicleta).

Desde o estado de Pernambuco passaram por muitos acidentes pelas estradas, onde viram várias pessoas feridas e até mortas. E devido aos deslizamentos, na estrada viam caminhões tombados nos barrancos após serem arrastados. Até por pequenas pontes quebradas que impediam a passagem dos carros e caminhões eles passavam colocando a moto nas costas (força de expressão, mas aconteceu mesmo). Vejam só:

Já haviam passado por outras pequenas pontes quebradas, sem muita dificuldade para atravessá-las, mas havia à sua frente, embora também uma ponte pequena e o rio raso, com a enxurrada aconteceu dela se partir no meio, tombar e tomar a forma de quase um “V”. Com a ajuda do pessoal que estava “preso” em cada lado da ponte, os dois conseguiram passar a moto por ela. Só que eles tiveram de ficar dentro da água, na base do “V” lutando contra a força do rio, que embora pequeno, a correnteza estava forte devido às muitas chuvas. Dessa forma eles a amparavam por baixo e iam levando-a para o outro lado. Nisso, o pessoal que se encontrava em cima e, apoiados nos extremos da ponte, ia passando a moto de um lado para o outro do rio. Depois de pequeno esforço, alguns arranhões e as roupas encharcadas, terminou tudo bem.

Agradecimentos lá e cá, seguiram em frente.

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Haviam saído da cidadezinha de Milagres pela manhã e, por falta de dinheiro, ainda não tinham tomado nenhum tipo de café fosse o da manhã ou uma tapeação qualquer.

Para piorar ainda mais a situação, eis que logo após ter subido um morro e começar a descê-lo, o piloto se deparou com vários sulcos enviesados no barro, provocados pelo escorrimento das insistentes águas da chuva. Tentou safar-se da situação, mas não conseguiu. Então, ao entrar a roda da frente num daqueles sulcos, foram os dois arremessados ao chão. E devido à velocidade que iam, embora não fosse muita, ao cair deslizaram do alto do morro até quase chegar ao fim da descida, onde embaixo passava pequeno rio.

Enquanto desciam escorregando e sem ter qualquer controle dos seus corpos, pois não havia como parar, eles iam lentamente girando e descendo, descendo e girando, acontecendo de num momento piloto ver o Fernando também escorregando e girando, da mesma forma que o Fernando via o piloto.

Um lado da estrada era despenhadeiro e o outro uma barreira. E assim foram escorregando e girando impotentes e à mercê do destino, até finalmente pararem quase no final da descida. Ainda bem de não terem escorregado para o lado do despenhadeiro.

Refeitos do susto, deduziram que a moto, ao tombar, deslizou pouco porque suas ferragens frearam-na, ficando assim pouco abaixo do topo do morro. Não acontecendo o mesmo com eles por não haver o que os prendesse ao chão.

Verificaram não terem sofrido nada demais, pois o Fernando só arranhou a perna e o piloto ficou com dor no joelho, o tal que já estava machucado. Realmente nada grave acontecera. Felizmente!

Por estar o piso escorregadio, tiveram que subir com muita dificuldade. Levantando a moto do chão, notaram que o “quique” havia empenado um pouco e o farol tivera um pequeno amassado no lado, mas como já não funcionava, não era problema.

Curiosos com o acontecido, procuraram a razão de terem deslizado tanto. Descobriram que o solo era extremamente duro e que sobre ele havia uma fina camada de barro, escorregadio como vaselina. Comparando, esse piso era tal qual um tobogã com vaselina derramada na sua pista de descida.

Nota: Anos mais tarde foi possível saber que no trecho onde caíram o solo contém minério de ferro, razão da sua dureza. E o barro fino que o cobria fazendo parecer vaselina era devido à chuva que o escorria da barreira existente num dos lados da estrada.

Refeitos do susto, com cuidado, desceram a moto levando-a até o leito do rio.

Molhados desde a ponte quebrada, por causa do tombo ficaram sujos de barro dos pés à cabeça. Então tiraram as calças para poderem limpá-las no rio, ficando apenas de cueca (molhada pela chuva) e o blusão de couro. O frio era intenso e não havia ninguém a quilômetros de distância.

Lavaram as calças, mas quanto aos blusões de couro, ainda vestidos, passaram água apenas por fora.

Depois do piloto ter vestido as calças e vendo o Fernando torcendo as dele, perguntou-lhe porque estava fazendo aquilo se ela logo iria ficar encharcada com a chuva que já caía forte. Vendo a bobagem que estava fazendo, vestiu-a assim mesmo e partiram. No caminho, a chuva foi acabando de limpar blusões e sapatos.

Isso tudo aconteceu sem tomarem, sequer, o cafezinho da manhã.

Bem, se não houvesse outras novidades pretendiam alcançar Jequié antes do meio-dia.

Finalmente chegaram a Jequié, pouco depois do meio-dia, sem dinheiro algum. O que fazer para abastecer a moto, colocar óleo e dar alguma manutenção necessária? Sem falar na alimentação, acomodação e algo mais, pensou o piloto, mas completando, disse de si para si mesmo:

“Vamos deixar de lado negatividades e tratemos de pensar o que será possível fazer para sairmos desse aperto”.

Enquanto pensavam numa solução, iam rodando com a moto pela cidade a fim de descobrirem por onde poderiam começar alguma estratégia de sobrevivência.

Observando aqui e ali, viram tratar-se de cidade grande, populosa, bem adiantada, pessoal demonstrando ter bom padrão de vida, bastante comércio e até uma emissora de rádio local. Mas no caso da emissora de rádio, ouviram que não estava funcionando por falta de energia devido a um acidente elétrico ocorrido pela manhã e que por isso a rádio só voltaria a funcionar lá pelas 18h.

O que? Pensou o piloto. Emissora de rádio local sem funcionar? Deus continua nos acompanhando e às vezes até se adianta, chegando antes de nós a fim de preparar as coisas em nosso favor!

Havia ali uma oportunidade ímpar! E vou contar a razão dessa maravilhosa notícia, disse ele.

Dentre as coisas que o piloto levara estava o radinho portátil (na época eram todos importados do Japão) comprado recentemente no Rio. Pequeno, bonitinho, antena retrátil cromada, protegido por uma capa de couro bege escura, mas sua captação era só na frequência AM, ou seja, só pegava transmissões da rádio local de onde estivesse.

Bastante útil na ida para Recife, dava para distrair, mas devido aos tombos e até pó do barro, ficou com chiados, não se escutando ou não permitindo entender bem as transmissões. Levava-o para mandar consertar quando chegasse ao Rio, mas agora havia ali uma grande oportunidade de vendê-lo, apesar do seu chiado.

Isso ele pensou porque, não havendo energia na rádio local, ela não fazia transmissões e por ser o radinho, AM, ele não poderia ser experimentado na cidade. Assim uniu-se o útil ao agradável!

Não seria um procedimento muito correto, mas devido às condições em que se encontravam, cansados, abatidos e com fome, não dava para raciocinarem com tranquilidade, aliando-se a isso o fato da moto precisar de óleo e combustível para transportá-los.

Por existir na vida determinados momentos que se tem de aproveitar, combinaram uma estratégia para a venda do radinho e a seguir foram a um bar onde havia muita gente.

Deixando a moto estacionada junto à porta para que todos vissem serem eles viajantes e qual tipo de veículo estavam usando, entraram. Ao se aproximarem do balcão, foram logo notados pelas pessoas que ali estavam bebendo e conversando.

Era exatamente o que eles queriam.

Fernando, com o seu jeitão de pessoa acessível e simpática, puxou logo conversa com um grupo que estava próximo ao balcão.

Vai daqui, vai dali, começou a contar partes da história da viagem, dos vários acidentes pela estrada (fantasiando às vezes para valorizar os argumentos) até que alguém, vendo o radinho em cima do balcão e sendo novidade na região, por curiosidade, perguntou por ele.

Em resposta disseram estar sem dinheiro para prosseguirem viagem e como tinham aquele bonito radinho portátil, japonês, frequência “AM”, queriam vendê-lo.

Imediatamente apareceu um interessado perguntando preço e então o piloto disse aceitar Cr$250,00. O interessado, que estava com alguns amigos indagou:

“Como posso saber se o radinho funciona, tendo em vista que a rádio local estava desativada por falta de energia?” O piloto respondeu que funcionava (só não disse que emitia chiados porque não tinha perguntado) e como podia ver, até sua aparência era de objeto novo e conservado (estava realmente).

Então o interessado falou que iria fazer uma oferta (qualquer que fosse ela, para eles seria irrecusável):

“Se vocês esperarem até as 18h, hora em que a energia iria voltar e a rádio local voltaria a funcionar, ele pagaria o que estavam pedindo. Mas naquele momento, só pagaria Cr$150,00“.

A fim de impressioná-lo, fizeram aquela cara de “quem comeu e não gostou” (só para dar a impressão de não terem ficado satisfeitos com a oferta, mas era apenas teatro). Piloto e Fernando foram então para um canto a fim de fingirem comentar a oferta. Depois de parecer terem chegado a uma decisão, voltaram e disseram ao comprador, que embora a oferta tivesse sido baixa, mesmo assim haviam concordado com ela porque, se ficassem até as 18h para provar estar o radinho funcionando, perderiam tempo de viagem e isso lhes causaria um grande prejuízo, não só em dinheiro como principalmente em tempo, que para eles valia muito. Então, a alternativa deles era de aceitarem aquela oferta.

Satisfeito por ter levado a melhor na negociação, contou o dinheiro que tinha e pagou-os. Os dois guardaram o dinheiro, agradeceram e partiram imediatamente, sem olhar para trás. Se o radinho, depois das 18h0 funcionou bem, isso já era outra história. Milagres acontecem! Mas se não funcionou, bastaria limpar ou consertá-lo lá mesmo em Jequié.

Apesar da forma como foi feita, essa transação beneficiou ambas as partes, por que: para os viajantes, sem dúvida, salvou-os de um aperto que muitos considerariam irremediável pelo fato de não terem um níquel sequer. Então, a falta de energia na estação do rádio da cidade foi realmente um momento excepcional. Se isso não tivesse ocorrido, não venderiam o radinho devido ao chiado. Para o comprador também foi interessante porque ajeitaria o rádio com pequeno gasto, compensando bastante o pouco que pagou por ele. E ainda com a especial vantagem de ter uma novidade lá no interior.

Esse caso aconteceu por volta das 14h.

Após tudo concluído pegaram estrada, viajando o mais rápido possível dentro daquele lamaçal, porque queriam estar bem longe quando a energia voltasse, para não terem de explicar o inexplicável e também por ganharem tempo de viagem.

Depois de percorridos alguns quilômetros, pararam num posto de gasolina na beira da estrada para reabastecer, já que a gasolina estava na reserva. Oportunidade que aproveitaram para trocar o óleo do cárter e calibrar os pneus.

Voltaram à estrada e depois de percorrerem alguns quilômetros, chegaram a um pequeno povoado chamado Imbuíra, onde comeram alguma coisa porque a fome era enorme.

Pelo adiantado da hora e o cansaço, resolveram dar uma pequena volta pelo lugar a fim de arranjarem quarto para dormir e lugar para a moto.

Tendo conseguido, o negócio agora era descansar.


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